Política

Otimista trágico ou pensador da resistência, o intelectual português fala de democracia, partidos políticos, América Latina e seus novos líderes, Amazônia e globalização

Professor, o que é ser um otimista trágico?

Ser um otimista trágico é ter uma atitude de profundo conhecimento das dificuldades com as quais defrontamos hoje em dia, nunca subestimar as dificuldades na construção de um mundo melhor, mas acreditar que as coisas não estão todas decididas, o mundo não continuará a ser tão injusto. Soluções mais progressistas, emancipatórias, justas, equilibradas, com mais respeito à diversidade cultural são possíveis. O otimismo trágico é exatamente essa confluência da consciência das dificuldades e a idéia de que elas são superáveis.

Em A Gramática do Tempo o senhor argumenta que a democracia política é solapada por relações sociais autoritárias. A economia e a cultura passaram a dominar o terreno da transformação da sociedade?

Não tenho dúvidas que isso aconteceu. Temos a teoria liberal, que partiu da idéia da existência de dois grandes mercados nesta sociedade de opções e de liberdade individual: o mercado econômico, em que se trocavam bens que tinham valores com preço, e, por outro lado, um mercado político, em que se trocavam valores sem preço − idéias, ideologias de esquerda ou de direita. Nos últimos trinta anos esses dois mercados se fundiram sob a égide do mercado econômico. Hoje só tem valor o que tem preço e é por isso que assistimos à corrupção política como um fenômeno endêmico. Não é um desvio de um ou outro partido, é uma característica estrutural do sistema. E a democracia não produz redistribuição social, não permite que os valores sem preço circulem. Fala-se da crise da ideologia, dos valores e no entanto é consumidor quem pode pagar pela política, pelos valores simbólicos, pela cultura. A democracia passa a ser de baixa intensidade e deixa circular na sociedade muito despotismo, entre os mais ricos e os mais pobres, de uma raça dominante em relação a outra, e essas questões surgem, no tema político, mais ou menos incontroladas.

Esse é o ressurgimento do determinismo econômico de Marx?

Não formularia assim. Talvez a sociedade hoje seja mais marxista do que o próprio Marx previu e, apesar de parecer que o marxismo está em crise – não sou daqueles que pensam assim –, continua a ser uma leitura fundamental para entender nossa sociedade, que tem muita dificuldade para imaginar uma outra sociedade. A que foi imaginada por Marx não é a que hoje podemos imaginar. Naquele contexto cultural e científico em que viveu, Marx era determinista porque toda a ciência, naquele período, era determinista. Hoje não temos um conceito de atividade histórica muito forte e, portanto, entendemos que, como dizia a velha Rosa Luxemburgo, se fôssemos totalmente deterministas acreditaríamos que o futuro da sociedade é o socialismo. Mas não sabemos se é esse o futuro, se é outra coisa pós-capitalista ou se é barbárie, como ela diria. Acho que idéias deterministas não têm grande validade e é nesse sentido que penso que essa idéia de Marx deva ser revista.

Nesse quadro, que papel resta aos partidos políticos desempenhar?

Um papel muito importante, desde que tenham credibilidade. A convergência entre o econômico e o político, sob a égide do mercado econômico, tem levado os partidos a uma grande crise de ideologia. Para conquistar votos, praticamente todos passaram ao chamado centro, perdendo as arestas ideológicas e lembranças dos princípios e valores, e muitos deles passaram ainda a defender as mesmas bandeiras. Esse é um dos fatores de descredibilidade.

No Brasil não podemos pôr todos os partidos no mesmo saco. Há ainda opções ideológicas importantes, mas é evidente que há perigo de descaracterização. O outro perigo é o da perda da ética na política. Antes havia o tal mercado político em que valores não tinham preço e, portanto, se discutiam as idéias, as ideologias e os princípios, havia uma idéia de ética dentro da própria política. Na medida em que há uma crise ética, vemos os partidos muito suscetíveis à corrupção, à negociação sem princípios, a um pragmatismo oportunista − e, ainda assim, desejam ter credibilidade. É um perigo para a democracia. Não acredito que haja democracia sem partidos e que os partidos são o centro da democracia. É preciso criar uma relação virtuosa e complementar entre os partidos e as organizações, que continuam tendo um grande papel nos projetos de transformação social, na resolução dos problemas na vida das pessoas, na luta contra a desigualdade, contra as formas de discriminação.

Nem os movimentos nem os partidos sozinhos podem resolver esse problema. É preciso uma outra articulação, mas é necessário vencer dois grandes obstáculos. O do fundamentalismo antipartido por parte de movimentos – há muitos movimentos que não querem nada com partidos – e o fundamentalismo recíproco antimovimento por parte de partidos, que pensam que têm a exclusividade da representação dos interesses dos cidadãos. Isso tem de ser superado e só reforçará a democracia.

Olhando para a América Latina, qual o perfil mais promissor: Chávez, Morales, Bachelet ou Lula?

São muito diferentes, têm concepções de políticas de esquerda muito diferentes – aliás, tão diferentes que de alguns deles se questiona a posição à esquerda. Diria que o caso da Bachelet é problemático, porque é uma pessoa que tem um passado de esquerda, mas está governando um país onde Pinochet fez uma profunda contra-revolução. É o país mais neoliberal, mais privatizado da toda a América Latina, onde é muito difícil desenvolver uma política de esquerda coerente.

Todos os outros têm suas virtudes e é necessário ver o que cada um tem de melhor. E surgirão mais experiências no continente. O próprio Kirchner traduz uma experiência interessante, porque assume novas formas de nacionalismo que se supunham enterradas. A atitude dele no que diz respeito à dívida externa foi bastante progressista, e não foi tão apoiada pelo Brasil como deveria ter sido.

O caso do Brasil é um outro perfil. Embora muito progressista em termos internacionais, internamente procura uma grande ortodoxia no cumprimento dos compromissos com as agências internacionais. Entre os doze enunciados definidos no Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, tem um que é uma bomba em termos de transformação política. Prevê que nos próximos cinco anos as taxas de juros serão praticadas pelos valores internacionais. É difícil avaliar a reação do capital financeiro perante isso. De todo modo, mostra uma mudança de curso.

No caso de Evo Morales, a grande característica é ser a primeira democracia na América Latina verdadeiramente intercultural, que tenta integrar uma grande maioria indígena – que também existe em outros países – aos processos políticos. Os problemas que ele levanta são complicados.

Chávez é totalmente distinto. Trata-se, pela primeira vez, de uma política populista no bom sentido, na medida em que a renda petrolífera está sendo posta a serviço das populações mais carentes, o que é inédito. Ao contrário do que acontece no Brasil ou na Bolívia, não há na Venezuela muitos movimentos sociais fortes e autônomos, tudo depende um pouco de Chávez e naturalmente também da renda petrolífera. É um processo político que tem a grande vantagem de levantar, talvez com mais força, a bandeira antiimperialista. Essa bandeira tem de ser levantada porque não é de modo algum impossível que aconteça na América Latina daqui uns dez, quinze, vinte anos a crise que ocorre hoje no Oriente Médio. A luta por recursos naturais do Oriente Médio pode, amanhã, estar na América Latina, onde há as maiores reservas mundiais de biodiversidade − água, petróleo, minérios, madeira etc. Essa hipótese não deve ser descartada.

Que papel a Amazônia deveria cumprir para uma globalização mais humanizada?

A Amazônia é um território que não deve ser considerado um patrimônio comum da humanidade, já que tem uma titularidade de soberania política do Brasil e de outros países amazônicos. Todos têm de se concentrar no sentido de ascender com o apoio internacional, apoio de todos aqueles que lutam nas diferentes áreas: direitos humanos, movimentos ambientais, de luta pela preservação da Amazônia.

Vejo com grande preocupação a possibilidade de o agronegócio, principalmente no caso da soja, produzir uma desertificação na Amazônia, que é uma grande reserva de água doce, é o pulmão do mundo. Todas essas  coisas são conhecidas e os efeitos negativos da destruição estão confirmados. Não há lugar para a especulação, e portanto falta vontade política. E aqui, de novo, é a questão da corrupção política que faz com que atores econômicos muito poderosos imponham sua vontade. Marx dizia que os capitalistas, os empresários, têm uma visão de curto prazo, não estão interessados se em vinte anos teremos um colapso ambiental.  Eles querem os lucros e o próximo ciclo de produção da soja. Compete ao Estado e à sociedade civil ter essa visão de longo prazo para evitar a destruição. A Amazônia é um patrimônio brasileiro e dos países que a partilham e deve ser preservada com o apoio de todos nós.

O senhor fala sobre o globalismo localizado. Existe uma pequena comunidade no interior da Amazônia que produz babaçu e serve à indústria alemã. Essa comunidade vive de maneira precária, mas produz um bem de alto valor. Dentro de uma lógica de evolução dos direitos humanos, chegaria um momento em que ela teria menos direitos, porque aquela seria uma situação nata de troca?

Hoje temos de encontrar uma solução que permita que essas comunidades atendam o mercado mundial. O problema está nos termos de troca, sempre desiguais para essas comunidades, que são dependentes, por mais que tenham consciência do verdadeiro valor daquilo que produzem. O Estado é omisso ou cúmplice dos grandes agentes econômicos internacionais, e não ajuda a defender esse tipo de produção. Temos de procurar não cair numa situação de preservação conservadora, no sentido de que não se pode viver na Amazônia e as populações, por vezes, terão dificuldades de sobreviver porque há determinados preconceitos e preceitos internacionais que impedem certo tipo de desenvolvimento. As populações locais sempre viveram na Amazônia e sempre a defenderam. Os povos indígenas são os guardiões da biodiversidade do mundo, sempre souberam articular produção com preservação muito bem − e isso deve ter continuidade e ser valorizado.

O problema mais grave é o da propriedade intelectual, já que muitos desses saberes acabam transferidos para grandes empresas, que obtêm as patentes dos produtos locais. Aqueles que têm os conhecimentos ancestrais, que manufaturavam esses produtos, ficam desprotegidos. É preciso integrar essas populações, defendê-las, organizá-las em cooperativas, em associações que tenham poder de negociação internacional. Mesmo que quiséssemos, o mundo está globalizado e não é possível um isolamento total.

Esse é o conceito de ecologia dos saberes?

Ela valoriza a prática do saber, não apenas o científico, que é evocado pelas grandes empresas. Esse saber científico se considera o único válido e desprestigia e oprime o conhecimento das populações indígenas, sem o qual, no entanto, esses produtos não poderiam ser fabricados. Caminhando pela Amazônia, é possível ver que são milhares de espécies arbóreas, as nuances de verde são infinitas. Imagine se um botânico europeu ou norte-americano percebe ali o que é útil para quê? É evidente que é preciso o conhecimento local, que acaba como qualquer outra matéria-prima. Para lutar contra essa idéia é que desenvolvo o conceito da ecologia dos saberes.

Considerado um dos representantes do pensamento de resistência, como o senhor caracteriza esse título?

É uma caracterização correta, mas incompleta. Represento, junto com outros, um pensamento de resistência, mas também de alternativa. A globalização neoliberal ( na qual, segundo o pensamento hegemônico,  não há possibilidades de mudanças) tem de fato alternativas. Não só aquelas que decorrem do Fórum Social Mundial e começam a ter algum impacto em áreas inimagináveis, como em relação à dívida externa, contra a privatização da água, na negociação dos empréstimos do Banco Mundial e nas transformações por que passa o FMI para dar mais peso aos países do chamado Terceiro Mundo e na ação diplomática do Brasil para criar um bloco de países que imponha com firmeza mudanças no comércio internacional.

Essas são expressões de que há alternativa, de que é possível lutar por um outro mundo melhor e por condições que não são as que vigoram. Temos de acreditar e lutar por uma alternativa à destruição da Amazônia à luz da produção de soja. É evidente que pode acontecer a quebra do preço da soja e ela própria ter seu mecanismo de correção, mas isso não basta, temos de lutar por outras formas políticas de intervenção.

A economia solidária é uma das alternativas?

Sem dúvida. É hoje muito mais presente na vida cotidiana das grandes cidades, não apenas a chamada economia informal como também a solidária, mas é muito pouco visível. No Brasil há um movimento muito interessante, porém pouco conhecido. Muitas universidades públicas têm convênios significativos com cooperativas, com organizações econômicas populares que vivem na periferia da própria universidade e produzem serviços. Na Índia e na África temos hoje uma pujança na área de economia solidária que está precisando de uma ecologia de saberes para lhe dar credibilidade. Para os economistas do conhecimento
econômico neoliberal – quase todos os que estão no Banco Central dos países da América Latina foram formados em Chicago ou nas universidades norte-americanas –, isso não tem interesse,  não é uma alternativa credível; portanto, precisamos também transformar o conhecimento científico.

E poderá a economia solidária ocupar o lugar do socialismo no ideário da mobilização?

Não. Socialismo é demasiado grande para a economia solidária. Penso que provavelmente no horizonte pós-capitalista existirá o que eu designo como socialista, mas respeito aqueles que não o designam como tal porque entendem que socialismo pode ser mais uma forma de opressão, em alguns países do Leste Europeu e, ainda recentemente, na África, como em Moçambique, por exemplo. Houve um período de socialismo que não teve grande êxito e produziu conseqüências sociais negativas. As palavras são o que são e ficam vinculadas à história dos povos. Há um horizonte pós-capitalista, em que a economia solidária e outras formas de organização econômica popular terão lugar. Já temos hoje, mesmo fora do chamado Terceiro Mundo, muitas trocas diretas. Pessoas e grupos sociais que procuram realizar trocas não monetariamente, mas por meio de serviços, na Europa e até mesmo nos EUA. Muitas pequenas cidades são governadas por moedas locais. Há um enorme conjunto de iniciativas e alternativas a se desenvolver que são emergências, não tem ainda grande consistência, mas não devem ser desacreditadas porque estão corretas como orientação para onde caminha a História.

Elas têm de ser articuladas em nível local, nacional, global. Aliás, o papel do Fórum Social Mundial foi este: proporcionar articulações globais que terão sua eficácia e ocorrem nos mais diversos campos. Uma  lógica nova na luta política internacional.

Jaqueline Almeida é jornalista

João Cláudio Arroyo é professor universitário e coordenador da ONG Instituto Saber Ser Amazônia Ribeirinha (Issar)