Nacional

Fomos negligentes com nossas águas. No entanto, o Plano Nacional de Recursos Hídricos torna possível estabelecer programas e ações sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social

O Brasil é rico em disponibilidade hídrica, como todos sabemos: 12% da disponibilidade de águas doces superficiais do planeta está aqui, em nosso país.

A relação entre água e desenvolvimento, entre água e equidade social é tão óbvia, como nos mostra o recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que nada mais adequado do que nos valermos dessa riqueza hídrica como fator de propulsão para alcançar nosso tão sonhado desenvolvimento econômico-social, rompendo e superando o antagonismo ainda prevalecente que opõe crescimento econômico a preservação dos recursos naturais. Essa superação é possível pela incorporação do paradigma do desenvolvimento sustentável às ações de governo, do setor produtivo e da sociedade em geral, como bem nos tem lembrado a ministra Marina Silva em suas abordagens sobre o tema.

O Brasil ainda tem enorme potencial de hidreletricidade para explorar e seria insensato não fazê-lo. Por outro lado, apenas cerca de 3,5 milhões de hectares de terras agricultáveis são irrigadas em nosso país, restando ainda quase 30 milhões de hectares passíveis de irrigação em bases sustentáveis − e seria igualmente insensato não aproveitar esse potencial.

É forçoso reconhecer, porém, que até recentemente nós, brasileiros, fomos muitos negligentes com nossas águas, como de resto com nossos recursos naturais em geral, pois permitimos vigorar no Brasil um padrão de sua utilização em bases não-sustentáveis, na esteira de um processo econômico- social voraz e predatório, carente de planejamento e de regras adequadas. Como resultado desse padrão, acumulamos um formidável passivo ambiental, merecendo destaque, no caso dos recursos hídricos, a poluição de rios e lagos em várias regiões do país, sobretudo naquelas mais populosas e urbanizadas e mais ocupadas pela atividade econômica. Esses mananciais poluídos por esgotos domésticos, efluentes industriais e outras fontes difusas, tanto na zona urbana como na zona rural, comprometem a qualidade de vida dos brasileiros que habitam essas regiões e, mais que isso, a própria continuidade do desenvolvimento econômico-social, pois inviabilizam ou restringem a disponibilidade de água para seus usos múltiplos.

Felizmente, desde a promulgação da Constituição de 1988, nosso país deu passos importantes para o enfrentamento desse quadro, instituindo, por meio da Lei n° 9.433, de 8 de janeiro de 1997, a conhecida Lei Nacional das Águas, a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Em 2000, como corolário, pode-se dizer, dessa lei nacional, foi aprovada e sancionada a Lei n° 9.984, que criou a Agência Nacional de Águas (ANA), autarquia incorporada ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com a missão de coordenar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Nesse mesmo contexto, os estados da Federação também foram instituindo suas próprias leis de recursos hídricos, alguns até mesmo antes da lei federal, e os comitês de bacia hidrográfica foram se disseminando pelo país. Esse vigoroso processo em construção, que conta com a intensa participação dos usuários de água e da sociedade civil organizada, inclui-se, seguramente, no que há de mais  avançado na gestão pública brasileira, pois se pauta pelos princípios da descentralização e da gestão integrada e compartilhada, tendo a bacia hidrográfica como unidade territorial para a implementação da política  e atuação do sistema de gestão.

Como ponto crucial desse processo de avanços, sob a coordenação da Secretaria Nacional de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente e com a decisiva participação técnica da ANA, foi concluído e aprovado em 2006, pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, o Plano Nacional de Recursos Hídricos. O presidente Lula fez seu lançamento público e tem reiteradamente mencionado esse trabalho como um  dos feitos importantes de seu primeiro mandato.

A elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos, um dos compromissos assumidos pelos países, entre eles o Brasil, para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, representou um extraordinário exercício de governança. Sua natureza participativa e descentralizada tornou possível estabelecer programas e ações para 2020 sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social, com consenso político e social, por meio de um amplo processo de discussão pública.

Todo esse amadurecimento nos indica que estamos no rumo certo. O planejamento e a gestão integrada e compartilhada, com o engajamento da sociedade, conforme previsto em nossa legislação das águas, são a garantia que temos de que o aproveitamento dos recursos hídricos não será predatório e unilateral, e sim atenderá às múltiplas necessidades e às expectativas das atuais e futuras gerações. O aniversário de dez  nos de promulgação da Lei Nacional das Águas, que ora se celebra, é uma excelente oportunidade para o governo e a sociedade brasileira avaliarem a efetividade da implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e vislumbrarem quais os desafios velhos e novos que se impõem.

A meu ver, tais desafios não são poucos nem quiméricos. Elencarei os que reputo mais importantes e mais complexos.

O Brasil, como sabemos, é uma Federação e conta com 27 estados. A Constituição Brasileira, nos seus artigos 20 e 26, atribuiu o domínio das águas à União e aos estados. As águas são da União quando se situam em terrenos do seu domínio ou quando banham mais de um estado, sirvam de limite com outros países ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham. As águas são de domínio estadual quando se situam estritamente nos limites de seu território. Ressalte-se que constitucionalmente as águas subterrâneas, independentemente da sua abrangência territorial, são de domínio estadual, o que constitui um desafio à gestão integrada, tendo em vista o ciclo hidrológico, que vincula as águas superficiais às subterrâneas.

Uma bacia hidrográfica se configura pela existência de um rio principal e pelos seus afluentes. Uma situação típica de bacia hidrográfica federal é aquela em que o rio principal é de domínio da União, porém seus  afluentes, em sua maioria, são estaduais. Nesse caso, impõe-se a gestão integrada, por meio da qual se estabelecerá um pacto federativo de gestão das águas, pois não faz nenhum sentido a adoção de critérios de gestão díspares numa mesma bacia hidrográfica. Essa é uma declaração teórica fácil de fazer, mas, na prática, significa a necessidade de um exercício intenso e complexo de articulação e convergência políticoinstitucional, uma vez que os governos estaduais gozam de autonomia político- administrativa e nem sempre estão afinados, em termos de visão política e de prioridades, entre si e com o governo federal. Vejamos o caso da Bacia do Rio Paraíba do Sul.

Trata-se de uma bacia de domínio federal, pois o Rio Paraíba do Sul, sua calha principal, banha os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Afora alguns poucos afluentes federais, a maioria deles é de domínio desses estados, os quais têm suas próprias leis de recursos hídricos e, portanto, suas próprias políticas e sistemas de recursos hídricos, guardando diferenças significativas entre si e com a própria situação federal. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul é o mecanismo participativo pelo qual se busca estruturar e harmonizar a gestão dos recursos hídricos no âmbito dessa bacia, estando em vigor desde 2002 um convênio de integração entre os três estados, assinado pelos respectivos governadores, pelo Comitê e pela Agência Nacional de Águas, com vistas a fazer convergir os objetivos e os instrumentos de gestão dos recursos hídricos da região.

Verifica-se, portanto, que, diferentemente da França, que é um Estadounitário e cujo modelo de gestão das águas foi fonte de inspiração para o nosso, no Brasil a dupla dominialidade das águas, atribuída constitucionalmente à União e aos estados, faz da construção e implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos uma tarefa de alta complexidade, exigindo perseverança, habilidade e espírito público de todos os atores públicos e privados envolvidos, além da sociedade civil organizada.

Nossa riqueza hídrica não é homogênea, como sabemos, portanto permanece o desafio de garantir segurança hídrica às regiões de baixa disponibilidade, como o semi-árido nordestino. O passivo ambiental nas nossas bacias hidrográficas precisa ser solucionado, sobretudo com obras de saneamento ambiental e programas de uso e conservação do solo. As ações necessárias exigem: a existência de órgãos gestores instituídos, quadros técnicos de carreira, capacitação técnica contínua, liderança e, como não poderia deixar de ser, recursos orçamentários e financeiros suficientes.

Esses desafios serão difíceis de ser equacionados se o tema dos recursos hídricos não galgar o topo da agenda nacional, fato que por si só constitui um formidável desafio à parte, pois requer fina percepção por parte das lideranças do papel estratégico da água em nosso processo de desenvolvimento, sobretudo neste século. Já é alentador, todavia, verificar que o tema vem sendo crescentemente pautado na mídia, que os comitês de bacia estão se multiplicando e se fortalecendo, que em vários estados da Federação governos se esforçam para instituir e fazer avançar suas políticas de recursos hídricos, que instrumentos como a cobrança pelo uso da água já começa a deixar de ser tabu e se dissemina em algumas bacias hidrográficas.

É alentador também constatar que o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, fórum de assessoramento presidencial que congrega lideranças do mundo empresarial e sindical e da sociedade civil organizada, já trata o tema da gestão sustentável dos recursos naturais como desafio a ser incorporado à agenda de desenvolvimento do nosso país.

José Machado é diretor-presidente da Agência Nacional de Águas