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Família Almeida Teles apresenta ação inédita à Justiça contra Brilhante Ustra

Em setembro de 2006 o juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, acolheu Ação Declaratória impetrada pela família Almeida Teles contra Carlos Alberto Brilhante Ustra (comandante do DOI-Codi de São Paulo entre 1970 e 1974) por entender que a ofensa aos direitos humanos não está sujeita a prescrição. Em novembro ocorreu a primeira audiência, quando foram ouvidas as testemunhas de acusação. O réu não compareceu. As testemunhas indicadas por ele – quase todos generais – serão ouvidas nos respectivos estados onde residem, uma maneira de postergar a sentença do juiz.

Entre 1972 e 1973, Maria Amélia, César, Criméia (grávida de 7 meses)¹, eu, e meu irmão, Edson Luis, de 5 e 4 anos respectivamente, fomos seqüestrados e torturados. Meus parentes presenciaram o assassinato do amigo, Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PCdoB, nas dependências do DOI-Codi. A ação civil requer o reconhecimento da ocorrência desses fatos e a responsabilização do réu sem exigir indenização pecuniária nem envolver punição criminal.

Essa iniciativa foi tomada por considerarmos o direito de acesso à Justiça, aquele que garante o cumprimento de todos os demais, atributo fundamental da democracia.

A impunidade constituiu a pior herança que recebemos da ditadura e contabilizou a maior dívida da democracia. Ainda hoje não apuramos as responsabilidades referentes aos seqüestros, torturas, mortes e desaparecimentos forçados cometidos pelos agentes do Estado brasileiro. Há mais de trinta anos familiares e amigos buscam restos mortais dos que ainda não foram sepultados. Passados tantos anos e após a edição de leis de reparação das vítimas e de seus familiares, mantém-se o silêncio e impede-se o acesso aos arquivos do período. A manutenção do segredo quanto aos fatos relacionados à repressão política tem sido prática de todos os governos civis instaurados desde o fim da ditadura. A atual lei que regula o direito de acesso aos documentos públicos, editada em 2005, é inconstitucional, entre outros motivos, porque delega somente ao Executivo o poder de decidir sobre o sigilo, que pode ser renovado a cada trinta anos por tempo indeterminado. Ao impedirem o acesso a esses documentos, principalmente os das Forças Armadas, a produção de provas nos processos civis e administrativos tem ocorrido com muitas limitações e é a principal deficiência da conduta jurídica preponderante no Brasil.

No período democrático, pouco se contribuiu para pôr em prática medidas que conduzam à verdade jurídica e à justiça, pois a longa transição negociada do Brasil não revogou parte da legislação do estado de exceção iniciado em 1964. Com a redemocratização asseguraram-se os direitos políticos dos dissidentes, mas não os direitos civis, especialmente, o direito à Justiça. O papel de destaque das Forças Armadas como garantes da lei e da ordem, conferidos pela Constituição de 1988, e sua crescente importância na manutenção da segurança interna nos ajudam a entender essa realidade.

Esse quadro de impunidade deve-se também às dificuldades relacionadas à aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos por parte do Brasil. Isso dificulta o trabalho do luto e da memória entre os familiares de mortos e desaparecidos políticos, as vítimas da ditadura e a sociedade brasileira. Ao contrário de outros países, no Brasil não há um “boom da memória” sobre esse passado. O silêncio foi imposto, na tentativa de ocultar realidades incômodas e vergonhosas.

O interesse público de saber o que aconteceu nos remete à dimensão política dessa Ação Declaratória, que exige o funcionamento das instituições brasileiras. O ineditismo e o caráter paradigmático da ação fizeram com que se reiniciasse o debate sobre a tortura e a abrangência da Lei de Anistia de 1979.

Declarações como as de Jarbas Passarinho, afirmando que a tortura foi ocasional, recolocam em cena a importância de combater o “negacionismo” ou “revisionismo histórico” acerca dos crimes cometidos pela ditadura − prática recorrente em se tratando dos crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, o que fez surgir leis punitivas contra aqueles que negam a existência do genocídio dos judeus. Ressurgiu também a questão de que a Lei de Anistia, promulgada ainda durante a ditadura, teria sido recíproca, favorecendo vítimas e algozes, trazendo à luz os conhecidos argumentos de que se tratava de uma “guerra”, em que os dois lados cometeram “excessos”. Na Argentina, em 2006, a nova edição do chamado “Relatório Sábato”, organizada pelo governo, desmonta a “teoria dos dois demônios” e redimensiona a história da violência política ao salientar o abuso de poder que representou a violência estatal da ditadura. O debate reaberto nos aponta muitas questões mal resolvidas no Brasil.

Juristas como Hélio Bicudo voltaram a questionar os erros de interpretação da Lei de Anistia: esta não anistiou os torturadores. O texto da lei, embora pouco claro, determina a anistia “aos crimes políticos ou conexos a estes” (§ 1º do artigo 1º), ou seja, os crimes de qualquer natureza relacionados àqueles praticados por motivação política – os crimes previstos na Lei de Segurança Nacional (LSN). O crime conexo seria o assalto a banco ou roubo de carro realizado por militantes políticos como apoio à luta armada. Prevaleceu, entretanto, a interpretação de que os “crimes conexos” se referiam aos crimes cometidos pelos torturadores. Para caracterizar a ligação ou conexão entre crimes é necessário que os autores sejam os mesmos e que estes tenham os mesmos objetivos e motivações. Parece claro que este não é o caso entre os que torturaram e mataram presos políticos durante a ditadura e suas vítimas.

Ademais, a lei não contemplou aqueles que foram condenados pela prática de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal (§ 2º do artigo 1°). Vários presos políticos foram libertados devido à redução das penas estipuladas pela LSN reformulada em 1978. Não foram absolvidos nem anistiados, saíram das prisões em liberdade condicional. A anistia não foi recíproca. Os exilados retornaram, após a anistia, mas, na prática, apenas os torturadores permaneceram imunes aos julgamentos. Desde a Constituinte de 1988, principalmente, a abrangência da anistia vem se ampliando em um longo processo, ainda em andamento, cujo marco foi a criação da Comissão de Anistia, em 2001.

A Ação Declaratória nos desperta também para seu aspecto ético: nosso direito de presenciar e ouvir, publicamente e com as garantias da Justiça, as narrativas doloridas de quem esteve nos cárceres da ditadura. Vislumbramos algum conforto ao ouvir os testemunhos diante do juiz. Recuperar os fatos nos ajuda a ultrapassar esse período sem ter de esconder nossas memórias de dor. É um caminho que busca a superação enfrentando a História e a memória, para simbolizar esse passado traumático e incorporá-lo ao presente.

Filósofos como Jacques Derrida e Paul Ricoeur apontaram a impossibilidade de controlar o tempo do luto ou de legislar sobre o imperdoável. O perdão, segundo Derrida, diz respeito à esfera privada, à intimidade da  vítima. Sua eficácia reside na sua condição excepcional que independe do arrependimento do agressor. Ricoeur, por outro lado, vislumbra possibilidades do perdão no plano político desde que não se imponha através da usura pelo tempo, a prescrição, ou pela usura da Justiça. Para ele, o perdão supõe o esquecimento da dívida, e não dos fatos. É preciso que haja vestígios dos fatos para vivenciar uma “terapia da memória”, importa curar a capacidade destrutiva das recordações. Haveria uma brecha em que o trabalho da memória e do luto se realiza junto com o pedido de perdão. Em diversos países, entretanto, pedidos de perdão caminham lado a lado com condenações criminais.

A Justiça, que representa a introdução de um “terceiro” a testemunhar em público essa dor, distancia vítima e agressor. A condenação penal possibilitaria o distanciamento do agressor da sociedade. A condenação civil contribui para o esclarecimento dos fatos e o acolhimento dessas narrativas por parte da sociedade2.

No Brasil, não conhecemos a importância do pedido de perdão na política, afinal, como afirmou Passarinho em recente artigo sobre a Lei de Anistia: “Não acenávamos com o perdão, que pressupõe arrependimento3.

Em editorial, a Folha de S.Paulo expressou sua opinião: “Se o direito de punir ressurgisse em favor de uma das partes, teria de ser de pronto estendido à outra, reabrindo feridas há muito cicatrizadas”. Seu tom nos lembra a declaração do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, quando disse ser radicalmente contra a abertura dos documentos sobre a ditadura: “Não há nada bonito ali” sobre os perseguidos e torturados4.

O editorial conclui: deixar de punir é garantia de que não haverá retrocesso na transição política, por outro lado, contesta a manutenção do “sigilo eterno” de documentos públicos. Acena com uma espécie de troca: não revisamos a Lei de Anistia, como fizeram outros países da América Latina, mas devemos abrir os arquivos sobre a ditadura.

Diversas experiências têm nos mostrado que a Justiça é um modo privilegiado de garantir o direito à verdade. Ela não exclui outras formas de alcançar um processo individual e coletivo de elaboração do passado, sem “apagar” nossas feridas e cicatrizes.

Confrontados com a impossibilidade de esquecer – pois não controlamos as memórias de corpos maltratados e da ausência de pessoas queridas –, percebemos, apesar das dificuldades, que temos condições de sobreviver com dignidade às atrocidades sofridas. História, memória e Justiça começam a se encontrar no Brasil.

Janaína de Almeida Teles é historiadora e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência e do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da USP; organizou o livro Mortos e Desaparecidos Políticos: Reparação ou Impunidade?