No final do ano, em 14 de dezembro, o presidente Lula sancionou a Lei Complementar nº 123, que institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Essa lei promove uma ampla reforma tributária, inteiramente progressista, ao transformar seis tributos federais, um estadual e um municipal de indiretos em diretos, tornando-os progressivos, ou seja, com alíquotas proporcionais à receita dos produtores de renda baixa e média.
Além disso, a lei lhes concede outros benefícios: simplificação dos registros contábeis e dos procedimentos para o registro dos empreendimentos e para o seu fechamento; favorecimento das microempresas (ME) e das empresas de pequeno porte (EPP) nas compras governamentais de até R$ 80 mil; ampliação das linhas de crédito dos bancos públicos e programas de apoio à inovação para essas empresas.
O significado social dessas medidas dificilmente poderá ser exagerado. O aumento acentuado dos empreendimentos de pequeno tamanho e baixa renda resulta das décadas perdidas de baixo crescimento e de abertura irresponsável do mercado interno às importações de países em que o custo da mão-de-obra ainda é menor que no Brasil. O Censo da Economia Informal do IBGE registrou em 1997 a existência de 9,5 milhões de empreendimentos em que trabalhavam 12,9 milhões de pessoas. Nada menos que 8,2 milhões de empreendimentos com 8,6 milhões de ocupados eram Por Conta Própria; o restante 1,3 milhão de empreendimentos com 1,6 milhão de trabalhadores era de Empregadores. Os informais realmente pobres eram os Por Conta Própria com receita média mensal de R$ 1.446; os Empregadores dispunham de receita média mensal de R$ 6.622, ou seja, cerca de 4,6 vezes maior.
Novo Censo da Economia Informal foi realizado pelo IBGE em 2003. Nesses seis anos o número total de empreendimentos atingiu 10,3 milhões, crescendo 9,1%, e o de ocupados alcançou 13,9 milhões, com aumento de 7,7%. O mais interessante é que nesse período apenas os empreendimentos Por Conta Própria cresceram 11,6% e o número dos que neles trabalhavam aumentou 10,7%; o número de empreendimentos informais de Empregadores caiu 6,6% e o dos que neles trabalhavam diminuiu 7,7%. O que esses dados indicam é que os índices de pobreza e de exclusão da economia informal pioraram ainda mais entre 1997 e 2003. Entre os Por Conta Própria a receita média mensal caiu 19,5% (de R$ 1.446 para R$ 1.164), ao passo que entre os Empregadores a queda foi de 8,9% (de R$ 6.622 para R$ 6.033)Os valores das receitas foram corrigidos pela inflação, entre 1997 e 2003, medida pelo IPCA..
A quase estagnação da economia, nesse período, acentuou a crise social brasileira, agravando o desemprego e a exclusão social. Para citar um único indicador, o desemprego aberto nas áreas metropolitanas, medido pelo IBGE, era de 5,7% em 1997 e subiu para 12,3% em 2003, mais do que dobrando nesses seis anos. Os que não têm recursos para continuar procurando emprego (enquanto não voltam a ganhar, vivem do FGTS e de outras economias) se refugiam na economia informal. Indagados sobre por que passaram a trabalhar informalmente, um terço dos Por Conta Própria informou, em 2003, que foi “porque não encontrou emprego”. No mesmo ano, a proporção correspondente entre os Empregadores foi de apenas 16%. Fica evidente que o nítido crescimento dos informais Por Conta Própria está, em certa medida, ligado ao aumento do número de desempregados e à duração do desemprego.
Trabalhadores pobres não têm possibilidade de formalizar seus empreendimentos em razão do dinheiro que esse processo demanda e do tempo que leva. Segundo informa o site do Sebrae, pesquisa do Banco Mundial revelou que “para abrir uma empresa o empreendedor é obrigado a se inscrever, isoladamente, em mais de dez órgãos e apresentar mais de 90 documentos. São necessários 152 dias e R$ 2.000 de custos”. Além disso, a empresa que não pode optar pelo Simples paga 12% de sua receita a título de tributos federais, mais 27% sobre a folha de pagamentos (INSS, Sistema S, Incra e Salário-Educação), além de 5% de sua receita a título de ISS municipal, quando se trata de prestadores de serviços. A isso é preciso acrescentar ainda o ICMS estadual e o trabalho que dá realizar todos esses pagamentos separadamente, fornecendo informações certificadas por contador a cada fonte arrecadadora.
Permanecer na informalidade é a única opção para empreendimentos com receita bruta média mensal de pouco mais de R$ 1.000, pelos números de 2003. Mas a informalidade é apenas outro nome para a exclusão social. Aparentemente, a empresa informal só tem vantagens ao escapar do ônus fiscal e das exigências burocráticas que pesam sobre as empresas formais. Mas é raro as informais atuarem no mesmo mercado que as formais, pois estas estão sujeitas à fiscalização e, portanto, não compram nem vendem às informais, que não podem fornecer as notas fiscais necessárias. Na prática, os informais ficam restritos a transacionar entre si, ou seja, a operar apenas em certos mercados em que a informalidade domina, como a agricultura e pecuária, os serviços pessoais, os serviços domésticos e a construção, em que são informais respectivamente 90%, 79%, 72% e 71% dos postos de trabalho, segundo o site do Sebrae.
A economia informal constitui mercados à parte, em que a concorrência tende a ser feroz, deprimindo os ganhos de todos, porque o crescimento do desemprego produz incessantemente fluxos de novos entrantes, que só podem conquistar um lugar nesses mercados baixando os preços, perpetuando assim as condições de pobreza que os caracterizam. Como mostram claramente os dados dos dois Censos da Economia Informal do IBGE: cresce o número de empresas e trabalhadores e cai sua receita média mensal.
Em dezembro de 1996, Medida Provisória do Presidente Fernando Henrique Cardoso foi transformada na Lei n°9.317, que instituiu o Simples. Por meio desse instrumento legal, seis tributos federais foram amalgamados e seu pagamento por ME e EPP foi simplificado e tornado proporcional à sua renda bruta. As alíquotas variam de 3% a 18,9%, conforme a faixa de receita bruta. Assim, por exemplo, uma empresa com receita bruta anual de R$ 120 mil a R$ 240 mil passou a pagar 5,4%; uma com receita bruta anual de R$ 960 mil a R$ 1,08 milhão passou a pagar 8,2%; com R$ 2,28 milhões a R$ 2,4 milhões de receita, a alíquota sobe a 12,6%. E todas se aplicam à receita bruta efetivamente auferida.
A Lei também simplifica a arrecadação desses tributos e dispensa as MEs e as EPPs do cumprimento de uma série de exigências burocráticas, de escrituração de livros etc. Ela define como ME as empresas com renda anual até R$ 240 mil e como EPP as com renda anual de até R$ 2,4 milhões. De acordo com texto “a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas e a política pública de compras governamentais”, de Bruno Quick Lourenço de Lima André Silva, no site do Sebrae, “o Simples (...) revolucionou o tratamento tributário dispensado a essas empresas, com resultados extremamente positivos no que tange à formalização de empresas e postos de trabalho. Vale ressaltar que o Simples foi o grande impulsionador da formalização de pequenos negócios quando de sua promulgação, mas, alguns anos depois, sua eficácia foi se perdendo por uma série de distorções, como a falta de atualização das faixas de enquadramento, que causou a majoração artificial das alíquotas para as empresas optantes, assim como a reiterada exclusão de atividades do regime. O fato é que atualmente o Simples (...) não consegue mais, por si só, impulsionar a formalização de determinados empreendedores”.
Esse primeiro Simples teve impacto limitado. Dos empreendimentos de economia informal recenseados pelo IBGE em 2003, apenas 1,3% dos Por Conta Própria e 8,5% dos Empregadores haviam aderido ao Simples. É possível que esses baixos índices de adesão se devam ao fato de o Simples não abranger impostos importantes, como o ICM e ISS, que ainda têm de ser pagos na íntegra pelos optantes. Além disso, pode ser que o conhecimento da criação do Simples não tenha penetrado nas áreas mais pobres e menos desenvolvidas, em que a informalidade é a regra. Se isso for verdadeiro, milhões de empreendimentos que se classificam como ME e EPP deixam de se beneficiar do Simples em vigor, pois a própria exclusão social os distancia de tal modo do âmbito das leis e regulamentos que ignoram tais oportunidades de integração à economia formal.
Seja como for, em 2003 já estava claro que a efetividade do Simples teria de ser ampliada para que os milhões de empreendimentos informais pudessem romper a barreira fiscal e burocrática que os exclui do mundo econômico legal. A Reforma Tributária aprovada em dezembro de 2003 incluiu no artigo 146 da Constituição Federal dispositivos que determinam que “Cabe à lei complementar: (...) III estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: (...) d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte. (...) Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (...)”.
Estava aberta a porta para o Supersimples, que passou a ser discutido entre o Sebrae e as entidades representativas das micro e pequenas empresas e em seguida no Congresso. O resultado de quase três anos de negociações, que envolveram o fisco da União, estados e municípios, os partidos políticos e representantes dos principais interessados, é a lei complementar agora sancionada. E ela representa de fato uma ampliação significativa do Simples em vigor, como veremos a seguir.
O novo Estatuto Nacional da ME e EPP agora abrange tributos federais, estaduais e municipais, ao incluir o ICMS e o ISS no amálgama de impostos que serão pagos em conjunto, sujeitos a alíquotas progressivas, de acordo com a receita bruta das empresas. A inclusão desses dois impostos implicou um ligeiro aumento das alíquotas hoje vigentes, mas o que importa é que a partir de julho deste ano, quando o novo regime fiscal entrar em vigor, a carga tributária das empresas optantes pelo Supersimples será consideravelmente menor. Segundo o Sebrae, a redução para quem já é do Simples é da ordem de 20% e para quem não é pode chegar a 45%.
Foram simplificados e barateados os procedimentos para abrir, e também para fechar, ME e EPP, o que reduz um dos principais obstáculos à formalização. No Simples atual estão impedidas de optar por ele quase 1 milhão de MEs e EPPs prestadoras de serviços, possivelmente porque se supõe que já são formais pela sua natureza. O Supersimples reduz o âmbito dessas vedações, possibilitando a cerca de 200 mil empresas optar por ele.
Outras medidas adotadas pela Lei nº 123/2006 concernem ao crédito: os bancos comerciais públicos deverão manter linhas de crédito específicas para ME e EPP e divulgá-las amplamente; o Fundo de Amparo ao Trabalhador poderá oferecer recursos financeiros para cooperativas de crédito, formadas por MEs e EPPs, destinados exclusivamente a elas. Além disso, as agências de fomento a inovações tecnológicas deverão manter programas específicos para ME e EPP, devendo dedicar-lhes no mínimo 20% dos recursos destinados a esse fim.
No meio de tantos benefícios, a lei do Supersimples introduz uma nova restrição que não há no Simples anterior: seu § 4º do artigo 3º diz que “não se inclui no regime diferenciado e favorecido por esta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, a pessoa jurídica: (...) VII constituída sob a forma de cooperativa, salvo as de consumo”. É difícil imaginar os motivos que levaram à inclusão desse dispositivo, até porque a Constituição Federal dispõe que “a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo” (§ 2º do artigo 174). Além disso, o Mapeamento da Economia Solidária no Brasil, promovido pela Secretaria Nacional de Economia Solidária, mostrou que, em 2005, a maioria das empresas de economia solidária eram cooperativas informais porque não tinham os recursos necessários para se legalizar.
O fato de as cooperativas, exceto as de consumo, estarem excluídas do Supersimples é, até agora, desconhecido da grande maioria do movimento, pois em momento algum foi ventilado publicamente, antes de aprovada a lei. A falta de discussão impediu que os legisladores fossem alertados de que o cooperativismo, formalizado ou não, tem sido um dos principais meios de cidadãos sem emprego e sem trabalho se organizarem para exercer atividades remuneradas de forma associada.
A exclusão das cooperativas de produção dos benefícios do Estatuto das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, além de injustificada é injusta, pois pune empreendimentos enquadrados entre as MEs ou EPPs, pelo fato de se associarem de forma democrática e igualitária, própria do cooperativismo. Urge a revogação pura e simples dessa injustiça, que atinge comprovadamente mais de 1 milhão de brasileiros.
Finalmente, não se pode esquecer que a mera sanção da lei não basta para que gere os efeitos que dela se esperam. É preciso mobilizar todos os movimentos sociais, sindicatos, entidades de fomento para divulgar as novas possibilidades de inclusão social entre os maiores interessados, motivando-os e habilitando-os a optar pelo novo regime fiscal e administrativo e assim conquistar a cidadania social e econômica.
Paul Singer é secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego