Internacional

Kiva Maidanik manteve a lucidez, a dignidade e, não raro, a ironia, essa arma fundamental para enfrentar as armadilhas que a vida e a História colocam em nosso caminho

Kiva Maidanik nos deixou no último Natal, em Moscou. A notícia de sua morte espalhou-se rapidamente por toda a esquerda latino-americana.

“Ortodoxos” e “heterodoxos” manifestaram seu pesar e celebraram sua contribuição intelectual e política para a renovação do pensamento de esquerda no continente.

Cada um terá razões próprias para homenagear Kiva. Todos teremos uma razão comum para evocar este russo simpático e jovial, apaixonado por nossa América, que viveu simultaneamente as profundas transformações pelas quais passou sua União Soviética. Manteve a lucidez, a dignidade e, não raro, a ironia, essa arma fundamental para enfrentar as armadilhas que a vida e a História colocam em nosso caminho.

“Conheci-o” primeiro quando, ainda no exílio, nos anos 70, li os artigos que publicava na revista soviética América Latina, sobre as lutas políticas em nosso continente. Anos sombrios aqueles, em que a região vivia mergulhada em ditaduras e as esquerdas sofriam duríssimos golpes, com inestimáveis perdas humanas.

Kiva rompia com o esquema político tradicional dos partidos comunistas e propunha uma alternativa revolucionária. Deu razão à esquerda revolucionária que propugnava o caminho armado e influenciou os PCs que tratavam de explorar outros caminhos, como foi o caso do chileno e de alguns da América Central.

Depois, conheci-o pessoalmente, em muitas reuniões no Brasil em países da América Latina e na Europa. Os tempos eram outros. As ditaduras da América do Sul não haviam sido derrubadas pelas armas, mas por suas próprias contradições e pela ação de amplos movimentos populares e democráticos. Na América Central a luta guerrilheira vitoriosa (Nicarágua) ou não (Salvador e Guatemala) havia aberto o caminho de uma democratização política sem precedentes.

Maidanik teve aguda sensibilidade para as transformações em curso no continente. Expressão particular disso foi sua enorme simpatia pela experiência do Partido dos Trabalhadores no Brasil.

Fazia tempo que não o via, mas sempre estávamos trocando uma palavra escrita, ou uma mensagem por um amigo comum.

Não sei qual sua opinião sobre a evolução recente de seu país. Lembro que quando da primeira eleição de Putin, ele votou por Gorbachov. Não compartilhei sua decisão, mas entendi os argumentos que me deu. As escolhas, naquele contexto, não eram fáceis.

Mas lembro, sobretudo, as muitas afinidades que constatamos desde nosso primeiro encontro. Além de percepções políticas comuns, a paixão pelas mesmas cidades – Praga, Florença e a hoje São Petersburgo. Havia ainda a cardiopatia que nos afligia e acabou levando-o. Por fim, a fidelidade a certos princípios que não abandonamos a despeito dos reveses que a história em algum momento nos impôs. Ele combinava com naturalidade um certo desencanto com um incorrigível otimismo.

Uma vez o convidei para uma conferência na Unicamp. Ele concluiu suas palavras dizendo que a humanidade tinha três enormes dívidas para com a União Soviética.

A primeira foi ter derrotado Hitler e o fascismo. A segunda foi ter “civilizado o capitalismo”, em alusão ao medo que a URSS despertara na burguesia européia, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, obrigando-a a fazer importantes reformas econômicas e sociais. A terceira foi ter ensinado às esquerdas do mundo o que não se deve fazer...

Ainda sobrou em meu freezer um resto de vodca, numa garrafa que ele me deu de presente há anos.

Lamentavelmente não poderei beber sua saúde. Será, no entanto, a ocasião para evocar a memória de um homem que soube mudar, sem mudar de lado. Um homem digno e simples, que hoje estaria surpreso com os amigos que teve e a saudade que deixou.

Marco Aurélio Garcia é assessor para Política Externa da Presidência da República