Cultura

Além da temática de alcance popular, turbinada por desejos incontroláveis e paixões desafiadoras, a marca do diretor espanhol é o modo de retratar os relacionamentos humanos que parece se limitar ao emocional, mas guarda muitas outras leituras

Como Bergman e Fellini, nos anos 60 e 70, e Woody Allen, a partir da década seguinte, só em raros momentos a assinatura de um diretor produz o efeito de atrair a atenção de públicos maiores que o de freqüentadores de mostras e de ratos de cinemateca. Com uma filmografia que acumula catorze títulos, iniciada em 1980, o nome do diretor espanhol Pedro Almodóvar exerce um poder de sedução por motivos diferentes do modelo tradicional de chamar público – um nome forte no elenco ou uma trama bem construída e bem narrada.

Trata-se de uma assinatura que designa uma identidade, que consiste numa estilística fácil de reconhecer, além da temática de alcance popular, turbinada por desejos incontroláveis e paixões desafiadoras, quase sempre protagonizada por mulheres. Mais que isso, contudo, a marca Almodóvar é a chave pela qual seu público cativo ganha acesso a um universo, a um modo de retratar os relacionamentos humanos de maneira que parece se limitar ao emocional, mas guarda muitas outras leituras em seus labirintos. Mergulhar periodicamente nesse universo é o que o diretor espanhol oferece quando exclui o nome Pedro e coloca só seu sobrenome ao fim dos créditos: um filme de Almodóvar. Eis a chave para um prazer que o público busca e sabe que encontrará graças ao efeito da repetição.

Ciente desse poder, mas sempre atento aos riscos do auto-encantamento, Almodóvar retoma a cada vez a viagem a esse universo e evita a cada passo cair nas armadilhas do déjà vu. É essa lógica de um retorno como algo que se repete para seguir adiante de forma renovada que constitui um dos mais evidentes segredos da beleza e da alegria contidas nas imagens de Volver, mais recente longa-metragem do diretor. Nessa história da mãe morta que volta, o fantasma não se resume ao de alguém que partiu.

A palavra-título funciona como porta de entrada para a trama, mas é, sobretudo, sinônimo de um elaborado programa narrativo. Na primeira cena nosso olhar é conduzido por um deslocamento de câmera da esquerda para a direita. Em meio aos túmulos de um cemitério, as imagens nos apresentam as personagens Raimunda, Soledad e Paula cuidando da tumba da mãe, que morreu abraçada ao pai num incêndio. O modo de apresentar os créditos (um momento sempre exuberante nos filmes de Almodóvar), introduzindo as palavras ao contrário, do fim para o princípio, já atualiza um dos tantos sentidos da palavra volver, aqui traduzida visualmente, isto é, como cinema.

Mas essa é só a primeira de uma longa série de “retornos” que constituem a riqueza do relato que veremos em seguida. A trama, por exemplo, aparentemente narra o retorno de Irene, a mãe morta. O truque de roteiro, portanto, não se limita a produzir essa surpresa, alimentando-se dela como um fio que reúne um conjunto muito mais amplo e significativo de retornos. A primeira cena, por exemplo, narra um retorno das filhas à aldeia onde nasceram para cuidar do túmulo. É ao retornar para casa que Raimunda descobre a situação traumática sofrida por sua filha, Paula. A amiga Agustina também aguarda um retorno, o de sua mãe desaparecida. Por fim, é no reencontro de Raimunda e Irene que é dada ao espectador a chave de um terrível segredo, outro retorno, dessa vez com toda a força do recalcado.

Nas idas e vindas das personagens entre Madri e a região de La Mancha, os moinhos de vento funcionam como um signo forte que reitera essa circularidade que move as histórias particulares de cada personagem. Moinhos contra os quais lutou um dia Dom Quixote, em cujo imaginário, ressalte-se, eles surgiam como fantasmas. O retorno da atriz Carmen Maura à família almodovariana, da qual havia sido deslocada, por conflitos pessoais, é um signo a mais em um filme repleto de significados sobre voltas. Como retorno à própria infância do diretor, vivida na região de La Mancha, Volver ganha também o sentido de rememoração.

Não menos relevante é o significado de Volver no tratamento do tempo que o cineasta dá no relato. Ele descarta, por exemplo, o recurso à forma mais óbvia e codificada de recuo no tempo no cinema – o flashback – na cena do crime fundamental da ação. Ao espectador é dado apenas seu efeito, no presente, no olhar atônito de uma personagem. E, a despeito de o filme ser sobre retornos, em nenhum momento é oferecida ao espectador uma imagem do passado, enquanto a trama se projeta no tempo sob a forma da memória em diálogos. Por fim, Volver é um retorno também no sentido em que o filme transita do cômico ao dramático de maneira quase imperceptível, um modo de conciliar o humor e o amargor tão característicos dos dois momentos da obra do diretor.

Sua carreira comercial iniciou-se em 1980, com comédias de costumes escrachadas, seu modelo de expressão durante a chamada La Movida, no momento histórico de liberação de costumes depois de décadas de repressão cultural e comportamental da Espanha sob a ditadura franquista. Pepi, Luci y Bom y otras Chicas del Montón, Maus Hábitos, Labirinto de Paixões e Que Fiz Eu para Merecer Isto? constituem, até 1985, uma atitude, uma resposta punk aos valores conservadores que Almodóvar já havia elegido como alvo desde um de seus primeiros filmes, em 1974, o curta-metragem Filme Político, feito em super 8. Nos anos seguintes, a filmografia recuou na irreverência e apontou novos rumos, com Matador e A Lei do Desejo, nos quais o cineasta filtrou o escracho para abordar a fúria da sexualidade de maneira não tão estritamente juvenil.

O sucesso que o projeta internacionalmente é a comédia Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, quando já se pode constatar a cristalização de um conjunto de efeitos (a hipérbole cênica, a histeria das personagens predominantemente femininas, o tratamento jocoso do emocionalismo romântico, as imagens assumidamente kitsch) que logo funcionaria como imagem de marca. Tais signos permitiram, filme a filme, reconhecer uma assinatura, um universo e uma abordagem capazes de dar sentido ao neologismo almodovariano. Os riscos do estereótipo, porém, logo se fizeram sentir (problema que Fellini também teve de enfrentar em sua carreira, quando se tornou acuado pela emergência do termo “felliniano”). Não destituídos de graça e de sofisticação, os títulos seguintes, Ata-me, De Salto Alto e Kika tendem a revelar, quando revistos retrospectivamente, a consolidação de uma fórmula, eficaz do ponto de vista comercial, mas letal na perspectiva artística. São todos filmes almodovarianos, no sentido estereotipado da expressão. Observam-se aqui e ali tentativas isoladas de escapar dos efeitos do aprisionamento narrativo e de superar os limites já alcançados do gênero comédia. Em de De Salto Alto, por exemplo, o diretor introduz a figura do trauma através da lembrança, amenizando com o cinza do drama as cores excessivas de seus cenários e de suas tramas.

É a partir de A Flor do Meu Segredo, considerado por muitos o primeiro filme adulto de Almodóvar, que o diretor altera radicalmente o tom de suas histórias. Aparentemente cansado de ser sinônimo de comédia, parte para outro gênero solidamente constituído desde o cinema clássico, o melodrama, e o aborda sem precisar abandonar suas obsessões temáticas, como os efeitos do desejo e as formas da paixão. Nos filmes seguintes, Carne Trêmula, Tudo sobre Minha Mãe, Fale com Ela e Má Educação, percebe-se como o melodrama oxigenou a visão das relações humanas na ótica de Almodóvar, a ponto de encantar platéias ainda maiores que as de suas comédias. É no tratamento que dá ao gênero, porém,que o diretor alcança o status de grande artista. Cheio de riscos (o derramamento emocional, o romantismo fora de moda, entre outros), o melodrama pode se tornar, em mãos inábeis, umgênero-armadilha.

Num reflexo, contudo, do modo como o alemão Rainer Werner Fassbinder adotou esse código de gênero para traduzir sua interpretação extremamente política da sociedade alemã do pós-Segunda Guerra, o cinema de lágrimas se converteu em bisturi da alma nas mãos de Almodóvar. Em todos os títulos dessa fase, a renovação estilística tornou bastante clara a acepção de “política” no vocabulário do diretor espanhol. Sua aparência de dramas confessionais não esconde um interesse de igual tamanho pelas relações de poder, cujo núcleo se encontra nas mais comuns formas de posse, de ciúme, de vingança e de abuso. Sobre Volver, o diretor diz que “a mãe retorna para fazer suas filhas descobrirem e para nos fazer descobrir que o inferno e o purgatório são aqui mesmo, que a justiça entre os seres humanos é possível, mas que é na  Terra que precisamos realizá-la”.

Com essa utopia da liberação, aqui traduzida num universo de mulheres em que os homens foram extintos, Almodóvar olha para o passado para descobrir e nos fazer descobrir que, dele, pelo menos o cinema projeta um outro presente.

Filmografia

2006 - Volver (Volver)

2004 - Má Educação (La Mala Educación)

2002 - Fale com Ela (Hable con Ella)

1999 - Tudo sobre Minha Mãe (Todo sobre Mi Madre)

1997 - Carne Trêmula (Carne Trémula)

1995 - A Flor do Meu Segredo (La Flor de Mi Secreto)

1993 - Kika (Kika)

1991 - De Salto Alto (Tacones Lejanos)

1990 - Ata-me! (¡Átame!)

1988 - Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios)

1987 - A Lei do Desejo (La Ley del Deseo)

1986 - Matador (Matador)

1985 - Tráiler para Amantes de lo Prohibido (para TV)

1984 - Que Fiz Eu para Merecer Isto? (¿Qué He Hecho Yo para Merecer Esto?)

1983 - Maus Hábitos (Entre Tinieblas)

1982 - Labirinto de Paixões (Laberinto de Pasiones)

1980 - Pepi, Luci, Bom y otras Chicas del Montón

1978 - Folle... Folle... Fólleme Tim!

1978 - Salomé

1977 - Sexo Va, Sexo Viene

1976 - Muerte en la Carretera

1976 - Sea Caritativo

1975 - Blancor

1975 - La Caída de Sódoma

1975 - Homenaje

1975 - El Sueño, o la Estrella

1974 - Dos Putas, o Historia de Amor que Termina en Boda

1974 - Film Político

Cássio Starling Carlos é crítico de cinema da Folha de S.Paulo e professor