Internacional

A história dos povos da África acrescentou ao Fórum Social Mundial testemunhos de resistência cultural e tornou mais próximas pessoas e histórias que a mídia faz parecer inacessíveis

No dia 11 de março 56 jovens de uma rede de ativismo social chamada Parlamento do Povo (ou Bunge la Mwananchi, em suaíli) foram detidos na cidade de Nairóbi, capital do Quênia, sem explicação da polícia. Ficaram presos durante alguns dias, gerando protestos pela internet.

Logo após as detenções, circularam notícias de que o Parque Jeevanjee Gardens, que o grupo utiliza para se reunir diariamente já há 15 anos e onde o evento paralelo ocorreu, começara a ser murado para uma reforma promovida pela Prefeitura de Nairóbi, com apoio do Programa Habitat, da ONU.

Até outro dia, o que se passava no Jeevanjee Gardens interessava apenas a habitantes de Nairóbi, que tinham nos seus gramados um lugar de descanso nos finais de tarde. A juventude que mora nas muitas e imensas favelas da cidade vai ao parque para seus encontros e performances culturais. O local é alvo da polícia, que vigia o lugar preferido para manifestações sociais, políticas, artísticas e prendeu, por fim, as 56 pessoas do Parlamento do Povo.

Depois da sétima edição do FSM, essas detenções anônimas ganharam rostos e o parque ganhou importância para mais pessoas além da cidade, e além da África. Foi um dos efeitos FSM.

“Nos últimos dias, a internet tem dado lugar a uma guerra silenciosa, que assume aos poucos uma dimensão global”, noticiou o jornalista Joseph Ngunjiri, do Daily News, de Nairóbi, referindo-se ao episódio do Jeevanjee. As iniciativas do Parlamento do Povo eram antes “ignoradas”, segundo ele, mas algo mudou.

Como seus participantes estavam “ativando contatos feitos no recém concluído Fórum Social Mundial”, escreveu ele, os e-mails agora estavam “fluindo copiosamente de várias partes do mundo”. As pressões levaram o Programa Habitat e a prefeitura a publicar esclarecimentos, a negar a construção de uma estação de ônibus no Jeevanjee e a defender suas ações, segundo o jornal.

A rede ficou conhecida do universo do Fórum Social Mundial, em sua recente edição, de 20 a 25 de janeiro, por protestar contra taxas de inscrição consideradas impeditivas e realizar um evento paralelo e de entrada gratuita para “levar o FSM até o povo de Nairóbi”. Foi ao mesmo tempo partícipe do FSM 2007, crítica a seu formato e tornou-se parte de seu processo.

Rosto africano

A sétima edição do FSM avançou um pouco mais no propósito de fincar raízes nos vários continentes do Hemisfério Sul e ampliar ligações entre resistências africanas e mundiais ao neoliberalismo e suas armas. Testemunhou o surgimento de novos laços entre camponeses do Quênia e a Via Campesina, por exemplo. E olhares diferentes sobre a luta pela terra se encontraram até com espanto.

A camponesa Mirian Wanjiku Ndungu, do Kenya Squatters Social Movement, não conseguia imaginar – sem rir, divertida – seu grupo invadindo uma terra improdutiva como faz o MST, no Brasil, para exigir reforma agrária. Ao final do FSM, estava filiada à Via Campesina, com toda a sua comunidade que vive ao pé do Monte Quênia, no coração do país.

Outros encontros foram relatados no dia 17 de março, no evento “Diálogos com a África”, promovido por algumas organizações do movimento negro e social brasileiro e dedicado aos laços sociais, políticos e afetivos entre ativistas do Brasil e de países africanos, por motivos que vão do combate à dívida externa ao intercâmbio de hip-hop, da solidariedade aos presos de Nairóbi aos diálogos sobre educação e comunicação.

Cartazes recolhidos pela organização Soweto no Estádio Moi, onde se realizou o FSM, transportaram um pouco do clima e das preocupações africanas para uma exposição na Ação Educativa, em São Paulo. Refletiu um FSM que estruturou seus temas em função de ações e campanhas que os movimentos e organizações participantes já fazem, através de consulta prévia para saber quais eram elas.

Os assuntos não foram tão diferentes dos anos anteriores, mas, com o testemunho africano sobre suas próprias lutas e resistências, o termômetro das mazelas mundiais observado no FSM elevou bruscamente a marca da temperatura. Não há política ou descaso associado ao processo de globalização neoliberal cujo impacto não seja maior na África: devastação ambiental e saque de riquezas, aids e miséria, conflitos étnicos utilizados como pretexto para intromissão externa e militarização, privatização e doses adicionais de dominação patriarcal e religiosa.

A imagem impressa da escultura de uma adolescente grávida crucificada transportou um pouco do clima FSM 2007, onde a obra circulou para divulgar uma campanha contra o fundamentalismo, e provocou impacto, em uma cidade de grande influência cristã, além da participação de grupos religiosos em várias atividades inscritas.

Ao mesmo tempo, a história dos povos da África acrescentou ao evento testemunhos de resistência cultural, nos quais o FSM busca inspiração desde que surgiu, em 2001. Produções musicais e das mídias alternativas de Nairóbi sobre o que seus movimentos culturais estão fazendo hoje circulam entre artistas e comunicadores que compartilham atividades no universo do FSM, como a Aliança Afro, com hip-hop, a Ciranda Afro, com jornalismo, e o grupo MAU, de arte e mídia de Nairóbi.

Um mundo mais perto de nós

Nairóbi 2007 tornou mais próximas pessoas e histórias que a mídia faz parecer inacessíveis ou hostis. Nunca uma edição do FSM se deu tão perto de cenários midiáticos em que as bombas caem como se tudo abaixo delas fossem bases da Al-Qaeda e os mortos e refugiados fossem números.

A bola da vez, em janeiro, foi a Somália. Participantes do FSM chegaram logo depois da explosão das bombas norte-americanas naquele país vizinho – sempre explicadas segundo a mais recente versão do combate ao terrorismo. Os inimigos seriam os tribunais islâmicos, conforme o noticiário, e o país anfitrião do Fórum fechou suas fronteiras aos vizinhos a noroeste.

A delegação somali que iria em caravana foi barrada pelas forças de segurança e a notícia de sua ausência no FSM falou tão alto como se a Somália lá estivesse, como uma outra espécie de evento paralelo. Aos poucos as aflições de um mundo distante começaram se mostrar bem mais próximas do que sugerem as notícias da CNN.

Participantes do FSM conviveram com histórias de sobreviventes do vizinho Sudão que procuram refúgio em um país que não é o seu e de soldados da vizinha Etiópia empurrados para uma guerra que não é a sua. Conheceram famílias desgarradas de suas tribos que se espremem em favelas sem água, sem banheiros, na esperança de empregos que não existem.

Ao mesmo tempo era possível passear pelo Estádio do Kasarani, durante os quatro dias, seguindo apenas um roteiro de peças, danças, percussões e performances africanas, dos grupos inspirados no movimento Mau Mau, que lutou contra a colonização britânica, ou das mulheres massais, que mantêm tradições tribais, mas já não querem o casamento precoce de suas meninas.

Em vez de saber das histórias de guerra da boca de participantes etíopes, também havia a escolha de juntar-se às suas atividades de comércio justo e, como um ato de resistência ao livre-comércio, provar seu café orgânico, preparado ali mesmo, lentamente, entre brasas e incensos de aromas indescritíveis e finalizado com algumas gotas de massala.

Lentes de aumento

O FSM na África exigiu dois anos de mobilização e um visível esforço local e regional para dar conta de um evento caro e complexo sem importar modelos. Embora cumprida a tarefa, as expectativas sobre Nairóbi colaboraram para que nada no evento escapasse aos olhares questionadores das próprias organizações que lá se reuniram para produzi-lo, as do Quênia e as visitantes.

O Conselho Internacional, nos dias seguintes, teve de lidar com uma lista eloqüente de erros a corrigir e providências a tomar no futuro. Além das taxas de inscrição criticadas localmente, a multinacional CelTel participou do credenciamento por meio da venda compulsória de chips de seus celulares. A organização dos estandes permitiu a entrada de um hotel de luxo, o Windsor, para vender alimentos, naturalmente caros. A presença de grupos antiaborto dentro do estádio e manifestações homofóbicas na festa de encerramento completaram a lista de queixas.

Em decorrência, Nairóbi cobrou que o Fórum se abra mais deliberadamente para a participação popular nos seus encontros e se feche mais categoricamente aos grupos que combatem direitos e liberdades, por exemplo. Protestos e rebeldias acabaram contribuindo para que o universo FSM refletisse sobre si mesmo e suas contradições, o que é a marca desse evento.

Os debates pautados em Bamako sobre o papel do FSM também continuaram reverberando na África 2007. Críticas e acertos vieram conforme a ênfase na vocação do FSM como “arena ou ator”, como resumiu o título de um debate promovido pelo finlandês Network Institute for Global Democratization (NIGD). Se o FSM é espaço de encontro, articulador de resistências, catalisador de alternativas, fermento de teorias novas ou ambiente propiciador de grandes convergências e unidades, acabou tendo um pouco de tudo.

A próxima jornada do FSM, em 2008, não terá uma sede, será feita de mobilizações globais na mesma época do Fórum Econômico de Davos. A decisão já estava tomada antes de Nairóbi, indicando que, mais uma vez, o FSM vai experimentar novidades e assumir riscos na continuidade do processo. E por isso a edição de 2007 foi observada como um balizador da saúde do FSM, a indicar se o vigor da proposta nascida em 2001, em Porto Alegre, está minguando ou se transformando. Se as jornadas mundiais serão vistas como evento globalizado ou apenas como um não-evento, um descanso até 2009.

No encontro “Diálogos com a África”, ficou clara a vontade brasileira de influenciar o processo. A escolha da próxima sede do FSM será debatida em junho deste ano, na cidade alemã de Rostock, pelo Conselho Internacional. Uma das candidatas é a cidade de Salvador, entre sugestões de cidades na fronteira entre Estados Unidos e México e na Ásia. Mas a idéia surgida nos “Diálogos” é a de ir para a Bahia mais cedo.

Uma grande atividade em Salvador poderia marcar a participação brasileira nas jornadas mundiais de janeiro de 2008, segundo Salete Valesan Camba, do Instituto Paulo Freire. E isso abriria a possibilidade de uma nova indicação, quem sabe na Amazônia, para 2009.

Rita Freire é jornalista, editora da Ciranda Internacional da Informação Independente