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Do Cafundó (SP) a Alcântara (MA), do mais escondido ao mais próximo das cidades, o tema que une mulheres, homens e crianças dos milhares de comunidades quilombolas é o direito à terra

Se os números da pesquisa realizada pelo Centro de Geografia e Cartografia Aplicada refletem a realidade, podemos dizer que hoje no Brasil existem pelo menos 2.228 comunidades quilombolas. Estimativa dos movimentos sociais aponta 4.500 comunidades no país, que podem estar nos mais diversos rincões, escondidas no meio do mato, afastadas da dita “civilização”, ou mesmo em áreas urbanas. São diversas e vivem (ou sobrevivem) de maneira igualmente diversa, com culturas particulares, mas o problema central de todas é o mesmo: a luta pela terra que lhes pertence.

Pesquisar sobre quilombos ou conhecer essa realidade revela que há muito chão a trilhar, apesar da vitória conquistada com a Constituição de 1988, que garante aos remanescentes de quilombos o reconhecimento da propriedade, “devendo o Estado emitir- lhes os títulos respectivos”.

Para a coordenadora da Comissão Pró-Índio de São Paulo, Lúcia Andrade, “as terras de quilombo foram conquistadas a partir de diversas formas de resistência. Não só por meio das fugas com a ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também como heranças e doações, como pagamento de serviços prestados ao Estado, pela compra e ainda pela ocupação de áreas no interior de grandes propriedades”.

E é esse o caso, por exemplo, da comunidade de Cafundó, no município de Salto de Pirapora, interior do estado de São Paulo. São 25 famílias ocupando terra doada pelo então senhor de escravos há 244 anos. Descendentes de negros trazidos do norte de Angola, as 105 pessoas que lá resistem estão ilhadas em seu território. Posseiros foram chegando, invadindo e tomando terras. As famílias ficaram com a pior parte, pouco própria para agricultura, e agora aguardam ansiosamente para descobrir se a única plantação que possuem, de milho, prosperará. Sobrevivem da venda de esteiras de taboa e camisetas do quilombo, fazem bicos na cidade ou nas chácaras instaladas dentro de suas terras. Muitos querem tentar a vida em outra cidade. Lá não há escola e algumas vezes na semana recebem visita de médico da família. Dois projetos foram estabelecidos com a Secretaria Estadual de Cultura: aulas de capoeira e danças tradicionais para as crianças e a edição de um livro narrando a história do quilombo.

A briga do povo do Cafundó é com gente importante e o coordenador da comunidade, Marcos Norberto de Almeida, conta desanimado que se a solução demorar muito os jovens partirão de vez, cansados de esperar ou porque a terra não terá mais nenhuma serventia, quando for deles de verdade.

Pedro de La Torre, posseiro de grande parte do quilombo, produziu um enorme “deserto verde”. São milhares de pés de eucaliptos para a produção de celulose e uma mineradora que estão destruindo a natureza local. Os jagunços do posseiro por enquanto só ameaçam, mas os moradores do quilombo, para sair ou entrar em suas terras, precisam atravessar território inimigo. Para quem possuía inicialmente 218 alqueires, restarem somente 7,5 alqueires e ainda ter de rezar para a plantação dar certo, há pouco o que comemorar. Regina Aparecida Pereira, também do Cafundó e da Coordenação Estadual de Quilombolas, diz que eles têm fama de “reclamões”. Mas estão articulados na luta pelos direitos, vão atrás de projetos para dinamizar o ensino, a saúde e a cultura e dizem esperar muito do governo petista.

O presidente Lula, sensibilizado com a situação dos quilombos, quer que seu governo faça valer a Constituição. Mas, como lembrou um técnico do Incra, existe um braço-de-ferro entre a ação política governamental, que declara e escreve que quer resolver a questão, e o jurídico, pois no Brasil forjado no colonialismo o direito à propriedade é superior aos demais, com leis elaboradas para proteger a elite e muitos posseiros.

Dificuldades e avanços

Marcos, liderança do Cafundó, reclama, conta muitas desgraças, mas faz questão de afirmar que seu voto foi para Lula e acredita que o presidente está do lado dos quilombolas. Entre suas queixas cita a conhecida morosidade da Justiça, os descaminhos de uma ação e a falta de informação sobre o processo.

O antropólogo Alfredo Wagner constata dois entraves às titulações definitivas das comunidades: “Dispositivos jurídico-formais e procedimentos burocrático-administrativos que orientam a operacionalização do artigo 68; e as estratégias de interesses econômicos que detêm o monopólio da terra”.

Mas, desde a promulgação da Constituição de 88, os quilombolas foram crescendo em organização. Os especialistas inclusive afirmam que foi o artigo 68 da Constituição que fez com que eles fossem juntos à luta.

O quilombo Abrobal, na cidade Margem Esquerda, no Vale do Ribeira (SP), também sofre por ainda não ter suas terras reconhecidas. São 150 famílias remanescentes de escravos fugitivos que utilizavam o Rio Iguape. Duas lideranças da comunidade, Benedita da Costa e Leonilda da Costa, contaram, nos intervalos da Assembléia Popular, que estão organizadas, lutam pela terra e pela sobrevivência e, por isso, atuam nas lutas dos movimentos sociais, para onde levam os temas dos quilombolas. O povo do Abrobal comercializa banana e também planta feijão, milho e mandioca para uso, mas a associação responsável por encaminhar a regularização do quilombo ainda não iniciou o pro- cesso. Com isso, reclamam as duas lideranças, não há possibilidade de financiamentos. As treze máquinas de costura que foram doadas pela Fundação Palmares estão paradas, já que não há dinheiro para construir um espaço para seu funcionamento.

Abrobal tem escola de ensino fundamental, mas posto de saúde só no município de Eldorado. Eles sonham com a regularização, com outros meios de subsistência, e também estão na luta para evitar que seja construída uma barragem na região. “Queremos levar a informática para lá. Mas sem o título da terra não dá”, conta Benedita.

O presidente do Incra, Rolf Hackbart, é categórico ao afirmar que, graças ao governo Lula, “pela primeira vez o Estado brasileiro está atendendo a um direito das comunidades quilombolas. Eles começam a entrar na República”.

O Decreto 4887 determina ser responsabilidade do Incra identificar, delimitar e titular essas áreas. Para Rolf, apesar de ser um “processo lento, difícil e conflituoso”, trata-se de uma outra reforma agrária e, como conseqüência, um novo ordenamento territorial. O sistema tradicional de uso das terras alicerçou a proposta de regularização por meio de títulos coletivos, outorgados em nome das associações, por serem consideradas um bem de uso comum e ocupadas segundo regras baseadas nas relações de solidariedade e ajuda mútua.

As áreas tituladas somam até agora 38.586 hectares, beneficiando cerca de 1.528 famílias. Existem no Incra, atualmente, 492 processos para regularização de territórios quilombolas, abrangendo mais de seiscentas comunidades, localizadas em todos os estados brasileiros, com exceção de Roraima e Acre. As áreas já tituladas situam-se nos estados do Pará (duas áreas), Bahia (uma), Maranhão (dezesseis), Amapá (uma) e Piauí (duas).

Ação governamental

Sem o título definitivo ou a legalidade das áreas, a possibilidade de políticas públicas é quase zero. O Programa Brasil Quilombola foi criado em 2004 e é centralizado pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), mas engloba um grande número de ministérios e secretarias.

O conjunto de ações do programa é proveniente dos órgãos governamentais e compatível com os respectivos recursos, constantes na lei orçamentária do Plano Plurianual, em que se prevêem também as responsabilidades de cada órgão e prazos de execução. A definição das ações é consolidada levando em consideração as demandas presentes nas comunidades.

No Incra foi criada uma diretoria específica para tratar do tema quilombola. Foram contratados 32 novos antropólogos, já que o estudo técnico e o relatório de ancestralidade são peças fundamentais nos processos. Para o presidente do instituto, o Estado está enfrentando o problema. “No ano passado o Incra gastou R$ 8 milhões com indenizações e vamos gastar cada vez mais”, alertou, lembrando que serão necessárias também ações para que a Justiça deixe de ter dificuldade em enxergar e entender o problema. “São comunidades que sofrem com preconceito pela sua origem. Em muitas regiões há conflitos que remontam a 500 anos, que na verdade é a disputa pela terra”, conta Rolf, dando como exemplos a situação do quilombo Mata Cavalo (MT), Marambaia (RJ) e Alcântara (MA) – os dois últimos, disputas pela terra com a Marinha e o Centro de Lançamento de Foguetes.

Em geral, essas disputas ocorrem contra empresas do agronegócio, como é o caso dos quilombos do Espírito Santo, sul da Bahia e Santa Catarina. Outras situações envolvem indígenas, quilombolas e assentamentos. E há quilombos, ainda, em terras dos governos estaduais. Além da questão da posse da terra, outro tema apresentado é a sustentabilidade dos quilombos e a preservação ambiental. No caso de algumas comunidades no Norte, há conflitos com outros órgãos governamentais, como é o caso do Ibama.

Mas a diretora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Maria Emília Pacheco, afirma que “o zoneamento agroecológico concluiu que as atividades dos(as) quilombolas – agricultura de subsistência, caça, pesca e exploração extrativista, com destaque para a castanha –, pelas suas peculiaridades preservacionistas, vêm sendo desenvolvidas aproximadamente há um século na região sem causar prejuízos ambientais a esse patrimônio natural legado pelos seus ancestrais”.

“Não podemos vender nada. Ficamos aqui oprimidos. Hoje, quando se fala de alimentação, tudo ficou mais difícil. Podemos dizer que não temos direito ao alimento. Se a gente sai com dois quilos, prendem. Se sai com vinte quilos, prendem. Eu já cansei de roubar o que é meu para comer.” A declaração é de um quilombola de área considerada de conservação.

“Muitas coisas a gente não tinha no quilombo. Hoje temos telefone e outras coisas que ajudam a vida da gente. Temos um grupo grande que mexe com banana. Até temos um caminhão, que sai fretado de banana para São Paulo”, conta Nilzete Rodrigues, do quilombo de Ivaporunduva (SP), titulado em 2003.

Em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), a comunidade de Ivaporunduva desenvolve uma série de projetos em busca de alternativas de manejo de seus recursos naturais e de geração de renda. São desenvolvidos projetos de plantação de banana orgânica, produção de artesanato com palha de bananeira, repovoamento do palmiteiro juçara e coleta seletiva de lixo.

Quando o direito à terra é garantido, as comunidades avançam, progridem e desenvolvem projetos. A situação dos quilombos hoje pode ser contada com vitórias e derrotas. Conclui-se que o caminho ainda é longo para a garantia dos direitos dessas comunidades e não basta vontade política, já que são muitas questões e interesses envolvidos. Mas a boa notícia é que o governo assume que há uma dívida do Estado brasileiro com esses grupos e quer resolver, e as comunidades seguem se organizando e conscientes de seus direitos.

Fernanda Estima é editora-assistente de Teoria e Debate