Entrevista com Matilde Ribeiro, secretária Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)
Entrevista com Matilde Ribeiro, secretária Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)
Os quilombos surgiram como uma forma de resistência, mas o que representam hoje?
Os quilombos ainda são foco de resistência, têm processo histórico e atualidade. Digo ainda porque, no Brasil, pela formação social, fomos levados a acreditar que não existe racismo, mas sabemos que o racismo é tão forte a ponto de nos colocar à parte das estruturas sociais. Os negros não estão nos shoppings, nos restaurantes, e, se estão, é como trabalhadores e em geral não são os de frente. É raro ver recepcionista, presidenta ou presidente negros numa empresa. Em geral são operacionais, os que sustentam a estrutura escondidos.
É por isso que existe quilombo. Na época da escravidão servia como referência dos escravos que fugiam das casas-grandes e se “aquilombavam”. Era um espaço de fuga da situação dominante. Depois se tornou espaço de convívio, moradia e construção de família, de comunidade, e é assim que se mantém até hoje.
Quantos são os quilombos?
São cerca de 3 mil identificados por nós, mas os dados passados pelas organizações quilombolas são de que podem chegar a 5 mil. Estão espalhados por todos os estados e ficam, em geral, nas regiões rurais, isolados da vida das cidades. Nem todos que identificamos datam da época da escravidão, boa parte deles foi estruturada depois, alguns até em períodos recentes. Existem quilombos que são formados por famílias estendidas, cinqüenta, duzentas pessoas, assim como há quilombos extensos, como Calunga, em Goiás, que chega a 4 mil habitantes – uma verdadeira cidade.
Para entendermos o que é um quilombo temos de resgatar a história, mas também considerá-los nos dias de hoje.
Como o governo trata a situação dos quilombos?
A política para os quilombos passou a existir depois de 1988, cem anos após a Abolição. A partir da luta dos quilombolas, com apoio do movimento negro, do movimento social urbano, a Constituição passa a reconhecer a existência do quilombo e a definir a responsabilidade do Estado.
Estamos falando de uma realidade de vinte anos, que historicamente é muito pouco tempo e considerando ainda que a Abolição, que completará 120 anos ano que vem, aboliu formalmente mas não incluiu. Hoje, para o governo, a política de quilombos está em construção. O Decreto 4887 determina quais são as responsabilidades das estruturas de governo no tratamento dessa política e isso define os rumos.
Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Agrário zelar pelo processo da regularização fundiária, à Fundação Cultural Palmares, que é vinculada ao Ministério da Cultura, zelar pela identificação e reconhecimento histórico e cabe à Seppir coordenar as políticas, se considerarmos que a grande motivação para a política de quilombo é a busca da superação do racismo e a construção da igualdade racial. Ao criar essa secretaria, o governo reconhece que o racismo existe e tem de encontrar meios para superá-lo. Por isso a política de quilombo é a prioridade número um da Seppir, que na estrutura do governo federal é o órgão que agrega toda a compreensão histórica e política da estruturação para o atendimento a uma parcela da população.
Como surge o Programa Brasil Quilombola?
O programa foi elaborado a partir da definição do Decreto 4887, lançado em novembro de 2003. É o único que tem o componente da igualdade racial como espinha dorsal e que consta do Plano Plurianual (PPA), que define não só a responsabilidade política do governo federal, mas também a matriz orçamentária.
E qual é o tamanho do orçamento?
Pequeno. O orçamento da secretaria para o quilombo chega a 40% do orçamento geral, que é em torno de R$ 20 milhões. O Brasil Quilombola é coordenado pela Seppir, mas os vários ministérios imputam recursos para esse programa. Por exemplo, o MEC constrói uma escola em quilombo, o Ministério da Saúde, um posto de saúde... Nada disso existe em quase 100% dos quilombos.
No programa a regularização fundiária é a principal demanda, combinada com atendimento em todas as áreas da política pública. É um programa em formatação prática. Por exemplo, quando o Ministério de Minas e Energia de- finiu, no programa Luz para Todos, quem precisava de eletrificação e não mencionou o quilombo, com o apoio do presidente Lula, renegociamos com o MME e está definido que até 2008 todos os quilombos estarão atendidos com eletrificação.
Qual a avaliação dos objetivos alcançados até agora?
Boa parte da primeira gestão serviu para entendermos o que é quilombo e as suas necessidades. E isso passa pela capacitação dos servidores, dos gestores, e também pela assimilação das autoridades, dos ministros.
A grande conquista é ter hoje um amplo grupo de pessoas responsáveis pelas políticas públicas conhecendo essa realidade até então desconhecida. Hoje estou na Seppir, amanhã, para onde for, levarei esse conhecimento e essa paixão. Isso vale para todos os gestores, servidores. Foi um ganho imensurável.
É um programa ainda frágil porque nem tudo que é colocado como necessidade dos quilombolas está na ordem do dia. Não conseguimos ainda atender o universo dos quilombos do Brasil, a regularização é um processo crescente, mas não correspondeu à expectativa. Há ganhos e não há recuo, mas o resultado quantitativo ainda está aquém do esperado.
Temos de transformar dentro da lógica do poder público todo um raciocínio do “não pode” para o “pode”. Isso significa revisar as decisões legais e as normas de funcionamento. Não é nada fácil trabalhar com quase trinta órgãos do governo federal na estruturação da política, cada um tem missão, prioridades e orçamento diferentes. Mas vale o desafio de mudar a história e de completar essa abolição que nunca aconteceu de verdade.
E como as comunidades vêem o governo federal e a sua ação?
Há uma expectativa muito grande na estrutura do Estado brasileiro. Os quilombolas, ao longo da sua existência política, adquiriram o status não mais de quem pede para o poder público agir em sua defesa – até porque têm consciência de que pagam impostos e são cidadãos. Eles têm um acúmulo político que precisamos respeitar. Os quilombolas têm uma afinidade muito grande com o presidente Lula pelo seu histórico, o vêem como alguém muito próximo. E o presidente definiu como prioridade a questão do quilombo, ele próprio convence os ministros a atuar. Os quilombolas sabem que não terão suas necessidades atendidas sem uma mediação política entre governo e sociedade, sem uma negociação da agenda política. Há momentos de conflito, mas é uma relação promissora no sentido de que estamos aprendendo a nos entender a partir dos papéis diferenciados.
Quais são as situações emblemáticas?
Marambaia, no RJ, é um quilombo dentro de uma área de segurança da Marinha, que tem um papel na defesa da segurança nacional, e os quilombos têm de sobreviver. Alcântara, (MA) é outra, cujo conflito está na necessidade de uma base de lançamento de foguetes dentro do quilombo. Essa é uma situação de conflito específico, uma em cada ponta do Brasil. Existem outros tantos conflitos ligados à disputa pela propriedade da terra, os supostos donos são os grandes fazendeiros, e entre eles e os quilombolas há os grileiros, os indígenas. Outros quilombos estão dentro de área de proteção ambiental. É uma política complexa, não dá para dizer que a solução está toda em uma única vertente. Ora o diálogo é com os órgãos da defesa nacional, ora é com o Ministério do Meio Ambiente, ora é com o Ministério do Planejamento. Não tem um único interlocutor.
Fernanda Estima é editora-assistente de Teoria e Debate