Internacional

Com o papel de ouvir o povo e representá-lo, ainda que indiretamente, o Parlamento do Mercosul terá também como direito e dever fazer o acompanhamento de todo processo de negociação do bloco e não será superior aos Parlamentos nacionais

Por distintas razões, a França e a Holanda disseram “não” à proposta do Tratado Constitucional da União Européia, a Constituição da UE. Essas negativas foram a gota d’água (há outras razões) para levar a UE a uma grave e profunda crise política. Uma das razões da decisão é o fato de jamais ter sido construída uma cidadania dentro do bloco europeu. E os eventos da França no final de 2005, não pelo todo, mas em parte, também são resultado desse processo.

Apesar de altos investimentos econômicos, financeiros e sociais, além da criação de símbolos (por exemplo, a bandeira da UE está presente em todos os edifícios públicos da Europa), a União Européia não conseguiu criar uma cidadania de bloco e uma identidade comum. Ao contrário, a identidade nacional de cada país se fortaleceu em nacionalismos de direita.

No Mercosul também inexiste a identidade de cidadão do bloco. Mas esse fato ainda não é preocupante, uma vez que o bloco é incipiente, se comparado com a UE, e seu processo de construção é diferente. O tempo de formação, por exemplo, é uma das razões de ainda ser incipiente. Enquanto a UE tem mais de meio século de criação, o Mercosul, oficialmente criado em 1991, acaba de entrar em sua fase de adolescência, portanto os europeus têm uma experiência importante, que deve ser levada em consideração.

Para a elaboração do Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul, procuramos analisar os erros das várias experiências mundiais da constituição de parlamentos supranacionais e entendemos que a experiência européia era a que melhor nos servia. Há uma diferença enorme entre as razões de criação da União Européia e as de criação do Mercosul, mas a experiência não deve ser desprezada. Alguns dos erros cometidos pelos europeus na criação de seu Parlamento devem ser evitados.

Foram várias as preocupações que tivemos para elaborar o Protocolo do Parlamento do Mercosul, sendo duas delas as mais importantes: uma nova institucionalidade e a construção da cidadania no Mercosul. O déficit de cidadania, portanto de democracia, no Mercosul não será zerado com um parlamento, mas sem dúvida será diminuído, principalmente pela participação da população em eleições diretas em todos os países do bloco.

Parlamento do Mercosul

Na XXIX Reunião do Conselho do Mercado Comum (CMC) realizada em Montevidéu, no dia 8 de dezembro de 2005, foi aprovado e assinado pelos presidentes dos países membros do bloco o Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul. O documento, debatido pelos membros da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul (CPCM) durante três anos, foi construído por consenso, o que significa qualidades e também debilidades. O consenso permitiu sua construção política – uma qualidade –, mas nesse caso resultou em um documento com debilidades. Há no mínimo duas, que limitarão a construção da cidadania e a identidade política: não permitir a representação proporcional na primeira legislatura e não estabelecer a criação de famílias políticas para a disputa das eleições diretas. Ao invés de ajudar a superar o déficit democrático existente no Mercosul, essas limitações podem aprofundá-lo.

Os membros da primeira legislatura exercerão um mandato de quatro anos e serão indicados pelos Parlamentos nacionais escolhidos entre seus pares (eleições indiretas), portanto devem ser parlamentares nacionais e do Mercosul. A segunda legislatura, a partir de 2011, será composta por parlamentares eleitos em pleitos diretos e especificamente para esse cargo, não podendo acumular o mandato de parlamentar nacional. São definições importantes para a construção de um bloco político com cidadania.

A indicação indireta para o Parlamento afasta o povo do debate político, o que dificulta a criação de uma identidade política e a formação da cidadania. Sem o voto, o cidadão não se identifica com o processo de formação, não se sente agente dele. Por isso, estabelecemos no Protocolo um período curto (quatro anos) sem eleições diretas.

Na condição de membro de ambos os Parlamentos, o parlamentar confundiria suas posições políticas. Deve o integrante do Parlamento do Mercosul defender as posições relativas aos direitos de todos os cidadãos e cidadãs do bloco, e não as referentes a políticas nacionais. Caso decisões de caráter nacional tenham de ser tomadas, os parlamentares das diferentes famílias político-ideológicas do Estado Parte se reúnem e decidem que posição tomar.

Nova institucionalidade e cidadania

O processo de globalização vem conformando diferentes blocos econômicos, alguns deles com institucionalidade própria, como é o caso do Mercosul. Como resultado, as decisões vão sendo transferidas da esfera do Estado para o âmbito das instituições responsáveis pela integração. No caso do Mercosul, as decisões estão a cargo do Conselho do Mercado Comum (CMC), no qual estão representados os governos de cada um dos países, e não no conjunto das forças políticas presentes e atuantes na região. O cidadão comum não participa, não tem conhecimento do que está sendo debatido.

O povo está distante do processo decisório, e impotente para nele intervir e se fazer representar. Dessa forma, as normas produzidas pelos órgãos da integração carecem de legitimidade, uma vez que não são suficientemente debatidas pela sociedade e sequer pelos Parlamentos nacionais. Aliás, a grande maioria dos parlamentares nacionais simplesmente desconhece os assuntos e os acordos em questão.

Os controles exercidos pelos Parlamentos nacionais, na forma de aprovação dos tratados, não sanam o déficit democrático, até porque não é possível corrigir ou modificar o texto – seja por erro de redação, seja por não-concordância com o mérito –, quando há discordância. Outra questão importante é que muitos dos acordos ou tratados do Mercosul não são submetidos à aprovação do Parlamento do país para ser incorporados a seu arcabouço legal. Essas são razões suficientes para criar um espaço institucional (Parlamento) de debate, onde direta ou indiretamente o cidadão e a cidadã possam participar, contribuindo com sua legitimação.

O Parlamento do Mercosul não será a solução, mas será um órgão que terá o papel de ouvir o povo e procurar representá-lo, ainda que indiretamente. Também terá como direito e dever, pela própria distância política dos Parlamentos nacionais, fazer o acompanhamento de todo processo de negociação do Mercosul. Assim, muitos tratados do bloco que hoje não são submetidos à aprovação dos Parlamentos nacionais acabarão por sê-lo (mesmo que politicamente) pelo Parlamento do Mercosul.

O processo de globalização leva os países e os blocos a debater de forma permanente todos os aspectos da política (econômica, ambiental, cultural, financeira, de serviços etc.) internacional e a assinar acordos e tratados. Em geral, os debates sobre esses acordos ocorrem no Executivo, quase nunca no Legislativo.

Somente a atuação nos Parlamentos nacionais é insuficiente para organizar a intervenção na política externa, por várias razões. Uma delas é a cultura política, nos Parlamentos, partidos e sociedade em geral, de que o parlamentar tem de permanecer dentro do Parlamento do seu país, ou seja, não pode viajar. Quase sempre são acusados de estar mais interessados em “fazer turismo” do que em defender os direitos do povo. Essa acusação é recorrente porque o cidadão não conhece as razões dos blocos e tampouco o conteúdo dos tratados internacionais – que não raramente podem subtrair seus direitos.

O Parlamento do Mercosul vai representar o cidadão da região e não será superior aos Parlamentos nacionais. Também, pelo processo da eleição direta e universal, contribuirá para a mudança de cultura e a construção de uma identidade política de bloco, pois o cidadão votará num parlamentar para atuar num contexto supranacional e em temas de política externa que envolva o Mercosul. A eleição direta consagra ainda o princípio da legitimidade democrática e contribui para a criação de uma identidade regional, e, conseqüentemente, de uma cidadania regional.

Numa segunda fase, o Parlamento do Mercosul estimulará a conformação de famílias político-ideológicas, propiciando aos parlamentares uma visão comum dos problemas da região. Também será o aglutinador de distintas posições políticas sobre o bloco, ao mesmo tempo que será um órgão da estrutura do Mercosul dotado de uma visão de comunidade.

Cada Estado Parte definirá internamente como se dará o processo de eleições diretas – no caso do Brasil será em 2010. Nossa representação no Parlamento do Mercosul será “atenuada”, definida por um índice ainda não estabelecido. Não só no caso brasileiro, mas no de todos os países do Mercosul, a definição desse índice deve ter como objetivo, também, a superação da cultura de exclusão em relação ao gênero e às etnias. Portanto, cada país deve, ao definir o processo interno de eleições para o Parlamento do Mercosul, fazer o debate de reservas de cotas (não de candidatos, mas sim de vagas no Parlamento) de gênero e de etnia.

Atribuições

Para o Mercosul ter uma característica intergovernamental, seus parlamentares não terão a função de legislar, mas sim desempenhar um papel político e consultivo, cujas características básicas serão contribuir para a construção da cidadania e dar transparência aos atos referentes ao Mercosul.

Os artigos 2° e 3° do Protocolo, que definem os propósitos e princípios do Parlamento do Mercosul, estabelecem seu papel político ao dar-lhe o propósito de representar os povos do Mercosul com sua “pluralidade ideológica e política”. Para cumprir esse propósito, o Protocolo determina como um dos princípios “o repúdio a todas as formas de discriminação, especialmente as relativas a gênero, cor, etnia, religião, nacionalidade, idade e condição socioeconômica”, bem como o “respeito aos direitos humanos em todas as suas expressões”.

O artigo 4°, e seus incisos, define suas competências consultivas. O inciso IV dá ao Parlamento a competência de “efetuar pedidos de informações ou opiniões aos órgãos decisórios e consultivos do Mercosul” e estabelece prazo para as respostas. Esse artigo também lhe confere a condição de convidar os presidentes pro tempore do CMC para debater o processo de integração e, a cada seis meses, o presidente que toma posse deve apresentar o programa de trabalho e o que sai, o “relatório sobre as atividades realizadas”.

Ainda, por meio de sua competência consultiva, o Parlamento emitirá parecer sobre as normas aprovadas pelo CMC. Para tanto, debaterá os temas em questão por meio da realização de audiências públicas com as entidades da sociedade civil, permitindo-lhes, em primeiro lugar, tomar conhecimento das normas em negociação, para que, assim, possam expressar suas opiniões e inquietudes. Dessa maneira, contribuirá decisivamente para a transparência e para a legitimidade social do processo de integração, fomentando ainda a construção de uma consciência de cidadania no Mercosul. Aquelas normas adotadas pelo Conselho, em conformidade com o parecer do Parlamento, receberão tratamento específico e mais ágil dos Parlamentos nacionais, contribuindo para a segurança jurídica do bloco.

Incorporar valores

É preciso ressaltar que o Parlamento do Mercosul não será um organismo com competência para sobrepor suas decisões àquelas dos Parlamentos nacionais. Tampouco será um órgão desprovido de significado na construção do Mercosul.

Com o Parlamento, cria-se na esfera regional um espaço destinado ao debate, pelos cidadãos, das normas em negociação nos órgãos do Mercosul, o que contribuirá para a sua legitimação. Com isso, diminuirá o déficit democrático existente no Mercosul e nas relações internacionais, sobretudo no que diz respeito à participação da sociedade nos processos decisórios da integração.

Por fim, o Parlamento terá um significado importante na construção do bloco porque permitirá que as forças políticas da região façam o debate e incorporem valores – como diretrizes para o processo de integração, valores da cidadania com justiça social, respeito aos direitos humanos e a priorização da educação e do avanço tecnológico – que possibilitem o reconhecimento do Mercosul como um bloco estratégico de desenvolvimento, para que, num breve futuro, não amarguemos o “não” que a Europa está amargando.

Dr. Rosinha é deputado federal (PT-PR), ex presidente e atual secretário executivo da CPCM