Cultura

Indústria cinematográfica da Nigéria, país que mais produz longa-metragens, prospera sem incentivo governamental - alternativa bem-sucedida fora da tendência mundial

Evento reuniu o melhor da produção de filmes e programas televisivos em 2007. Foto: Bruno Magrani de Souza

Qual país produz mais filmes longas-metragens no mundo? Se você pensou nos Estados Unidos, passou longe. Se pensou na Índia, chegou perto. E se lhe dissessem que o país que mais produz filmes em todo o mundo é a Nigéria? Surpreso? E se lhe dissessem que eles fazem isso sem nenhuma sala de cinema? Espantado? Eu fiquei bastante intrigado e fui até Abuja, capital da Nigéria, participar do mais badalado evento de filmes e programas televisivos do país, o Best of the Best of Movie and Television 2007 (BoBTV). O encontro, que reuniu celebridades da cena local, autoridades do governo e investidores, discutiu as novas tendências e os problemas desse impressionante mercado cinematográfico, batizado provocativamente de Nollywood. E o que eu descobri lá vai deixar todos ainda mais surpresos.

Os dados são eloquentes. Em 2004 os EUA produziram 611 filmes, a Índia, segundo maior produtor mundial de longas-metragens, 934 filmes, e a Nigéria, mais de 1.200. Em 2007, apesar de a produção ter apresentado uma pequena redução, como veremos à frente, pode-se constatar que o país não só mantém essa liderança como está se preparando para crescer ainda mais. Mesmo liderando no quesito produção de filmes, Nollywood não está no topo do ranking em termos de faturamento. A indústria americana é responsável por aproximadamente 85% do faturamento mundial da indústria cinematográfica, deixando seus concorrentes muito atrás. A Índia ocupa o segundo lugar no ranking e a Nigéria o terceiro, com um faturamento anual estimado em mais de US$ 200 milhões. Essa economia faz com que a indústria audiovisual seja o segundo maior empregador do país – ocupando em torno de 1 milhão de pessoas –, perdendo somente para a agricultura.

Entre o final dos anos 70 e meados de 2004, não havia nenhuma sala de cinema em funcionamento em toda a Nigéria. Existiam apenas umas salas de projeção abandonadas, que compunham um cenário de decadência urbana como  templos de uma época esquecida. Por algumas décadas, a projeção de filmes em salas de exibição na Nigéria não era nada mais que isto: um passado há muito esquecido. Porém, nem sempre foi assim. A indústria americana esteve presente naquele país até que, na década de 70, em resposta ao regime do apartheid, o governo nigeriano decidiu proibir a operação de empresas que tivessem relações comerciais diretas ou indiretas com a África do Sul. Diversas companhias, como a British Petroleum, que decidiram manter negócios com o outro país, foram nacionalizadas e o capital americano que controlava as salas de cinema, considerando que aquele mercado não era tão relevante, resolveu deixar o país. Com isso, a distribuição de filmes americanos para a Nigéria foi suspensa e as salas de cinema que operavam com as caras cópias de filmes em 35 mm ficaram praticamente obsoletas. Os filmes asiáticos chegaram a ocupar parte dessas salas, mas alguns anos depois, com a desvalorização do naira (a moeda nigeriana) e a conseqüente subida do preço das cópias, o negócio ficou totalmente inviabilizado.

A esta altura você deve estar se perguntando: como funciona o mercado de cinema da Nigéria? O marco inicial de Nollywood é geralmente atribuído a um evento ocorrido em 1992. Kenneth Nnebue, um conhecido comerciante da cidade  de Onitsha, possuía um grande carregamento de fitas VHS em branco e deparou com o seguinte problema: como vender as fitas? Foi então que o comerciante teve a idéia de rodar um filme, gravá-lo nas fitas VHS e vendê-las. Caso o comprador não estivesse satisfeito com o filme, ou se este não fosse vendido como o esperado, podia- se sempre apagar a fita e utilizá-la novamente. Eram vendidos ao preço de US$ 3, diretamente pelos vendedores de rua, nos mercados populares da Nigéria. O resultado dessa idéia foi a venda de mais de 750 mil cópias do filme Living in Bondage, o que não só tornou Kenneth milionário como também impulsionou uma indústria multimilionária. Hoje em dia, poucos são os filmes vendidos em VHS. Com a tecnologia digital mais barata e acessível, são rodados diretamente em formato digital de alta resolução e gravados em VCDs (mais comuns) ou DVDs. Cada produção custa entre US$ 15 mil e US$ 100 mil e vende algo em torno de 50 mil cópias.

Os filmes tratam de assuntos diversos, mas temas envolvendo religião, magia e dilemas morais são recorrentes. Quanto aos gêneros, os dramas ocupam o topo da lista dos mais vistos, seguidos pelas comédias. Como me confessou Charles Igwe, um dos principais produtores cinematográficos nigerianos: “Somos muito emotivos e sentimentais. Gostamos de assistir a filmes que tenham final feliz”. Isso é verdade para a grande maioria dos filmes: se não tem final feliz, não faz sucesso.

Outro aspecto interessante é a relação do mercado de cinema com o de cópias ilegais. Como os filmes originais são vendidos a preços muito baixos e pelos próprios vendedores de rua, praticamente não há estímulo à produção de  cópias ilegais. O copista teria um lucro relativamente baixo, sobretudo levando em consideração que os produtores do filme original trabalham em larga escala, barateando os custos. Apesar disso, existiu e ainda existe um mercado de  cópias ilegais dos filmes nigerianos, mas ele é visto com olhos diferentes. “Em um primeiro momento, a pirataria surgiu porque nós produtores não tínhamos capacidade de entregar a quantidade de cópias que o mercado demandava. Com a construção de novas plantas de produção, isso está sendo gradualmente resolvido. Em um segundo momento, a pirataria começou a ocorrer fora do país, e, assim como no primeiro momento, não foi de todo prejudicial para nós. Ela ajudou a criar novos mercados para os filmes nigerianos”, diz Igwe. De fato, os filmes nigerianos são um grande sucesso em toda a África, tanto que o canal de satélite Africa Magic transmite filmes nigerianos 24 horas por dia para todo o continente.

Nollywood nasceu e cresceu sem nenhum incentivo governamental. Foi fruto da iniciativa privada e desenvolveu- se onde ninguém acreditaria ser possível surgir uma indústria de cinema. O governo nigeriano já percebeu sua importância e, durante a abertura do BoBTV 2007, a ministra da Educação da Nigéria anunciou que o governo estuda a criação de uma academia nacional, financiada pelo Estado, para formar profissionais do cinema.

O panorama que se desenha para 2007 em Nollywood é um pouco diferente daquele de 2004. A produção de filmes teve um pequeno decréscimo e estima-se que neste ano sejam produzidos mil novos filmes. As possíveis razões para tal  queda são as mais diversas. Uma hipótese é que essa redução decorra de um “freio de arrumação”. Após um crescimento desordenado no início, o mercado está se estruturando e formalizando os mecanismos de operação. Assim, as produções ficariam mais sofisticadas e os filmes mais caros, criando a necessidade de acesso a linhas de crédito ou investimentos externos, que por sua vez demandam garantias, planos de negócio etc., resultando numa barreira de  acesso ao mercado, com a exclusão de pequenos produtores e, conseqüentemente, a diminuição da diversidade e da quantidade.

O crescimento da indústria cinematográfica chamou a atenção internacional e, com os embargos suspensos, as salas de cinema voltaram a compor o cenário nigeriano. O capital estrangeiro está de olho e o país já conta com cem novas  salas de exibição. Essa recente tendência de mudança no mercado com a entrada de competidores externos não está  sendo vista de braços cruzados. Em resposta ao ressurgimento das salas, os  produtores nigerianos estão construindo mil novas salas que operarão com tecnologia digital, o que possibilitará, assim como nos VCDs, baratear os custos de distribuição e reprodução. “Nossa meta é ter uma sala em cada vila nigeriana”, diz Charles Igwe. O resultado que isso acarretará para Nollywood só poderá ser sentido e avaliado daqui a alguns anos.

O caso da indústria cinematográfica nigeriana nos mostra como é possível criar alternativas bem-sucedidas que não necessariamente se enquadrem na tendência global. Ao contrário, como dizem alguns pensadores contemporâneos, realizar um exercício de imaginação institucional experimentando alternativas pode ser a melhor maneira para encontrar novas soluções para novos e velhos problemas.

Bruno Magrani de Souza é mestrando em propriedade intelectual pelo Inpi e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito (RJ)