Internacional

Superação das diferenças virá com a criação de condições para que a produção energética tire vantagens da diversidade

A história da América Latina se escreve com o retrato de pouca ação regional dos diferentes países, cada um, isoladamente, buscando construir sua economia com vistas a conquistar parceiros no Hemisfério Norte, particularmente os EUA, com o que acabam se submetendo à condição de mera colônia reserva estratégica do império norte-americano.

O início deste século marca o que pode ser uma nova era! Com eleições de governos e projetos antiimperialistas em todo o continente, e a conseqüente derrocada do debate da Alca nos padrões norte-americanos, impõe-se aos países do Sul uma visão mais do que de mercado de suas relações. Ganha força a idéia de que devemos aproveitar as vantagens comparativas que temos para organizar nosso desenvolvimento levando em conta o retorno social, com a redução necessária das brutais desigualdades internas a cada país e também regionais, com a preocupação de construir um desenvolvimento ambiental e socialmente sustentável.

No encerramento da 2ª Cúpula Sul-Americana de Nações, em Cochabamba, na Bolívia, o presidente Lula fez um pronunciamento que deixa clara a visão do momento que estamos vivendo e do quanto é importante a integração energética e de infra-estrutura da região para essa necessária sustentabilidade: “A integração energética sul-americana deve ter como fundamento básico a segurança de acesso à justa remuneração, a preocupação com a preservação ambiental, a inclusão social e a estabilidade das relações jurídicas”. Enfatizou também as características que nos colocam em grande vantagem comparativa com os países do Norte no campo energético: “Nossa região dispõe de uma das maiores reservas de recursos energéticos do mundo, o desafio está em promover investimentos e associações estratégicas que permitam sua utilização em termos justos e com benefícios para todos”. E defendeu ainda a necessidade da constituição de um sistema financeiro sul-americano, a partir de uma coordenação dos bancos nacionais e regionais de desenvolvimento, e da valorização de mecanismos já existentes: “Precisamos de mecanismos específicos de garantias que levem em consideração a particularidade de nossas economias, sobretudo aquelas mais vulneráveis”.

Essa análise deixa um grande desafio para as nações sul-americanas, no rumo da recuperação de décadas de sangria de nossas riquezas naturais e subordinação aos interesses norte-americanos.

Em um momento em que o mundo desenvolvido se vê às voltas com o aquecimento global, de um lado, e com as altas do preço do petróleo e seu esgotamento iminente, de outro, a América do Sul pode criar alternativas integradas de desenvolvimento, aproveitando a abundância de opções de geração de energia e as condições climáticas diferenciadas, e se tornar um novo pólo de desenvolvimento com padrão sustentável social e ambientalmente. Mas, para transformarmos em riqueza para nosso povo o que hoje nos levam quase de graça, são fundamentais a integração política e a criação dos mecanismos ditos por Lula em Cochabamba.

Instituir um grupo de trabalho com representantes dos governos da comunidade sul-americana para se debruçar sobre os projetos e abrir caminho para a imediata integração, sem a visão que individualmente, muitas vezes, temos.

Debater os aproveitamentos hidrelétricos. Nesse caso, buscando valorizar empreendimentos com menor risco social e ambiental e criar condições para que tenhamos um anel energético na América do Sul, com sistemas interligados de energia elétrica e gás – um gasoduto que ligue todos os países da comunidade, viabilizando o aproveitamento com as devidas vantagens comparativas do gás da Venezuela, do Peru, da Bolívia, do Brasil e da Argentina. Dessa forma se poderia beneficiar a todos dentro do espírito da justiça e do projeto regional, e não apenas do ponto de vista do lucro, pensando estrategicamente a questão regional, o meio ambiente e o social, acima de tudo.

Debater regionalmente a questão da energia nuclear, sua pesquisa e seu uso. O Brasil é a sexta maior reserva mundial de urânio, mesmo sem ter sido pesquisado todo o seu território, e tem hoje duas usinas termonucleares em funcionamento, além do projeto da terceira, paralisado há décadas, agora prestes a ser reiniciado. Eu, particularmente, sou contra esse investimento na construção da terceira usina e há divergências dentro do núcleo do governo. Precisamos discutir o grande volume do investimento necessário para sua viabilização, cerca de US$ 2 bilhões, e, evidentemente, a segurança da região e o que fazer com os rejeitos.

Debate sem preconceitos

A meu ver, os presidentes Hugo Chávez e Fidel Castro incorrem em um grave erro ao ler o debate dos biocombustíveis da forma como estão fazendo. De um lado, Chávez comete o mesmo erro dos usineiros brasileiros, que ao longo de duas décadas do programa encaravam o álcool como concorrente do petróleo e a Petrobras como inimiga do setor sucroalcooleiro. O petróleo com certeza seguirá, pelo menos por mais 50 anos, como o principal componente da matriz energética mundial. E cabe aos biocombustíveis a tarefa de alongar as reservas de petróleo do mundo, quem sabe para usos mais nobres, melhorando a qualidade da queima dos combustíveis e reduzindo as emissões agressivas à camada de ozônio. O Brasil, desde o final década de 1970, substituiu na gasolina o terrível aditivo chumbo tetraetila (CTE) pelo álcool. E a própria Venezuela está substituindo seu chumbo da gasolina pelo etanol, e os que não quiserem usar o etanol inevitavelmente terão de usar um produto mais caro e de pior resultado ambiental, o metil tércio butil éter (MTBE), como oxigenante da gasolina.

De outro lado, o presidente Fidel Castro levanta uma preocupação correta, no entanto contornável com um plano diretor agrícola das regiões produtoras. Dizer que, necessariamente, milhões morrerão de fome pela substituição da produção de alimentos pela de biocombustíveis seria a confissão dos governos de sua incapacidade de planejar e organizar. O próprio caso de Cuba depõe contra o discurso de Fidel. Seu país tem uma área de cana percentualmente muito maior que a brasileira e nem por isso deixa de planejar sua agricultura para o suprimento de alimentos necessários.

A comunidade latino-americana de nações terá de fazer esse debate de forma integrada e sem preconceitos, apesar do interesse do governo Bush. Terá de pensar a questão da biomassa, dos biocombustíveis, etanol e biodiesel, não como concorrentes do petróleo, mas como remédio no combate à grande doença do mundo que é o descontrole das emissões de poluentes, melhorando as condições de queima, além de alongar as reservas que temos de combustíveis fósseis. Pensar sobretudo em mecanismos que assegurem um retorno com inclusão social e sustentabilidade ambiental – o que não se dará com acordos de conveniência do governo Bush, ou com a ganância dos empresários do setor, ávidos por tirar vantagens momentâneas do negócio.

No caso do etanol, a concepção do programa nos idos de 1970, ainda sob a ditadura militar, gerou grandes distorções: o estímulo à monocultura da cana e ao latifúndio, a exploração de trabalho escravo, ainda presente em muitas regiões, além da falta de definição de responsabilidades dos produtores com o suprimento nacional e com o indispensável respeito ao meio ambiente. Também não se conseguiu ter um planejamento com definição clara do papel da cana na matriz energética nacional. E, se desejamos a integração sul-americana, teremos de fazer um grande esforço no planejamento mais do que nacional, mas regional dessa matriz.

Ainda não temos hoje um plano diretor agrícola que viabilize a convivência com essa alternativa de agroindústria e as áreas de preservação permanente, que na Região Sudeste deveriam ser de 20% e em muitas regiões não passam de 2%. Isso para a produção de cerca de 18 bilhões de litros de etanol neste ano, apenas 3 bilhões a mais do que o país precisa para seu consumo interno. Em relação ao protocolo assinado entre Brasil e EUA, mais do que perspectivas de suprimento das demandas estadunidenses, isso deixa claro que sua importância é política para Bush. Os EUA precisam de volumes que mesmo que dobrássemos a produção brasileira e a vendêssemos toda a eles seria insuficiente. No entanto, há nisso um aspecto positivo, que é a transformação do etanol em commodity, com um padrão de especificação global. Precisamos pensar o etanol ligado à questão fundiária no Brasil e na América do Sul, ligado ao debate também da agricultura de subsistência, à agricultura familiar...

Da mesma forma, o biodiesel ganhou hoje no Brasil grande importância. Já consumimos cerca de 1 bilhão de litros por ano e logo chegaremos a 5% de todo o consumo brasileiro de óleo diesel. Segundo estimativas, no final de 2012 atingiremos os 5 bilhões de litros por ano só para o consumo interno. Embora com características e alternativas de fontes de produção mais diversas, que podem evitar a ameaça da monocultura e do domínio pelo latifúndio, sem uma ação forte dos governos o biodiesel corre o risco de cair nas mãos dos produtores de soja e gerar os mesmos problemas do programa do álcool. A legislação brasileira cria incentivos para os produtores de biodiesel que usarem sementes vindas da agricultura familiar, reduzindo a carga tributária para empresas que conquistarem o chamado selo social. Mas cremos que seja necessária uma ação mais concreta e objetiva da Petrobras, como empresa estatal, na garantia da produção em padrões sustentáveis.

Enfim, a integração da comunidade sul-americana se reveste da grande esperança de superação das cruéis diferenças históricas enfrentadas pelo nosso povo. Cria as condições para que nossa produção tire vantagens da diversidade e possa, assim, sair da secular exploração a que fomos submetidos e reverter o resultado em qualidade vida, dando uma contribuição efetiva para a construção de um mundo melhor.

Para alcançar essa desejada integração, temos de superar as vaidades dos governantes, as disputas pela liderança regional, e identificar de forma clara em que campo temos de fazer a disputa, preservando a soberania de nossas nações, mas criando associações que viabilizem de fato a implantação dessa infra-estrutura integrada capaz de sustentar essas medidas. Instituições financeiras regionais, empresas no setor de petróleo, energia elétrica e transporte terão de interagir e criar alternativas que consolidem esse desejo, hoje fortalecido por uma conjuntura política que jamais tivemos.

Luciano Zica é ex-deputado federal (PT-SP) e atual secretário nacional de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano, do Ministério do Meio Ambiente