Cultura

Filme transcende reconstituição documental do sequestro do embaixador americano

O período da ditadura continua a incomodar muita gente. Não estou me referindo aos muitos que cometeram os bárbaros crimes de lesa-humanidade em defesa da pátria amada, salve, salve e continuam quietinhos e salvaguardados pela anistia branca dos generais, mas à tal da opinião pública, que parece ter alergia ao assunto.

Sempre que toco na matéria numa roda, escuto o famoso bordão: “Mas o cinema brasileiro só tem esse tema para tratar?” Estou curioso para descobrir de onde vem esse sentimento difuso da classe média nacional. Será a consciência pesada por ter se portado como um avestruz enquanto o pau estava comendo lá fora?

E a idéia de que já investigamos nas telas o suficiente sobre esse período histórico é reforçada pelos principais órgãos da imprensa, conservadora ou não. Fiz uma rápida pesquisa na internet e encontrei as seguintes pérolas:

“Depois de uma infinidade de filmes sobre a ditadura militar no Brasil, resta saber se faz sentido continuar lançando obras sobre o tema. Batismo de Sangue parte de uma premissa pouco conhecida, a história de frades dominicanos que foram torturados durante o regime por suas ligações com Carlos Marighela, da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Mas o simples fato de ser um tema não divulgado já é motivo para um novo filme sobre o assunto?...” (Verdade Alternativa).

“Basicamente só se fazem três tipos de filmes por aqui: comédias exageradas, filmes sobre a ditadura militar ou sobre o sofrimento nordestino...” (Blog da Vi)

“Filmes sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) são uma constante no cinema nacional. Quase uma fixação...” (Diário do Nordeste).

“Filmes sobre a ditadura militar já são um subgênero no cinema brasileiro. Desde Pra Frente, Brasil, dirigido por Roberto Farias e lançado em 1985, trabalhos nessa linha são comuns, sendo O Que É Isso, Companheiro? talvez o mais conhecido deles...” (Digestivo Cultural).

“Filmes sobre a ditadura militar (1964-1984) estão para o cinema brasileiro assim como produções sobre a Guerra do Vietnã (1964-1975) estão para o norte-americano. Guardadas as proporções, são feitos aos baldes, mas dá para contar  nos dedos os que valem a pena…” (Folha On Line).

Para tirar a limpo fiz um levantamento sobre os filmes que abordaram diretamente a ditadura militar, guerrilha, repressão ou tortura; que tiveram estes temas no centro de sua trama, ficcional ou documental. Naturalmente, não levei em  conta as películas que tocavam perifericamente ou em seu subtexto no tópico da luta armada.

Se minha memória estiver correta, encontrei três longas-metragens produzidos na década de 80 – Pra Frente, Brasil (Roberto Faria, 1982), O Bom Burguês (Osvaldo Caldeira, 1982) e Que Bom Te Ver Viva (Lúcia Murat, 1988) – e mais três na década de 90 – Lamarca (Sérgio Resende, 1994), O Que É Isso Companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e Ação entre Amigos (Beto Brant, 1998). Um número ínfimo para um país que produz em média cinqüenta filmes por ano.

Minha teoria é que o tema causa um páthos em nossa classe média, que prefere ver no cinema histórias escapistas e espetaculares que aliviam o duro fardo do dia-a-dia. Com esforço dá até para entender, mas não  para desculpar. De  um lado, a hábil, contínua e sutil lavagem cerebral do cinema americano, de outro, não é fácil se olhar no espelho e ver suas próprias cicatrizes.

A notícia alvissareira é que nos últimos dois anos, quase quarenta depois das românticas passeatas de 68, tivemos uma grande produção de filmes de qualidade que abordam despudoradamente a luta da resistência contra a ditadura militar. Cabra-Cega (deste que vos escreve, 2005); Quase Dois Irmãos (Lucia Murat, 2005); Vlado (João Batista de Andrade, 2006); Conspiração do Silêncio – Araguaia (Ronaldo Duque, 2006); Sonhos e Desejos (Marcelo Santiago, 2006); Zuzu Angel (Sérgio Resende, 2006); O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburger, 2006); Caparaó (Flávio Frederico, 2006); Batismo de Sangue (Helvécio Ratton, 2006); e agora o belo Hércules 56, de Silvio Da-Rin.

Uma safra que supera a soma de todos os filmes feitos nas duas décadas passadas, mas não me venham dizer que a população brasileira viu esses filmes ou que a sociedade está cansada dessas histórias. Esses longas não foram exibidos na televisão, a soma total dos bilhetes vendidos de todos eles não chega a 1 milhão e a maioria ficou confinada no gueto do cinema de arte dos centros urbanos.

A relevância do filme de Da-Rin transcende a cuidadosa reconstituição documental das peripécias do seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick porque faz jus à história ao perpetrar um contraponto à  mais popular das fitas sobre a ditadura militar, o equivocado e caricato O Que É Isso, Companheiro?

Hércules 56, nome do avião que levou ao México os quinze militantes guerrilheiros trocados pelo embaixador, reúne os principais mentores da espetacular ação para recuperar de forma serena, não panfletária e perspicaz um dos mais extraordinários feitos da voluntarista guerrilha urbana brasileira. E que teve trágicas conseqüências para o projeto utópico com o feroz agravamento da repressão.

Intercalando imagens de arquivo com um encontro inédito, uma mesa redonda entre os ex-guerrilheiros que estavam à frente da ação armada, e mesclando depoimentos individuais e emocionados dos nove sobreviventes que conseguiram escapar do inferno da prisão, o documentário constrói uma narrativa ágil e sempre significante.

Entre eles, velhos conhecidos como José Dirceu, Vladimir Palmeira e Flávio Tavares, beneficiados da ação, ou Franklin Martins, um dos que estavam no comando guerrilheiro. Da-Rin tem o dom de deixá-los à vontade para contar suas histórias e segredos, que reconstroem as facetas do episódio, ao mesmo tempo que fazem um lúcido balanço político do Brasil contemporâneo.

Falam da juventude radical e do sonho da revolução, da ousadia de tomar o céu de assalto, da decisão de entrar na luta armada, do pesadelo da tortura, da solidão do exílio, de heróis como Gregório Bezerra e Onofre Pinto, que faziam parte do grupo dos quinze e já morreram, dos momentos tensos com o embaixador americano, da disposição de matá-lo se os militares não cumprissem suas exigências, do medo de serem assassinados no avião, do alívio da chegada ao México, e muito mais. Tudo costurado numa edição impecável, em que o verbo e a imagem caminham com leveza num vai-e-vem instigante. Um filme essencial e prazeroso para os que apreciam o cinema inteligente. Mais um pedaço respeitável do espelho partido da história da esquerda brasileira.

Toni Venturi é cineasta