Sociedade

A maternidade não pode ser resultado de imposições, legais ou religiosas. Poder decidir tem de ser garantido pelo Estado, acabando, assim, com a injusta criminalização das mulheres que não queiram levar adiante uma gravidez indesejada. Tratar como questão moral o que de fato é um problema de saúde pública é o pior dos caminhos

A polêmica em torno da descriminalização do aborto, que começou antes da visita do papa Bento XVI ao Brasil, mas acabou entrando na agenda principal do líder católico, nos leva a algumas reflexões. Nossas condutas são dirigidas por muitos mandamentos. Há valores morais, éticos e ideológicos e dispositivos legais regulando nosso dia-a-dia. Estamos num Estado Democrático de Direito. A liberdade de culto religioso é parte constitutiva deste Estado e está garantida na Constituição desde 1946, por iniciativa da bancada comunista, da qual era membro o saudoso escritor Jorge Amado. O exercício individual da religiosidade é uma característica da democracia. Mas também é uma grande  conquista democrática a separação entre Estado e igreja, o Estado laico. As leis precisam ser universais, ultrapassar os limites das opções individuais, das religiões. Exceto em legislações que buscam atender a segmentos sociais discriminados ou de maior vulnerabilidade, o arcabouço legal deve contemplar a todos, garantindo direitos, principalmente quando tratamos de direitos humanos e de saúde.

Em aspectos religiosos, por exemplo, as crenças e as convicções preponderam sobre as razões. E, assim, normas de conduta dessa natureza não podem ser impostas universalmente. É esse o caminho que escolho para tratar da questão da interrupção da gravidez, ou do aborto. É preciso discutir o aspecto da saúde, já que o aborto é responsável por um grande número de internações hospitalares e de mortes de mulheres. Longe de ser um debate sobre uma matéria penal, merece destaque sua referência nas políticas públicas de saúde.

Em 1940 o Código Penal já avançava na laicidade da lei. Em seu artigo 128, estabeleceu que o aborto não é considerado crime em duas hipóteses: se a gravidez puser em risco a vida da mãe ou se for resultado de estupro. Na Câmara dos Deputados, desde 1991, tramita o Projeto de Lei nº 1.135, que descriminaliza a prática do aborto. A ele foram apensados outros catorze e o resultado da comissão tripartite que foi coordenada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. Como médica e relatora da matéria, procurei me ater aos dados da realidade brasileira, às experiências internacionais, aos acordos assinados pelo Brasil e já ratificados no Congresso Nacional, às deliberações da Conferência Nacional de Mulheres, aos aspectos constitucionais e técnicos.

O artigo 5º da Constituição defende a inviolabilidade do direito à vida. Os parlamentares que são contra a regulamentação da prática do aborto afirmam que a inviolabilidade deve ser considerada desde a concepção. Durante a Assembléia Constituinte, essa tese não prosperou, sendo derrotada por ampla maioria. A opção pela manutenção ou não da gravidez deve ser garantida às mulheres brasileiras. O Estado deve garantir o planejamento familiar, assegurando meios e informações, e, às mulheres que optarem pela maternidade, o acesso a serviços que permitam uma gravidez saudável e condições para criar os filhos com dignidade. Mas é também um dever do Estado fornecer as condições necessárias para que os serviços de saúde possam prestar atendimento àquelas que necessitem ou optem por interromper uma gravidez.

No Brasil, o preconceito religioso e a negação da realidade são o principal inimigo da descriminalização do aborto. Entendo que o plebiscito também não é a melhor opção. Constitucionalmente, não pode ser aplicado sobre temas que versam sobre direitos humanos ou decisões que envolvam convicções filosóficas ou de foro íntimo. Que direito temos de decidir, em consulta popular, se uma grávida de um feto sem cérebro, sem possibilidades de sobrevida, deve manter a gestação até o final? Como também não poderíamos, em plebiscito, decidir se os padres devem ou não aceitar o celibato.

Mesmo na ilegalidade, o procedimento é realizado por milhares de mulheres. Essa clandestinidade assegura tão-somente a existência de clínicas particulares cujos serviços não são fiscalizados, o que gera a impossibilidade de controle por parte das autoridades competentes. Assim, é responsável pela morte de milhares de mulheres e pelos altos gastos, por parte dos serviços de saúde pública, no atendimento àquelas com doenças e seqüelas provenientes de aborto malfeito. Encontramos sempre, nesses casos, mulheres de baixo poder aquisitivo. Portanto, a ilegalidade tem ótica de classe. A regulamentação em lei combate a indústria clandestina do aborto e da morte de mulheres pobres e permite sua fiscalização.

Independentemente de credos e filiação partidária, a sociedade não deve se omitir diante da importância do assunto. Como médica e mãe, também sou defensora incondicional da vida, e por isso mesmo defendo também a vida das mulheres e seu direito à opção. Não nos enganemos. O embate não é só em função do direito ou não ao aborto, mas a todo assunto que perpasse os direitos reprodutivos, como uso de preservativo, contracepção de emergência ou pílula do dia seguinte, mesmo para evitar a gravidez em casos de violência sexual, ou até nos casos de anomalias fetais incompatíveis com a vida.

Devemos lutar, todos e todas, acima dos partidos e religiões, pela redução da mortalidade materna e pelo avanço das leis que consolidem a democracia. Deixemos o exercício da religiosidade para a individualidade de cada um. Pois a lei apenas amplia direitos para que cada um a utilize, ou não, de acordo com as próprias convicções.

Jandira Feghali é médica, secretária municipal de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia de Niterói (RJ)