Mundo do Trabalho

Legislação, redução do desemprego e da exclusão social serão fatores que poderão efetivamente coibir a precarização

Nem todos estão a par, mas já há anos uma guerra surda vem sendo travada entre a fiscalização do Trabalho e empresas que contratam prestadores de serviços em lugar de empregados, para realizar atividades contínuas, remuneradas, sempre pelo mesmo trabalhador, numa situação que pode ser considerada “subordinada”. A prestação de serviços nessas condições caracteriza, segundo a Consolidação das Leis do Trabalho, a relação de emprego, o que tornaria obrigatória a contratação do prestador de serviços como assalariado.

Acontece que, de acordo com a interpretação corrente da legislação do trabalho, os direitos que esta garante aos trabalhadores somente se aplicam aos assalariados regularmente contratados. Isso pode parecer à primeira vista lógico, pois só quem tem patrão tem de quem exigir o pagamento de férias, horas extras, contribuição ao INSS, 13º salário, FGTS etc. Logo, os trabalhadores sem patrão – por conta própria, temporários, avulsos, cooperados etc. – estão excluídos do gozo desses direitos.

Essa situação é esdrúxula, pois os direitos trabalhistas devem se aplicar a todos que vivem do seu trabalho (definição de trabalhador), e não só aos que são assalariados. Trata-se de direitos humanos os quais a Organização Internacional do Trabalho denomina trabalho decente, caracterizado por limitação das jornadas de trabalho, intervalos de descanso diário, semanal e anual, salário mínimo, condições salubres e seguras de trabalho e acesso a seguro contra doenças, acidentes, velhice etc.

A limitação dos direitos trabalhistas aos assalariados pressupõe que apenas estes precisam ser protegidos, pois são dependentes dos empregadores, que dispõem de evidente superioridade econômica em relação aos seus funcionários. Todos os outros trabalhadores não-assalariados são supostamente autônomos, tendo recursos próprios para assegurar para si os benefícios que a legislação assegura aos assalariados. Ou seja, supõe-se que todos os trabalhadores que não são assalariados optaram de livre vontade pela condição de autônomo e assim renunciaram à proteção que a lei garante apenas aos que optam pelo emprego assalariado.

Essas suposições se baseiam numa situação de pleno emprego, em que todos os que querem ser assalariados encontram com relativa facilidade quem queira adquirir sua capacidade de trabalho em troca dum salário e demais benefícios não-salariais. Situação como essa foi realidade no Brasil nas décadas de intenso crescimento econômico, digamos de 1950 a 1980. Durante esse período, a maioria das empresas não encontrava pessoas dispostas a trabalhar para elas sem gozar dos direitos trabalhistas. Ao contrário, freqüentemente as firmas ofereciam outros benefícios – transporte, alimentação, cesta básica – para atrair os trabalhadores de que precisavam.

Da década dos 1980 em diante a situação mudou radicalmente, como ninguém ignora. Em lugar do pleno emprego, o que temos de lá para cá é desemprego em massa, que pelo menos até 2003 não cessou de se agravar. Hoje em dia, milhões de trabalhadores estão debalde à procura de emprego com os direitos decorrentes. Na ânsia de encontrar algum trabalho remunerado, muitos se dispõem a abrir mão de seus direitos legais, tornando-se trabalhadores precarizados.

O desemprego em massa e de longa duração criou uma oferta excedente de força de trabalho, que opta pela condição de autônomo para garantir a sobrevivência própria e de seus dependentes. E é claro que não poucas empresas dela se aproveitam para se livrar dos encargos trabalhistas mediante a substituição de seus funcionários por ditos “prestadores autônomos de serviços”. Estes podem assumir a posição de pessoas jurídicas, registrando-se como firmas unipessoais, ou de “cooperados”, associados involuntários de pseudocooperativas de trabalho, organizadas (e dirigidas) pelo contratante.

Dessa maneira, a precarização do trabalho emergiu da informalidade, instituindo-se sob a forma de contratação “regular” de serviços. Para a fiscalização do Trabalho, esse procedimento tipifica a violação dos preceitos da CLT e, por isso, tem de ser coibido instantaneamente. Durante os dois quadriênios de FHC, a guerra dos fiscais contra a precarização foi contida pela postura do governo, que propugnava a “flexibilização” dos direitos trabalhistas. Mas, a partir do primeiro governo de Lula, a defesa dos direitos trabalhistas tornou-se mais intransigente e a guerra surda da fiscalização ganhou ímpeto cada vez maior. A ação direta dos fiscais contra firmas que utilizavam tais subterfúgios para fugir do pagamento dos encargos trabalhistas se tornou mais eficaz, sendo uma das prováveis causas da recente recuperação do emprego formal no país.

Foi nesse contexto que, em 13/2/07, a Câmara dos Deputados aprovou por grande maioria (304 a 164 votos) a Emenda 3 à MP da Super-Receita, que determina: “No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá ser precedida de decisão judicial”. Isso quer dizer que os fiscais do Trabalho perderiam o poder de intervir diretamente nos casos em que, a seu ver, as exigências legais estivessem sendo desrespeitadas. Esses casos passariam ao âmbito da Justiça, cuja lerdeza é proverbial, o que significa que práticas hoje coibidas se tornariam “normais”, por ficarem sub judice por longos períodos.

A aprovação da Emenda 3 alarmou as forças que se opõem à precarização do trabalho, da fiscalização do MTE e do Ministério Público do Trabalho aos sindicatos de trabalhadores e partidos de esquerda, pois ela poderá instaurar na prática a “flexibilização dos direitos trabalhistas”. De sua mobilização resultou o veto do presidente Lula à Emenda 3, o que, por sua vez, mobilizou as forças – sobretudo empresariais – que se opõem à dissolução forçada de contratos de trabalho entre pessoas jurídicas. O debate eclodiu com estridência na mídia, com a arregimentação das forças conservadoras (muitas delas integrantes da base do governo) para rejeitar o veto presidencial.

Apesar dos méritos da fiscalização em coibir a precarização, sua ação às vezes atinge o direito dos trabalhadores de se organizar em cooperativas para disputar mercados às empresas capitalistas. Os fiscais entendem, freqüentemente, que qualquer trabalho que seja contínuo, remunerado, pessoal e possa ser caracterizado como subordinado não pode ser feito por trabalhadores autônomos, como seriam os cooperados. A fiscalização chegou a impugnar a grande indústria processadora de frutas Amafruta, no Pará, porque seus trabalhadores tinham de ter patrão, para usufruir de seus direitos.

Tratando-se duma cooperativa autêntica, formada pelos trabalhadores que recuperaram aquela empresa após sua falência nas mãos dos antigos donos, deveria ser óbvio que não se tratava de caso de precarização. O fato é que, em diversas regiões do país, cooperativas autênticas, algumas vezes acompanhadas por incubadoras universitárias, foram fechadas pela fiscalização, e até mesmo pela Justiça do Trabalho, por exercer atividades que seriam privativas do trabalho assalariado.

Para regular as cooperativas de trabalho, o governo enviou no ano passado ao Congresso o PL 7009, que, entre outros dispositivos, exige que cooperativas de trabalho garantam a seus membros direitos trabalhistas básicos, como salário mínimo ou mínimo profissional, salubridade e segurança no trabalho, pagamento de férias e horas extras. Esse projeto se inspira na legislação de vários países europeus (Espanha, França, Itália), segundo a qual os cooperados têm a dupla qualidade de ser ao mesmo tempo donos e trabalhadores do empreendimento. Por isso, a cooperativa, enquanto coletivo, tem a obrigação de garantir a cada um dos membros os benefícios da legislação trabalhista. É essa hoje a doutrina da Cicopa, o ramo do trabalho da Aliança Cooperativa Internacional.

No intuito de evitar excessos da fiscalização, mas sem afetar sua efetividade, o governo enviou em março ao Congresso o PL 536/07, que dispõe que o auditor fiscal que verificar irregularidade na contratação de mão-de-obra deverá notificar a empresa, a qual terá trinta dias para apresentar elementos em sua defesa; se esta for considerada insuficiente, o fiscal deverá encaminhar a representação ao delegado (a autoridade administrativa), que terá 120 dias para decidir a questão. Como se vê, o PL 536 garante o direito de defesa da empresa autuada e estipula um prazo de até cinco meses para que contratos que precarizam o trabalho sejam encerrados. É um prazo bem maior que o atualmente em vigor, mas está longe da procrastinação quase ilimitada imposta pela emenda vetada pelo presidente.

Delineia-se assim uma longa batalha, a ser travada tanto no Congresso quanto no seio da sociedade civil, entre os que defendem os direitos trabalhistas e os que, por convicção ou interesse, consideram esses direitos obsoletos e desejam substituí-los por itens dos contratos de trabalho, a serem negociados pelas partes. Para os setores patronais, os direitos legais dos trabalhadores limitam o volume de emprego ao onerar as folhas de pagamentos. Para os trabalhadores, esses direitos são essenciais por criar condições de trabalho decentes, que preservam sua saúde e, no limite, sua existência.

No final das contas, independentemente da legislação que vier a ser adotada, o que pode coibir a precarização efetivamente é a redução do desemprego e da exclusão social. Se nos próximos anos o Brasil puder acelerar o crescimento econômico e assim absorver o excedente de força de trabalho, desaparecerá o exército de desesperados por qualquer trabalho a qualquer salário e o respeito pelos direitos dos trabalhadores voltará a dominar o cenário.

Paul Singer é secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego