Política

O que temos agora, no caso de Stalin, é apenas o reavivamento dos detalhes escabrosos, tão ao gosto dos adeptos do “pensamento único”

Em 2006, em um desses jornais brasileiros que durante décadas estiveram na linha de frente dos combates da Guerra Fria, foi estampada – em suas páginas de “cultura”, não se assustem! – a manchete: “E Stalin invade as livrarias”. Naquele início de ano foram lançadas três biografias do ditador soviético. Realmente é algo incomum em nossos tempos de “globalização da economia” um personagem como Stalin e, claro, temas como a ex-União Soviética, bolcheviques etc. receberem esse espaço nas nossas tão carentes livrarias. Mas  quando se vê de perto essa “invasão” é impossível deixar de perceber que ela é apenas uma continuação da Guerra Fria. A diferença está no fato de que um dos contendores não mais existe e o vitorioso pretende espumar à vontade.

Pondo de lado um desses livros (o dos irmãos Zhores e Roy Medvedev, Um Stalin Desconhecido – Novas Revelações dos Arquivos Soviéticos. Record, 2006, 443 páginas), por focar questões pontuais da biografia do personagem, os outros dois “invasores”, Deutscher e Montefiore, têm um ponto de partida em comum: Stalin, o regime que instaurou na antiga URSS, a orientação que implantou no movimento internacional dos trabalhadores, e seus monstruosos crimes seriam o produto lógico do bolchevismo e de Lenin. Por  justiça, é preciso fazer uma distinção: Deutscher não via no socialismo e no marxismo as raízes desses males. Mas, feitas essa importante premissa e a ressalva, as coincidências param por aí.

Isaac Deutscher (1929-1967), jornalista e historiador de origem polonesa, ex-militante comunista e trotskista, publicou seu Stalin em 1949, portanto, com seu personagem ainda vivo, fazendo após sua morte, em 1953, uma atualização em 1961. Por isso, a biografia de Deutscher pode deixar a impressão de estar ultrapassada, pois a abertura dos arquivos da ex-URSS potencialmente colocou no horizonte da pesquisa histórica melhores explicações para uma série de fatos até então obscuros. É uma impressão enganosa, pois este Stalin estabeleceu solidamente os marcos fundamentais para a compreensão do personagem: o engajamento político, a ascensão nas fileiras bolcheviques, a conquista da máquina partidária e do Estado soviético e a construção e consolidação do que se chama de stalinismo. O autor, que nunca foi devoto do culto a Stalin  nem se considerava combatente da Guerra Fria, procurou contextualizar a vida do sanguinário ditador, buscando dar ao leitor as possíveis razões de seus atos e mostrando sua vida como produto do seu tempo e de sua trajetória pessoal.

De sua parte, o escritor e jornalista britânico Simon Sebag Montefiore, nascido em 1965, teve a pretensão não apenas de traçar a vida íntima de Stalin, mas também a dos que o rodeavam. Com base em arquivos  pessoais, entrevistas e memórias, Montefiore quis contar a história da “corte do czar vermelho”.

Embora tenha reunido um enorme acervo de episódios, que vão do curioso ao sórdido, não conseguiu fazer a história dessa corte. No caso deste Stalin, sobretudo, pelo fato de ter como base “cláusulas pétreas”, não sujeitas à comprovação. Para Montefiore. os adeptos do marxismo eram fanáticos, quase que “islâmicos”, como chegou a afirmar em uma entrevista, e a corrente bolchevique era, desde sempre, um caos organizacional, intolerante, idiossincrática, maquiavélica, brutal, conspirativa e “endogâmica”. Todos os atos dos “cortesãos” têm essa “explicação” comum. Para Montefiore, são culpados até prova que comprove o crime.

A isso se junta a curiosa via de história do cotidiano empreendida pelo autor, que, de um lado, acabou  ignorando o contexto sociopolítico como elemento de explicação e, de outro, produziu certa ênfase “psicologizante” aos juízos sobre os personagens. Tudo para o autor, enfim, se explica dentro daquele mundo e, claro, porque os personagens eram marxistas e bolcheviques...

Assim, nesse curso “cotidiano”, Montefiore deixa de lado questões importantes, como, por exemplo, a evolução da máquina estatal. Os leitores, neste último ponto, ficam com a impressão de que a estrutura do Estado soviético dos tempos de Stalin era idêntica à de Lenin. Felizmente, há uma sólida bibliografia que mostra essas diferenças. Para Montefiore, porém, não há necessidade disso, afinal eram todos bolcheviques e marxistas...

Outra obsessão do autor que chama a atenção é procurar desqualificar boa parte dos personagens de seu livro pela sua pouca educação formal, ao mesmo tempo que ressalta suas origens e os hábitos e características procedentes das repúblicas soviéticas asiáticas, deixando nas entrelinhas que isso teria permitido sua “fanatização” pelo bolchevismo, numa curiosa analogia com discursos propalados por segmentos de uma certa elite política brasileira e internacional...

Enfim, se é inegável o fato, de há muito sabido, que Stalin e parte de seus “cortesãos” eram elementos brutais e sanguinários, este Stalin de Montefiore não consegue ocultar, num livro que se pretende de História, um aspecto penoso: ser um “acerto de contas” com todos aqueles que acreditaram e ainda crêem não ser o capitalismo a única via para a humanidade.

Por fim, também é importante estabelecer uma questão: a crença de que a abertura dos arquivos de Moscou teria permitido a uma série de “historiadores” e/ou jornalistas dublês de “historiadores” publicar livros que são vendidos como “definitivos” ou repletos de “revelações” sobre a União Soviética, a Internacional Comunista e seus militantes. Parte das biografias de Stalin e outros dirigentes soviéticos propagandeadas com tais qualificações, na verdade, não tem nada de novo: o essencial de seus pensamentos e atos estava de há muito estabelecido. Já sabíamos isso, mas o pior surdo é o que não quer ouvir. Desde a década de 1930  muitas de tais “novidades” já eram conhecidas e públicas. Sob ângulos diferentes, para não andarmos nas  sendas anticomunistas, Boris Souvarine e Leon Trotsky, em especial este último, que até meados dos anos 1930 ainda mantinha contatos na União Soviética, já denunciavam as atrocidades e os crimes de Stalin. Trotsky, em especial, além das denúncias, antecipou muitos dos resultados funestos das práticas stalinistas sobre o Estado soviético e a esquerda internacional. Enfim, o que temos agora, no caso de Stalin, é apenas o reavivamento dos detalhes escabrosos, tão ao gosto dos publicistas a serviço do “pensamento único”.

Dainis Karepovs é historiador, pós-doutorando no Departamento de História do IFCH-Unicamp