Cultura

Os  autores relacionam as artes produzidas no Brasil a um projeto de nação que reencontraria seu povo

A Síncope das Ideias: A Questão da Tradição na Música Popular Brasileira Marcos Napolitano Editora Fundação Perseu Abramo 2007, 160 páginas

Em A Síncope das Ideias, Marcos Napolitano entrelaça a modernidade musical brasileira, entre os anos 1930 e 1960, consagrada por meio da tradição de três gêneros – samba, bossa nova e MPB – que ora se mesclam, ora se tensionam na construção de uma brasilidade. Discutindo as contradições e mediações existentes entre eles, o autor propõe a questão de uma “tradição inventada” na formação da identidade musical brasileira dialogando com o ideário nacional-popular.

Analisando essa premissa durante os anos 1950 e 1960, Miliandre Garcia, em Do Teatro Militante à Música Engajada, destaca como a intelectualidade brasileira, sobretudo da classe média urbana, consolidou uma produção artístico-cultural voltada para a nacionalização de sua linguagem com a preocupação de atingir um mercado consumidor e de popularizar essa produção. A principal intenção observada pela autora refere-se à arte engajada não apenas como conscientizadora das massas, mas de si mesma sobre os problemas específicos da realidade nacional com o advento da modernização capitalista.

No trabalho de Napolitano são analisadas a performance dos artistas, a materialidade das obras, a recepção do público e da crítica e a mediação das gravadoras e das mídias impressa, radiofônica e televisiva para a constituição do campo musical brasileiro. Enfim, analisa a circularidade cultural desses gêneros.

Do Teatro Militante à Música Engajada: A Experiência do CPC da UNE (1958-1964) Miliandre Garcia Editora Fundação Perseu Abramo 2007, 160 páginas

 

Miliandre Garcia discute em seu trabalho os elementos conflitantes que organizaram a arte engajada no Brasil, começando pelo ideário nacional-popular do Teatro de Arena, passando pela formação pedagógica da intelectualidade de classe média com o CPC da UNE, o desenvolvimento da indústria cultural e o atrito entre os músicos bossa-novistas ao incorporar a modernidade sonora ao ideal nacionalista do movimento, dedicando uma análise maior à obra de Carlos Lyra.

Segundo Napolitano, a música popular brasileira é uma instituição sociocultural, depositária de uma tradição e de um conjunto de cânones e valores ideológicos. Um desses cânones é o paradigma mestiço da cultura musical brasileira quando o samba tornou-se o sinônimo do nacional-popular, idéia reapropriada pelas canções de protesto dos anos 1960. O samba deixou de estar apenas nos morros e nas casas particulares (espaços de trocas e fusões musicais como a Casa de Tia Ciata), ganhando as ruas. Em especial, por intermédio da oficialização do Carnaval carioca e da mediação da fonografia, do rádio e posteriormente da televisão, canais em que a tradição inventada da brasilidade incorporou a modernidade.

Da mesma maneira que houve no rádio, nos anos 1930 e 1950, um conflito de padrões estético-musicais, ocorreu também grande divulgação da musicalidade brasileira. O público radiofônico que migrou para televisão na década de 1960 simbolizou essa dualidade. Ao mesmo tempo que esse veículo foi o grande disseminador da arte engajada de protesto com os festivais da canção, também foi o palco do fenômeno Jovem Guarda, que recebeu muitas críticas, tendo sua qualidade sonora e estética, bem como sua ideologia, questionadas pela intelectualidade e pelos artistas de esquerda. Enfim, Napolitano enfatiza a importância das mídias como veículo divulgador das artes, comprometidas ou não com um projeto nacional-popular. É nesse cenário plural e diversificado que a crítica tropicalista se afirmou, questionando não somente a Jovem Guarda, mas também a canção engajada de esquerda. O Tropicalismo era uma paródia desses elementos sonoros.

Assim como Bryan McCann1, Napolitano situa a relação entre samba e identidade nacional em três estágios: entre 1930 e 1937, quando houve a percepção do samba como sinônimo de brasilidade, o gênero teve “seu lugar social” ressituado, rompendo sua geografia tradicional – o morro –, sendo incorporado pela cidade e pela sociedade; entre 1937 e 1945, quando o samba tornou-se a expressão do país, manifestação de uma civilidade folclorizada, propagandeada pelo Estado Novo. É um “samba positivo e higienizado”, deslocando-se das raízes africanas; e entre 1945 e 1955, quando há o retorno do samba crítico, expondo as contradições da sociedade brasileira que vivia os conflitos da modernidade conservadora capitalista. Este foi simbolicamente reapropriado pelas canções de protesto da intelectualidade engajada de esquerda, nos anos 1960, momento em que se definiu um espaço de atuação do “samba do morro” – locus das classes populares que deveriam ser conscientizadas.

A bossa nova, pertencente também a essa tradição inventada sobre a musicalidade brasileira, foi definida pelas camadas médias urbanas e pela circulação no meio universitário, potencializando debates estéticos e tensões culturais, além do cosmopolitismo. O passado foi reapropriado como material estético da modernidade, conciliando vanguarda e tradição – com o samba e o jazz. Esse gênero musical representou um ethos intimista ao mesmo tempo que incorporava elementos do engajamento político – marco gerador das canções de protesto da nova MPB. Com a utilização dos materiais do samba tradicional inovado ritmicamente, a bossa nova promoveu um reencontro com o nacional-popular dos anos 1930. Dessa forma, atraiu os interesses do mercado fonográfico em virtude de um público ampliado, destaca Miliandre Garcia.

Os autores mostram como a canção de protesto ou a arte engajada dos anos 1960 apresentaram algumas imagens poéticas definidoras de maior politização social no Brasil. Eram recorrentes a romantização da solidariedade popular, as crenças no poder da canção e no ato de cantar para mudar o mundo, a denúncia e o lamento de um presente opressivo diante da ditadura e a esperança de um futuro libertador.

Napolitano salienta que muitos músicos, oriundos do movimento bossa-novista, foram se relacionando com o ideal de conscientização popular para a libertação nacional apresentado pelo Manifesto do CPC da UNE, contudo em suas práticas acabaram se afastando dele. Miliandre Garcia observa que o CPC foi criado para divulgar e disseminar a cultura popular, aglutinando diferentes linguagens artísticas e ideais para transformar a realidade brasileira por meio da cultura. Promoveu, com isso, uma dupla conscientização: a de seus atores e a das classes populares. Contudo, as atividades culturais do CPC sempre se firmaram pelo caráter amador e experimental e, à medida que obtinham ou não êxito, a ação cultural era incorporada ou abandonada pelos ativistas, conclui Garcia.

Seja como for, o jovem artista engajado, nacionalista e de esquerda, queria estar apto a produzir uma arte que fosse nacionalista e cosmopolita, politizada e intimista, comunicativa e expressiva, rompendo inclusive com o Manifesto do CPC. Um ponto crucial nesse processo foram os espetáculos performáticos, como o do Opinião, citam Napolitano e Garcia.

As peças de teatro amalgamavam uma identidade moderna, jovem e engajada que atingia um público maciço a fim de disseminar a expressão genuína do próprio povo brasileiro. Assim, esses espetáculos foram ao encontro dos materiais sonoros populares do sertão nordestino e do morro carioca (rurais e urbanos) – espaços imaginários de resistência popular ao novo contexto autoritário, em meio aos quais a juventude estudantil engajada deveria buscar suas referências e agir.

Os dois autores relacionam as artes produzidas no Brasil, neste último século, a um projeto de nação que reencontraria seu povo.

Andréa Cristina de Barros Queiroz é doutoranda em História Social na UFRJ e historiadora da Fundação Biblioteca Nacional (RJ) ([email protected])