Sociedade

Estudantes resistiram às ameaças da polícia, às tentativas de cooptação da reitoria e ao cerco da mídia em seu afã de “criminalizar” o movimento

Os conflitos políticos e culturais desencadeados a partir da ocupação da Reitoria da Universidade de São Paulo, em maio, gravitaram em torno de um conceito: a autonomia universitária. A mobilização estudantil organizou-se e estruturou-se em resposta às ameaças a ela, oriundas de uma série de decretos com os quais José Serra iniciou sua gestão. Mais que isso, a percepção ampliada dos múltiplos desdobramentos desse conceito parece ditar a dinâmica atual e futura do movimento.

Os decretos promoviam uma intervenção nas universidades estaduais paulistas, atacando a margem de autonomia conquistada durante o governo de Orestes Quércia e mantida desde então. Entre janeiro e maio, sua finalidade foi questionada por poucas e tímidas vozes da comunidade acadêmica e pelos sussurros dos reitores, atestando a impotência da universidade diante do poder estatal.

A ação dos estudantes, um raio em céu azul, chamou a atenção inicialmente pela forma, um criativo transplante da peça-chave do arsenal dos movimentos sociais. No entanto, o apoio da sociedade derivou sobretudo de suas palavras de ordem: a autonomia contra as ingerências do governador, a inclusão social contra os privilégios de classe, a organização pública contra a lógica privatista.

Uma vez desencadeada a ocupação, os estudantes souberam resistir às ameaças de uso da força policial, às tentativas de cooptação da reitora e ao cerco da “mídia conservadora” em seu afã de “criminalizar” o movimento e transformá-lo em espetáculo. Demonstraram (contra os catastrofistas de plantão), diria quase didaticamente, que a causa dos movimentos sociais no Brasil ainda conta com o apoio popular, sobretudo quando não desconsidera o conflito de representações no campo simbólico.

Os estudantes da USP conseguiram associar à sua imagem, moldada em parte pelos estereótipos da “juventude”, a idéia de “ação desprendida”, vital para a mobilização coletiva em uma sociedade em que a atuação política está diretamente vinculada à defesa de interesses econômicos e particulares. Ao mesmo tempo, destacaram com nitidez seus adversários: a polícia, o governador, a burocracia universitária, os meios de comunicação.

O impasse continuou mesmo depois que José Serra revogou, em seus pontos mais críticos, os decretos. A hostilidade do governador em relação às premissas do ensino público, demonstrada em atos e palavras, acirrou conflitos internos que até então haviam permanecido latentes. A ingerência do poder estatal desvelou e trouxe ao primeiro plano outras dimensões da autonomia que estavam sendo solapadas de forma sorrateira.

O fator mais diretamente visível dessa redução da autonomia é a ausência de democracia interna nas universidades estaduais paulistas, tornada patente nos desdobramentos da ocupação. Embora a credibilidade política, institucional e intelectual da USP deva ser creditada em larga medida ao papel que desempenhou na resistência e na oposição à ditadura militar, sua estrutura interna de poder permanece praticamente intocada desde a extinção do regime de cátedras em 1968. Os ventos da redemocratização do país passaram ao largo sem varrer o seu “entulho autoritário”. O exercício do poder e a própria representação política estão confinados à figura do reitor e ao estamento burocrático que o envolve – um reduzido grupo de professores titulares que exercem o mando e as funções administrativas que outrora eram exclusivas dos catedráticos.

Nas universidades estaduais paulistas, nem mesmo nos departamentos, estrutura elementar da organização universitária, os professores são considerados formalmente iguais. Os doutores e os alunos só participam do conselho departamental por meio de representantes. Os estudantes não podem exceder a 10% dos membros do conselho. Os funcionários só entram na sala para servir café e redigir atas. Os professores titulares, apesar de seu pequeno número, são maioria nos colégios eleitorais restritos que elegem desde os chefes de departamentos, diretores de unidade e até o reitor.

Convém ressaltar que o mérito acadêmico assenta-se no reconhecimento da comunidade científica e da sociedade em geral e nem sempre coincide com a posição do docente na carreira. Além disso, a história do século 20 não cessou de mostrar que, nas instituições nas quais não prevalece a democracia interna, o exercício do poder tende a se tornar apanágio da tecnocracia e a ser exercido autocraticamente.

A ausência de democracia interna na USP é a chave para a compreensão de uma série de ações aparentemente pouco racionais: a dificuldade da reitora em negociar com os alunos; a recusa do estamento burocrático em reconhecer a legitimidade das reivindicações e das ações dos estudantes; a subserviência ao governador e a truculência em relação aos estudantes demonstrada pela camada dirigente; os artigos e entrevistas na imprensa conservadora de eminentes professores desdizendo em público os autores que ensinam em sala de aula. A própria “crise de representação”, evidente na necessidade de adoção por parte dos estudantes e funcionários de uma medida extrema para se fazerem ouvir, deriva do amoldamento da representação tradicional, discente e docente (CAs, DCE, Adusp), ao status quo.

No entanto, a apatia de professores e dirigentes universitários ante a interferência do governador não se explica sem a consideração de outros aspectos da autonomia. A despreocupação com a redução da autonomia política, financeira e administrativa da universidade consiste apenas no corolário de uma corrosão mais profunda: a perda gradual da autonomia acadêmica.

Deliberações sobre conteúdos e duração de cursos, principalmente na pós-graduação, têm sido decididas em instâncias alheias à universidade, nas agências de fomento que controlam a concessão de bolsas. A pesquisa tem sua forma e seu conteúdo determinados por elas e também pelas “fundações”, um enclave privado incrustado na universidade. Estas vendem projetos, pesquisas e serviços, além de oferecer consultorias e até mesmo cursos. Apenas 5% dos rendimentos auferidos com essas atividades são repassados à instituição, valor que não corresponde sequer ao “aluguel” pelo uso de prédios e equipamentos.

Essa teia assenta-se num jogo de “faz-de-conta”. Os professores assinam contratos de dedicação exclusiva que determinam o montante de seus salários. Realizam suas pesquisas no âmbito da universidade, com o devido registro no departamento. Mas trata-se em geral de atividades pelas quais também são pagos pelo mercado, por intermédio das fundações. Não raro conseguem ainda uma nova remuneração pela mesma pesquisa, por parte das agências de fomento, um adicional por “produtividade”.

A subordinação do ensino, da pesquisa e da extensão à lógica do mercado, aos interesses da empresas, decorre de um processo silencioso de adequação da vida acadêmica aos ditames do neoliberalismo. Mas possui raízes mais profundas. A produção e a aplicação de conhecimento não se desenrolam numa esfera separada da vida social. A ciência e a técnica tampouco são construções naturais ou puramente epistemológicas. São também, como lembra Walter Benjamin, um fato histórico. Não há como elidir a circunstância de que “a técnica serve a essa sociedade exclusivamente para a produção de mercadorias”. Nesse diapasão, a ciência tornou-se um fator decisivo na reprodução e na ampliação do capital.

Talvez o interesse concreto dos estudantes, matriz da reestruturação de seu movimento, não contemple mais que a rejeição de um ensino que os habilita apenas para o mercado de trabalho. No entanto, essa recusa da condição de mera mercadoria não deixa de apontar para as verdadeiras tarefas da universidade na busca de sua autonomia: a reflexão e a crítica do existente.

Ricardo Musse é doutor em Filosofia e professor de Sociologia na FFLCH da USP