Economia

Pela primeira vez na história brasileira, estão sendo criadas as condições para um ciclo sustentado de crescimento econômico com distribuição de renda. O aprofundamento da dimensão distributiva deste ciclo, que depende das lutas democráticas e populares, pode permitir a superação da pobreza crônica que assola a vida dos trabalhadores e dos pobres desde a origem do país

Os grandes empresários da comunicação, que alimentam com ódio e preconceito diariamente a oposição ao governo Lula, já têm uma estratégia para este segundo mandato. Trata-se de três operações combinadas: esconder, turvar, baralhar a compreensão de que o país vive hoje potencialmente o ciclo econômico mais virtuoso da sua história; negar, esconder, dificultar o acesso à informação de que as políticas sociais de inclusão no segundo mandato do governo Lula tendem a alcançar uma extensão e qualidade sem paralelos históricos nas políticas públicas antes praticadas; dar um tratamento policial à cobertura política, procurando construir a imagem de que o Brasil nunca foi tão corrupto, em vez da verdadeira constatação de que o governo federal nunca combateu tanto a corrupção no país.

O reconhecimento de que o Brasil vive hoje potencialmente um ciclo econômico virtuoso inédito não pode ser reconhecido por quem faz oposição ao governo Lula. É vital que a informação e a consciência pública sobre esse novo ciclo possível permaneça obscura.

Para os que alimentam a estratégia de uma vitória do PSDB-DEM nas eleições presidenciais de 2010, isso seria um desastre fatal. Seria anular a campanha propagandística de que o governo Lula é inoperante, ineficaz e incompetente. Não seria mais possível afirmar, como se diz usualmente, que o crescimento econômico atual colhe os frutos da estabilização iniciada com os governos FHC. Tornaria sem credibilidade a acusação de que o PT, principal partido que sustenta a coalizão de governo, traiu os seus princípios fundadores, de compromisso com os que trabalham, nas cidades e nos campos, com os pobres, com os que mais sofrem exploração e discriminação.

Para os que criticam, de um ângulo sectário e esquerdista, o governo Lula, o reconhecimento de tal ciclo econômico colocaria em ponto morto o discurso de que ele continua, no fundamental, as políticas neoliberais de FHC. A própria identidade dessas correntes, hoje ainda muito minoritárias, ficaria comprometida.

No entanto, não é difícil provar com informações e análises que as opções tomadas pelo governo Lula estão sendo, em particular neste segundo mandato, crescentemente capazes de assegurar um novo ciclo econômico de crescimento sustentado com distribuição de renda. A formação dessa consciência pública é, pois, fundamental para delinear as perspectivas de quem luta pela continuidade e pelo aprofundamento do atual processo de transformações.

Contra-argumentos

O primeiro e mais surrado argumento que se levanta contra a hipótese de um novo ciclo econômico é o de que o crescimento recente da economia brasileira é mera extensão, em plano medíocre, do crescimento da economia mundial. O fundamento de um liberalismo radical, de crença nos poderes automáticos dos mercados, que sustenta esse argumento, deveria envergonhar os autores de esquerda que o utilizam. Pois as decisões do Estado nacional, no contexto das correlações de forças geopolíticas e econômicas, são fundamentais para definir a dinâmica do processo econômico.

Um exemplo: em 1995, primeiro ano do governo FHC, o superávit no balanço de pagamentos (comércio, serviços, rendas e transferências unilaterais) era de US$ 12,9 bilhões; em 1999, devido à desastrosa decisão da paridade real/dólar, havia um déficit de US$ 7,8 bilhões. Com a selvagem abertura comercial, uma política ativa de desregulamentação do mercado de trabalho e de diminuição do quadro do funcionalismo público, de 1990 a 2001 foram criados apenas 3,2 milhões de empregos. Em meio ano, somente no primeiro semestre de 2007, foram criados 1,095 milhão de empregos com carteira assinada. Mero automatismo de mercado?

Seria mais correto afirmar que o crescimento da economia mundial tem sido uma condição necessária, mas não suficiente, para explicar o novo quadro da economia brasileira. As exportações nacionais têm crescido em patamar superior ao das exportações mundiais; houve uma importante ampliação, bem como diversificação dos parceiros econômicos, fruto, em grande medida, da nova política externa do governo Lula (por exemplo, as exportações para os EUA, que eram de 25,7% do total em 2002, hoje são apenas 17,7% do total). Mas, principalmente, é cada vez maior a responsabilidade dos aumentos da ocupação e da renda, em particular dos estratos mais pobres, e o crescente impacto dos gastos públicos do governo federal na manutenção do dinamismo da economia brasileira. Em ambos os casos, em decorrência de opções estratégicas de governo.

Além disso, uma coisa é afirmar, com razão, que a economia brasileira tinha o potencial de ter crescido muito mais nos últimos anos, se não fosse a política conservadora do Banco Central e, até parte de 2005, do próprio Ministério da Fazenda. Mas seria um erro grosseiro, de alcance histórico, banalizar o fato de que entre 2004 e 2006 a economia brasileira, pela primeira vez desde o final da década de 1970, cresceu em média 4,1% ao ano e que, neste ano, está acelerando o seu ritmo e tende a superar os 4,5%.

O segundo contra-argumento quanto à definição de um novo ciclo econômico é de que manter uma direção neoliberal no Banco Central é a prova maior da continuidade da política econômica do governo Lula em relação aos governos FHC. Sem olvidar que houve uma troca de diretores do Banco Central, saindo exatamente o núcleo mais monetarista, é preciso reconhecer analiticamente que a posição de poder do Banco Central em relação ao Ministério da Fazenda ficou bastante modificada com o controle inflacionário e a superação da vulnerabilidade externa da economia brasileira, que se consolidou a partir de 2005.

O principal instrumento de sustentação da financeirização da economia brasileira era, sem dúvida, a manutenção da taxa Selic em patamares escandalosamente mais elevados do que os juros praticados nas economias centrais. Isso definia um padrão de atração de capitais especulativos, de crescimento exponencial da dívida e de desestabilização das finanças públicas, de prática de altos juros na economia e de depressão da taxa de investimento. Durante os anos FHC, a média da taxa Selic foi de 26,59% ao ano; no primeiro governo Lula, ela foi reduzida a 18,50% em média, ficando, mesmo assim, em um patamar ainda muito elevado. O Plano de Aceleração de Crescimento prevê uma taxa Selic média nos próximos quatro anos de algo em torno de 10% (descontada a inflação prevista, de 8,1% reais em 2007, 6,9 % em 2008, 6,0% em 2009 e 5,6% em 2010).

A direção neoliberal do Banco Central continua prejudicando a dinâmica da economia brasileira. A demora na redução da taxa Selic tem atraído capital especulativo e contribuído, de forma significativa, para a valorização do real, com todas as suas conseqüências negativas sobre vários ramos industriais e agrícolas. Até agora, essa valorização excedente do real tem sido em parte compensada por forte aumento dos preços dos produtos de exportação. Mas o problema cambial, em uma conjuntura externa menos favorável, pode exercer um peso mais negativo ainda no crescimento potencial da economia.

Além disso, a completa ausência de regulação dos juros e tarifas cobrados pelos bancos comerciais, em um contexto de forte concentração de capital financeiro, tem permitido a cobrança de spreads inaceitáveis. Em particular, poderiam ser adotados mecanismos de controle de entrada e saída de capitais especulativos, como é feito em várias economias do mundo.

Mas hoje o impacto das políticas do Banco Central está severamente reduzido ao conjunto das políticas governamentais. Além disso, o enfoque desenvolvimentista do Ministério da Fazenda tem permitido decisões mais favoráveis a um novo ciclo no Conselho Monetário Nacional, como a forte redução da Taxa de Juros de Longo Prazo, praticada pelo BNDES. Um colunista neoliberal chegou a falar de uma “racionalidade heróica” do Banco Central mantida em meio a um mar crescente de irracionalidade!

O terceiro contra-argumento diz respeito à sustentabilidade do atual ciclo: ele seria profundamente dependente do dinamismo da economia mundial e esbarraria em gargalos-chave de infra-estrutura. A resposta a esse último argumento nos leva a identificar mais claramente os condicionantes fundamentais ou estratégicos do novo ciclo da economia brasileira.

Caracterização do novo ciclo

O economista Luciano Coutinho, atual presidente do BNDES, argumenta que a verdadeira estabilidade da economia brasileira teria se confirmado a partir de 2005, com o crescimento das exportações, do saldo do balanço de pagamentos e a acumulação de reservas. Esse teria sido, segundo ele, exatamente o grande fracasso do Plano Real: o aprofundamento da vulnerabilidade externa, central desde o impasse do último ciclo do crescimento na década de 1970, sob o regime militar.

Desde a primeira grande crise cambial no início dos anos 1980, todo surto de crescimento da economia brasileira foi imediatamente interrompido pela vulnerabilidade externa, que foi bastante agravada nos anos neoliberais.

O governo Lula foi capaz de promover uma guinada histórica nesses fundamentos. Desde 2003, o balanço de pagamentos tem apresentado saldo crescente, chegando a US$ 30,6 bilhões em 2006. Mais decisiva é a acumulação de reservas internacionais: desde outubro de 2006, o governo Lula havia alcançado o recorde histórico de US$ 75 bilhões; ao final do primeiro semestre deste ano, ela já havia alcançado US$ 150 bilhões, com previsões de chegar a US$ 200 bilhões no final de 2007! Só para lembrar: ao final de 2002, as reservas líquidas (tirando o aporte do FMI) eram de US$ 16,3 bilhões.

A superação da vulnerabilidade externa tem esse primeiro grande significado: criar um espaço maior de autonomia do Estado nacional frente ao dinamismo do mercado mundial, em particular das pressões dominantes do capital financeiro. Ela permite internalizar os centros de decisão macroeconômica em uma medida importante e inédita nas últimas décadas. Frente a novos dinamismos da economia mundial, o Estado nacional tem agora margem de manobra conquistada para agir. Esse é o primeiro fundamento do novo ciclo.

O segundo é a nova e imensa capacidade de ação macroeconômica do Estado na economia brasileira. Com a queda drástica da taxa Selic, o pagamento dos juros da dívida pública tem um impacto qualitativamente menor no potencial de gastos do orçamento federal e das empresas estatais; com o crescimento acelerado dos empregos formais, a crise da Previdência brasileira pode ser administrada por um novo padrão de gestão.

Desdramatização

Hoje, cerca de 40% da dívida pública total, calculada em US$ 1,29 trilhão, é lastreada na taxa Selic: cada ponto a menos desta taxa equivale a uma economia anual de cerca de R$ 5 bilhões ! O PAC prevê que o pagamento de juros em relação ao PIB seja de 5,6% em 2007, 5,0% em 2008, 4,4% em 2009 e 3,4% em 2010. Durante os governos FHC, mais de 9 milhões de pessoas se aposentaram, mas o saldo líquido de empregos formais foi de apenas 796.967. Essa é a principal raiz da crise da Previdência: a erosão da base de contribuintes. Com o governo Lula, esse fundamento de raiz foi drasticamente melhorado, com a criação em média, nos primeiros quatro anos, de onze vezes mais empregos com carteira assinada. Tal dinâmica, como demonstra o primeiro semestre deste ano, que estabelece um novo recorde, deve ser ainda bem mais forte no segundo governo Lula.

De acordo com estudo da economista Ana Cláudia Além, assessora do BNDES, o Brasil pode chegar a um déficit nominal zero já em 2008 ! O déficit nominal zero mede todas as receitas, todas as despesas e mais o pagamento de juros. A dívida pública, que atingiu 52,4% em 2003, tenderia a ficar próxima de 30% do PIB em 2010!

Isso significa uma importante desdramatização do esforço fiscal, a geração de superávit primário, nos próximos anos. De acordo com o jornal Folha de S.Paulo de 21 de maio, o superávit primário sobre a receita já deverá cair de 12,5% em 2004 para 7% em 2007, abrindo uma folga de R$ 30 bilhões no orçamento. E com o maior dinamismo da economia, os dados sobre a arrecadação da União estão seguramente subestimados: eles tendem a crescer de forma contínua nos próximos anos.

A nova disponibilidade orçamentária do governo federal deve ser somada à força das estatais (em particular a Petrobras), dos bancos públicos federais e de um dos maiores bancos de fomentos do mundo, o BNDES. Este tinha em 2003 cerca de R$ 28 bilhões para emprestar. Este ano, prevê-se um montante de empréstimos da ordem de R$ 60 bilhões (o volume de empréstimos cresceu 40% no primeiro semestre, indicando com segurança um novo ciclo de investimentos). A Petrobras aumentou seus efetivos de 34,5 mil para 49,9 mil trabalhadores de 2003 a 2007, e suas subsidiárias praticamente dobraram o número de empregados.

Enfim, essa é a segunda marca do novo ciclo: o Estado brasileiro recuperou, depois de décadas, parte de sua capacidade estratégica de investir maciçamente e expandir gastos sociais. O Plano de Aceleração do Crescimento é exatamente a expressão disso: prevê o investimento de R$ 503,9 bilhões, dos quais cerca de 85% vêm das estatais federais e demais entes federados.

A terceira característica decisiva desse novo ciclo econômico, realizado sob regime de democracia, é o seu potencial distributivo. Para isso convergem o aumento real do salário mínimo, o controle da inflação e, em particular, o do custo da cesta básica, que têm profundo impacto sobre as classes populares, o crescimento exponencial dos empregos e a consequente melhoria no padrão dos acordos salariais, as políticas distributivas de sentido universalista do Ministério do Desenvolvimento Social, as fortes políticas de inclusão do Ministério da Educação, o incentivo quadruplicado de crédito e assistência técnica à agricultura familiar, a expansão dos circuitos da economia solidária que hoje já abarcam 1,5 milhão de postos de trabalho, as políticas afirmativas voltadas para os negros e as mulheres. O fato de o PAC ter incorporado de forma decisiva investimentos em “infraestrutura social”, com a previsão de investimentos de R$ 170 bilhões nos próximos anos, para saneamento, urbanização de favelas e construção de habitações, faz parte dessa dinâmica de direcionar o crescimento para o alargamento popular do mercado interno.

É evidente que este potencial distributivo do novo ciclo econômico depende, fundamentalmente, das lutas políticas e sociais dos trabalhadores e do povo brasileiro. E seria insensato pensar o contrário. Qual será a expansão do salário mínimo real e em que medida serão ampliadas as políticas sociais? Será realizada alguma reforma tributária de cunho redistributivo? Em que medida avançarão os direitos do trabalho? As reformas urbana e agrária ganharão centralidade? Nenhuma das respostas a essas perguntas pode ser formulada de antemão.

Mais que tudo, será fundamental o planejamento democrático desse novo ciclo, o que exige um esforço profundo de republicanização e democratização das estruturas de decisão e gestão do Estado brasileiro. A definição dos setores sociais prioritariamente beneficiários do crescimento, a adoção de lógicas econômicas intensamente distributivistas em oposição às dinâmicas concentradoras de mercado, a direção e a regulação desse novo ciclo em sua dimensão ecológica, o amadurecimento de sistemas nacionais de inovação em áreas estratégicas dependem desse planejamento democrático.

Mas é evidente que a distribuição de renda, já iniciada no primeiro governo, tem todo o potencial de ser aprofundada nos próximos anos em uma dinâmica política ofensiva de conjunto. Essa nova economia política seria, enfim, a base social de um período de instauração de uma dinâmica de revolução democrática no país. A maior conquista dessa revolução democrática seria exatamente, a médio prazo, tornar a pobreza crônica uma peça de museu na história do Brasil.

No interessante ensaio “Reformas, que reformas?”, publicado no dia 20 de julho no jornal Valor Econômico, o economista neoliberal Armando Castelar Pinheiro afirma: “O debate sobre as reformas está sumindo do noticiário. Uma busca na página do Valor retorna 477 menções à palavra ‘reformas’ no primeiro semestre de 2007, contra 1.607 quatro anos antes. Será porque o Brasil não precisa de reformas?” O desespero do economista está em identificar a perda de centralidade do paradigma neoliberal no jornal que foi exatamente concebido para ser uma das matrizes principais de sua permanente propaganda.

O reconhecimento desse novo ciclo econômico deveria honrar a memória, os sonhos, a obstinação e a presença da tradição nacional-desenvolvimentista do país. Chamado de “sociodesenvolvimentista”, pelo ministro Guido Mantega, este novo ciclo bem mereceria ter o nome de ciclo Celso Furtado-Maria da Conceição Tavares, como modo de traduzir a vitória desses dois grandes intelectuais brasileiros sobre os modos de pensamento neoliberal e em favor dos direitos inalienáveis do povo brasileiro.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na UFMG