O direito de greve foi uma das mais importantes conquistas do movimento operário. Ele pôs um fim à subordinação do trabalhador perante seu empregador. Na negociação individual, a riqueza do patrão proporciona-lhe superioridade esmagadora sobre o operário, sempre necessitado de emprego para garantir a própria sobrevivência e a dos seus. Mas, havendo direito de greve, os trabalhadores podem infligir ao patrão um prejuízo igual ou maior ao que a privação do emprego imporia a cada trabalhador. Em outros termos, a conquista do direito de se organizar em sindicatos, barganhar contratos coletivos de trabalho e fazer greve deu aos assalariados tal poder de pressão que lhes permitiu obter (por meio de muitas lutas, ao longo de séculos) importantes benefícios – férias, 13º salário, jornada limitada de trabalho, salário mínimo etc. –, hoje incorporados aos direitos humanos universais.
Mas, como todos os direitos, também o de greve tem por limite os direitos de outras pessoas. Na Constituição Federal consta, por exemplo, que todo cidadão brasileiro tem direito a saúde e educação, sendo ambas obrigações do Estado. Ora, quando médicos ou professores entram em greve, os direitos de todos cidadãos (inclusive os dos grevistas, enquanto pacientes e educandos) são atropelados. As conseqüências da suspensão dos serviços de assistência à saúde podem ser muito graves, acarretando, às vezes, mortes, invalidez ou enfermidades crônicas. O mesmo vale, naturalmente, para a suspensão de outros serviços vitais, como os dos transportes públicos, limpeza pública, fornecimento de energia etc.1
A greve nesses serviços públicos é diferente daquela em empresas capitalistas, cujos donos dependem da produção contínua para se viabilizar financeiramente. Como os serviços públicos não são vendidos, a receita do governo (contra o qual se dirige a greve) não sofre nenhuma diminuição; o poder de pressão das greves nos serviços públicos se volta contra o governo na medida em que fazem os habitantes sofrer e estes atribuem o seu sofrimento à intransigência do governo. Sendo a população composta em sua maioria por pessoas que dependem de seu trabalho, é provável que essa maioria se coloque ao lado dos grevistas e atribua a culpa pelos seus dissabores às autoridades.
Mas o governo tem em geral grande dificuldade em atender as reivindicações de seus funcionários, pois acarretam quase sempre o encarecimento dos serviços públicos; o dinheiro gasto a mais com os servidores beneficiados tem de ser inevitavelmente retirado de outros serviços prestados pelo Estado, cujo volume cai, aumentando a insatisfação dos usuários. Por esses motivos, as greves nos serviços públicos tendem a ser muito longas, durando meses. A paralisia de serviços públicos essenciais por extensos períodos de tempo acarreta prejuízos ponderáveis ao povo, inclusive aos próprios grevistas e seus familiares.
Esses prejuízos são amenizados pelas decisões da Justiça de obrigar parte dos grevistas a manter os serviços, ainda que precariamente. Pela lógica das greves no serviço público, quanto mais limitados os prejuízos, menor o sofrimento da população atingida, menor a pressão sobre o governo e, portanto, a greve se prolongará ainda mais. O prejuízo causado pela greve não é reduzido pelo fato de a Justiça fazê-la parcial. Ele apenas é diluído num período de tempo maior.
Por outro lado, os trabalhadores que prestam serviços públicos não devem ser prejudicados com a eventual perda do direito de greve por causa da importância de seu trabalho para a população ou para o país. É perfeitamente possível compensá-los com outro direito, que as categorias que podem fazer greve não têm. Eles teriam direito a uma corte arbitral, cuja sentença teria de ser obrigatoriamente cumprida pelo governo.
Uma corte arbitral se compõe em geral de representantes das partes – funcionários e governo –, além de algum elemento neutro para desempatar, na hipótese bastante provável de que as negociações entre os envolvidos desemboquem em sucessivos impasses. No caso de categorias de servidores impedidos de entrar em greve, pela essencialidade de sua produção, seria justo que o elemento neutro fosse composto por representantes dos usuários de seus serviços. As reivindicações dos professores seriam arbitradas por uma corte composta por representantes dos sindicatos dos docentes, da direção das instituições em que ensinam e por representantes de seus alunos ou dos pais de seus alunos. As reivindicações do pessoal de saúde seriam arbitradas por representantes das partes em conflito e dos usuários dos serviços prestados por aquele pessoal.
Note-se que essa forma de arbitrar as reivindicações inverte o relacionamento entre servidores e usuários. Havendo greves de servidores, estes não podem deixar de punir os usuários para pressionar o governo a ceder. Se em lugar da greve houver arbitragem, do modo acima descrito, os servidores terão todo interesse em ganhar a simpatia dos usuários, em vez de puni-los com a suspensão parcial de suas atividades. Os serviços públicos não sofreriam longas interrupções parciais, com os prejuízos decorrentes. Em vez disso, melhorariam de qualidade.
É possível que essa proposta levasse ao rápido atendimento de toda e qualquer reivindicação do funcionalismo público, o que elevaria substancialmente o déficit das contas públicas, com inegáveis implicações inflacionárias. Para prevenir isso, a composição da corte arbitral teria de conter talvez um quarto elemento – especialistas em economia pública e macroeconomia –, que teria por tarefa esclarecer aos representantes dos funcionários, do poder público e dos usuários os efeitos econômicos diretos e indiretos de cada proposta de solução do conflito. Para que a corte arbitral seja justa, seria necessário que metade dos especialistas fosse indicada pelos servidores e a outra metade pelo poder público.
Paul Singer é secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.