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A agroenergia poderá redesenhar o tabuleiro econômico e político do século, desconcentrando pólos de abastecimento e propiciando à agricultura dos países pobres papel de destaque na agenda do desenvolvimento

Possivelmente, desde a Segunda Guerra Mundial nenhuma outra agenda ganhou um sentido de urgência tão forte, com apelo social, econômico e midiático tão amplo, como o que se verifica agora no caso do aquecimento global e sua principal promessa de mitigação, a agroenergia. A gravidade das ameaças em jogo e o impacto geopolítico das alternativas cogitadas explicam essa difusão contagiante.

Tornou-se consenso científico a necessidade de reduzir em cerca de 50% as emissões de dióxido de carbono até 2050 para evitar que a temperatura da Terra oscile acima de 2º C neste século. O fracasso já tem seu custo avaliado: eventos desastrosos para a vida e os sistemas de produção terrestres serão intensificados, com a agravante de um inédito efeito retroalimentador que o processo encerra graças a uma espiral ascendente de + aquecimento + degelo + aquecimento... Abortar essa dinâmica   autopropelida é em si uma tarefa gigantesca, amplificada pela comparação com os parcos resultados obtidos até agora através do Protocolo de Kyoto, que previa reduzir em 5,2% as emissões mundiais até 2012, tendo por base os níveis de 1990. Desde que o documento foi assinado – sem a adesão dos EUA, principal poluidor mundial, responsável por 25% das emissões –, os índices de concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera só fizeram crescer. O novo patamar de preços do petróleo, a desenhar uma curva inflexível acima de US$ 70 o barril, adicionou à contabilidade ambiental um lubrificante de mercado que sanciona a busca de alternativas para o ciclo fóssil. No futuro imediato, a fonte mais promissora é a agroenergia brasileira, que já fabrica em escala industrial o etanol de maior  competitividade no mercado.

Nada justifica, porém, o delírio de que se poderia implantar um novo Oriente Médio nos trópicos. Sua lógica é a desconcentração; a diversificação de matérias-primas, sua principal versatilidade. Tampouco esse potencial deve servir para homologar – e universalizar – o padrão de consumismo vigente nos mercados ricos, do qual o transporte individual é o expoente mais visível e um dos mais danosos. O que a agroenergia de fato pode e deve fazer de imediato é substituir uma pequena porcentagem de  combustíveis fósseis, que hoje atendem a 80% do abastecimento mundial, e abrir passagem para uma nova matriz energética sustentável. Não é pouco. E quem liderar essa agenda, como o Brasil se propõe a fazer, perfilará entre as potências energéticas do futuro.

Para não se reduzir a um simples botox da civilização do petróleo, porém, a agroenergia terá de vencer respeitáveis desafios agroambientais e comerciais em escala internacional. Mas não só. Em alguns casos – como o tratamento dispensado à mão-de-obra no campo brasileiro –, a agroenergia precisará se reinventar para obter legitimação mundial.

Se tiver êxito, além de introduzir uma fonte sustentável, que na fase de produção absorve quantidades de CO2 proporcionais à etapa de emissão, a agroenergia poderá redesenhar o tabuleiro econômico e político do século, desconcentrando pólos de abastecimento e, sobretudo, propiciando à agricultura dos países pobres – em particular ao cooperativismo de pequenos produtores – um aggiornamento de importância na agenda do desenvolvimento.

Naturalmente, estamos falando de uma possibilidade, e não uma certeza histórica. A exemplo de outras grandes transformações econômicas, essa também não acontece num vazio de conteúdo histórico e não será decidida apenas pelo escrutínio das vantagens comparativas tão caras aos visionários do livre-mercado. A verdade é que a modelagem das opções disponíveis só deixará de refletir a hegemonia de interesses excludentes se um projeto de desenvolvimento da agroenergia for induzido por políticas públicas criativas e corajosas, apoiadas em forte legitimação social. No fundo é sempre assim. Mas é especialmente assim neste caso de uma  transição impelida por dinâmica de alta velocidade, duplamente turbinada, pelo crepúsculo do petróleo e pelo alarme do efeito estufa.

O Brasil, que já viveu a experiência de implantação do Proálcool em regime de urgência econômica e poder ditatorial, sabe que engatar uma promessa de futuro à luta contra a pobreza e a desigualdade não é tarefa que possa ser atribuída exclusivamente ao mercado. Não se trata de achar que os usuários são heróis ou vilões. Trata-se, essencialmente, de uma argüição que a História dirige ao poder de organização da sociedade.

Um pedaço importante do que a agroenergia vai significar para o desenvolvimento brasileiro dependerá em grande parte dessa capacidade das forças democráticas de construir um projeto social que a conduza. Nada acontecerá apenas porque há disponibilidade de terras, liquidez abundante de capitais e competência tecnológica, ainda que esses fatores sejam uma vantagem brasileira. Da mesma forma, o automatismo oposto – a colisão frontal entre estômagos vazios e tanques de veículos cheios, antevista por um ambientalismo de recorte neomalthusiano – tampouco é inexorável. A agroenergia não é a causa da fome preexistente no mundo, ainda que possa vir a reforçá-la se políticas adequadas não forem instituídas pelos Estados e governos. O divisor de águas capaz de evitar os grandes riscos embutidos nas grandes promessas da História passa pela criação de instrumentos democráticos de acomodação da lógica privada no âmbito do interesse público. Esse é o ponto nevrálgico da agroenergia. E sobre ele deveriam se debruçar com mais apetite os movimentos sociais, em particular os ecologistas.

Tal balizamento pode assumir diferentes faces em cada etapa do desenvolvimento. Não necessariamente a criação de uma estatal, do porte de uma Petrobras ou da Eletrobrás, uma vez que a agroenergia sempre terá sua produção muito mais descentralizada que o petróleo ou a energia elétrica. Mas é imprescindível a fixação de estacas públicas para que os impulsos da lógica estrita do lucro não transformem uma promessa de agenda sustentável em fonte adicional de desequilíbrios. Salvaguardas como o zoneamento agrícola impositivo são indispensáveis para evitar que a nova atividade desaloje terras e lavouras destinadas à produção de alimentos. Ou, pior ainda, promova um ciclo de desmatamento, inadmissível em qualquer circunstância, ainda mais num país com 200 milhões de  hectares de pastagens, boa parte delas ociosa.

Produtividade mortal

Igualmente obrigatória é a ação do Estado para assegurar direitos sociais e trabalhistas a cerca de 500 mil brasileiros que atuam no corte e processamento da cana-de-açúcar em regime de trabalho que algumas vezes rivaliza com os tempos da senzala.

Há aí uma evidência pedagógica das distorções engendradas pelos mercados quando deixados à própria sorte. Mais de duas dezenas de óbitos registrados nos canaviais paulistas nos últimos anos têm como diagnóstico paradas cardiorrespiratórias. Vale dizer, cãimbras no músculo do coração decorrentes de exaustão física.

O histórico sugere que está em curso uma tentativa desesperada de revogar o arrocho salarial por saltos de produtividade – mortais, e sem rede de proteção – impostos pelo sistema de seleção individual e  computadorizado que orienta a busca da produtividade máxima nas modernas usinas do estado de São Paulo. Graças aos recursos da informática, trabalhadores mais fracos ou mais velhos estão sendo descartados pelas empresas, que promovem a cada safra uma autodepuração darwinista da mão-de-obra até o limite do seu sacrifício. Para ganhar mais do que o piso salarial – de R$ 300 a R$ 400 por 6 toneladas de cana/dia – os “mais aptos” cortam hoje, em média, de 10 a 12 toneladas de cana/dia. Em  1969 a média por homem era de 2 a 3 toneladas/ dia. O salário real permanece o mesmo de então.

Tamanha assimetria reflete a revogação  unilateral, pelas usinas, do famoso Acordo de Guariba, de   1984, que pretendia justamente limitar a carga de trabalho nos canaviais paulistas. Em 15 de maio daquele ano mais de 5 mil cortadores de cana entraram em greve no noroeste paulista. Invadiram cidades e incendiaram lavouras em protesto contra a alteração do sistema de colheita da cana, que passara de cinco a sete ruas, impondo sacrifícios adicionais à jornada. O movimento foi reprimido e um trabalhador rural morreu baleado. Mas em 17 de maio seria assinado o Acordo de Guariba, que atendia a parte das reivindicações, com a volta do sistema de cinco ruas na colheita. Foram necessários mais três anos de greves e dois outros trabalhadores mortos numa brutal repressão em Leme, em 1986, para que o Acordo de Guariba fosse adotado no estado de São Paulo.

Vinte anos, e o que se assiste é a uma nova corrida suicida entre o metabolismo humano e o regime de trabalho para superar níveis inaceitáveis de remuneração da mão-de-obra. Há, ademais, o avanço da mecanização a espremer adicionalmente os músculos do coração e a alma desses trabalhadores.

Grandes gafanhotos de lata já se ocupam de cortar 40% da colheita paulista e devem assumir 100% da tarefa em 2017, quando entra em vigor a proibição da queimada que precede o corte manual. Sem uma política pública para a agroenergia, o destino dessa mão-de-obra imitará o ciclo da matéria-prima na qual sua vida está enredada: esmagamento, bagaço e descarte.

Diante de tais práticas seria fácil demonizar a opção dos biocombustíveis, como faz certo raciocínio mais ligeiro que histórico. Mas, o que de fato salta aos olhos nessa equação em que a demanda se expande, os lucros crescem, o arrocho salarial aumenta e o futuro se estreita, é o silêncio da política. Ou melhor, a complacência das entidades representativas dos trabalhadores, sejam elas sindicais ou partidárias. Esse hiato na dialética da agroenergia brasileira torna-se sobremaneira incompreensível quando do outro lado da mesa existe uma organização patronal poderosa, dotada de eficiência técnica e uma pesada articulação política. Tamanho desequilíbrio ajuda a entender por que a fiscalização trabalhista tem propiciado algumas vantagens e direitos aos cortadores, entre os quais, a redução do trabalho infantil (que caiu de 14,7% do total em 1992, para 3,3% deles em 2005) e o avanço do contingente com carteira assinada (que pulou de 19,2% para 47% do total, respectivamente) sem que se observe a mesma contrapartida do lado salarial. A lição é clara: uma das sementes dessa “agroenergia selvagem” é a fragilidade organizativa dos trabalhadores.

No fundo, embora funesta, não se  trata propriamente de uma novidade na história brasileira. Fastígio e miséria formam uma endogamia clássica na trajetória do desenvolvimento nacional. O ciclo do açúcar fez do Brasil a maior plataforma de exportação do mundo colonial. Mas produziu uma sociedade escravocrata cuja herança ainda nos consome. O café gerou a industrialização e pagou parte da urbanização, mas a fábrica e a cidade não produziram um país mais justo e harmônico. Há 25 anos o Brasil patina sem rumo, tendo recuperado no governo Lula algumas premissas importantes para repensar seu desenvolvimento. Não tinha, porém, até agora, uma alavanca tão poderosa de inserção internacional quanto promete ser a agroenergia, entendida não apenas na sua dimensão agrícola, mas também na esfera da alcoolquímica, da fabricação de plásticos biodegradáveis e outras oportunidades de inovação industrial, sobretudo de bens de capital como os motores flex e equipamentos para destilarias.

Pode-se pensar um pedaço do futuro brasileiro em torno disso. Mas não dá para ter esperança nele se um bóia-fria continuar recebendo um salário equivalente ao de 1969, com produtividade quatro vezes maior e, ao final, o prêmio da exclusão para o resto da vida. Esse é um problema político, e não da agroenergia em si. Do ponto estritamente econômico não há razão para que seja assim.

Álcool brasileiro: custo inferior

A competitividade da agroenergia brasileira é tão significativa que só pode ser coibida, como tem sido, através de medidas protecionistas como subsídios e barreiras tarifárias, que distorcem totalmente esse mercado e mascaram a seleção das alternativas verdadeiramente eficientes, tanto do ponto de vista econômico quanto ambiental. Na ponta do lápis, o álcool brasileiro custa 50% menos que o norte-americano – razão pela qual é taxado em US$ 23 o barril – e é 30% mais barato que o europeu. Para  obter o mesmo volume de etanol extraído de um hectare de cana, os EUA necessitam o dobro da área de milho e agregam  apenas 10% mais de energia por unidade de combustível consumida nessa produção. O álcool brasileiro, além de gerar oito vezes mais energia do que consome no seu fabrico, tem um custo quase três vezes inferior ao similar norte-americano, o que sugere sérios gargalos estruturais à expansão do etanol do milho. A administração Bush, todavia, antecipou e elevou bruscamente as metas do setor para 132 bilhões de litros de álcool em 2017 – o que implicaria multiplicar por sete a oferta atual de milho para fins energéticos, gerando forte pressão sobre uma commodity cuja importância rivaliza com a do trigo na cadeia alimentar da humanidade. A febre parece estar gerando a própria vacina, ao inviabilizar usinas norte-americanas pelo alto custo da matéria-prima, a exigir um protecionismo crescente contestado por outros produtores.

O Brasil tem, portanto, um largo horizonte de competitividade pela frente, o que torna ainda mais anacrônicas as relações sociais e trabalhistas persistentes no campo. O país já substitui 25% de sua gasolina com 17 bilhões de litros de álcool obtidos de apenas 0,5% de sua área agrícola (ou 2,5 milhões de hectares). Para efeito de comparação, o etanol de milho requer 3,5% da área agrícola total dos EUA (isso para substituir 0,5% da gasolina consumida). Na União Européia seria preciso deslocar quase 75% do espaço agrícola para produzir biocombustíveis que substituam modestos 10% de gasolina e diesel.

O consumo brasileiro de gasolina poderá ser integralmente atendido pelo álcool com o uso de apenas 1,5%  das terras já cultivadas – sem desmatamento nem expulsão de lavouras de alimentos. Bastaria dobrar essa área (3% do espaço agrícola total do país), para exportar etanol capaz de reduzir em 10% o uso de gasolina nos EUA.

É importante relembrar como foi que chegamos a isso para não dar asas à imaginação dos profetas das “vantagens comparativas”, que rejeitam o planejamento público como fonte de ineficiência na “ordem natural das coisas”. Vantagens comparativas existem, não há dúvida. Mas elas também podem ser direcionadas  e, sobretudo, criadas historicamente, sendo esse, em grande medida, o principal desafio de um projeto soberano de desenvolvimento. O fato incontornável é que o Proálcool recebeu do Estado brasileiro, leia-se da sociedade, investimentos da ordem de US$ 16 bilhões de dólares desde 1975, na forma de incentivos fiscais e ganhos de pesquisa transferidos integralmente à indústria alcooleira que hoje remunera o cortador de cana a R$ 2 por tonelada cortada e amontoada. Não é necessário esquecer essas distorções de um projeto erigido sobre alicerces coloniais para admitir que esse dinheiro não foi em vão. No início do Proálcool, nos anos 70, o Brasil obtinha 2 mil litros de etanol por hectare. Em 1999, o rendimento era de 5 mil litros/ha; hoje oscila em torno de 7 a 8 mil litros/ha, sendo viável a partir de um barril de petróleo de US$ 35, contra US$ 60/70 no caso do álcool norte-americano e US$  80 para viabilizar o biodiesel europeu.

Três décadas depois, o etanol brasileiro reúne 325 destilarias e movimenta R$ 50 bilhões. Nos próximos cinco anos está prevista a construção de 86 novas destilarias com U$ 17 bilhões de investimentos. A produção deve saltar dos atuais 18 bilhões de litros para 38 bilhões em 2012-2013. Na área industrial, o motor dos veículos flex (que formam 85% das vendas  atuais) só não tem rendimento melhor porque as montadoras não investem em tecnologia local, sendo essa mais uma evidência da necessidade de uma política de Estado para realizar o potencial da agroenergia.

Mais recente, e sem a herança secular do colonialismo, da escravidão e da ditadura, o programa brasileiro do biodiesel reúne condições que reforçam a esperança em políticas públicas para democratizar as oportunidades oferecidas pela agroenergia. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está financiando projetos de biodiesel em até 80%, percentual que sobe para 90% quando o empreendimento possui o Selo Social, ou seja, é reconhecido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário como uma parceria com a matéria-prima da agricultura familiar. Outra vantagem destinada a esse tipo de associação é que nas regiões mais pobres do país (Norte e Nordeste) conta com isenção total da Cide e do PIS/Cofins.

A exemplo do Proálcool no passado, o biodiesel também receberá forte injeção de investimento da  Petrobras, cerca de US$ 1,5 bilhão, entre 2008 a 2012. O objetivo é ampliar a produção prevista de 329 milhões de litros, em 2008, para 1,2 bilhão de litros em 2012. Com uma diferença importante desta vez: a Petrobras investirá pesado em tecnologia para viabilizar milhares de pequenas propriedades agrícolas, associando a agroenergia à redução da pobreza no campo. O guarda-chuva da estatal, qüinquagésima primeira empresa do mundo na lista das 2 mil maiores da Forbes, faz em ponto pequeno aquilo que um plano de desenvolvimento deveria promover em todo o espectro da agroenergia: organiza o mercado, sinaliza um compromisso duradouro com pequenos produtores cooperativados, estabiliza a oferta e  atende a sociedade.

No ano passado a Petrobras adquiriu 100% dos 70 milhões de litros de biodiesel ofertados em leilões – dos quais só participam projetos com Selo Social. Deve comprar mais 600 milhões de litros para entrega entre junho e dezembro deste ano. Não é preciso óculos de Pangloss para enxergar aí as condições potenciais de uma presença importante da agricultura familiar na matriz energética brasileira do século 21. Como se fossem dois mundos, e não apenas dois combustíveis, a lição que o biodiesel oferece ao futuro da agroenergia brasileira é clara: é indispensável a mão visível do planejamento público para adicionar à lógica de mercado a amplitude de interesses que transforma uma oportunidade histórica num verdadeiro projeto de desenvolvimento.

José Graziano da Silva é representante  Regional da FAO para América Latina e Caribe e professor titular licenciado do Instituto de Economia da Unicamp. Foi assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2004- 2005) e ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (2003-2004)