Internacional

Gustavo Codas traça o cenário em que devem ocorrer as eleições paraguaias

Paraguai se aproxima de um novo processo eleitoral em conjuntura inédita. Pela primeira vez em seis décadas, o domínio do Partido Colorado está ameaçado. As eleições serão somente em abril de 2008 e muita coisa ainda está indefinida, mas a grande novidade é o surgimento de uma candidatura popular e progressista com reais chances de vitória. Um ex-bispo católico, ligado à Teologia da Libertação, é candidato à Presidência e um dos favoritos segundo as pesquisas de opinião. Não é garantido que ganhe, mas o que parece certo é que o país não voltará a ser o mesmo das últimas décadas e suas relações com o Brasil se alterarão profundamente.

O final de uma sangrenta guerra civil, em 1947, foi o início de um ciclo de dominação política pelo Partido Colorado (cuja denominação oficial é Associação Nacional Republicana, ANR). As principais disputas de lá para cá aconteceram entre facções desse partido. Em 1954 um golpe pôs no poder o general Alfredo Stroessner, que consolidou sua ditadura colocando o país na esfera de hegemonia dos Estados Unidos e do Brasil (em substituição à Inglaterra e à Argentina), partidarizando as Forças Armadas − com a expulsão de todos os não-colorados − e expurgando do partido todos os que se opunham à dominação militar na cúpula partidária. Foram 35 anos de sucessivas oleadas repressivas contra dissidentes e opositores.

O país, que vivia uma prolongada estagnação econômica nos anos 50 e 60, teve um surto de crescimento na década seguinte, alavancado pela construção da hidrelétrica de Itaipu (com o Brasil) e posteriormente a de Yacyretá (com a Argentina). Itaipu, em particular, foi fundamental para consolidar a ditadura militar. O tratado que lhe deu origem foi assinado com o governo Médici. Em sua construção, foi tal o nível de corrupção dos dois lados da fronteira que fez surgir uma nova classe burguesa no Paraguai, ligada diretamente a negócios ilícitos − a esquerda paraguaia à época denominou-a “burguesia fraudulenta”.

Apesar de a fama ter ficado apenas com o Paraguai, a maior parte dos negócios ilegais − contrabando, narcotráfico, tráfico de armas, pirataria e falsificação de produtos etc. − dessa nova burguesia esteve subordinada a grupos econômicos brasileiros e sua atuação no mercado do Brasil.

Em 2 e 3 de fevereiro de 1989 generais colorados derrubaram o ditador, que se exilou no Brasil, onde morreu recentemente, velho e doente. O general colorado Andrés Rodríguez (o segundo de Stroessner e cuja filha esteve casada com o filho dele), líder do golpe, foi eleito o primeiro presidente na fase de democratização.

O golpe de Rodríguez interrompeu o ascenso das mobilizações populares contra a ditadura stronista, que arrancou em meados dessa década. Ao longo dos anos 90, as mobilizações voltaram primeiro na forma de intensas lutas sociais, sindicais, para em seguida assumir o protagonismo dos movimentos as organizações camponesas em sua luta por terras, preços agrícolas e contra o avanço do agronegócio latifundiário (fundamentalmente brasileiro e de plantações de soja). A partir de então, são freqüentes os bloqueios de estradas e as marchas camponesas, assim como cada vez mais intensa a militarização da repressão governamental a essas lutas.

Nos últimos anos as disputas internas ao coloradismo cresceram, envolvendo uma tentativa de golpe militar em 1996 (do general colorado Oviedo, o terceiro na hierarquia na ditadura stronista e um dos operadores do golpe de 1989), o assassinato do vice-presidente L.M. Argaña (anti-oviedista) e a derrubada do presidente R. Cubas Grau (oviedista) em 1999. O partido sofreu desgastes, mas a cada nova eleição sempre conseguiu emplacar seu candidato. Como não há segundo turno, a vitória pode ser obtida por maioria simples. O atual presidente colorado, Nicanor Duarte, foi eleito em 2003 com somente 37% dos votos. Aritmeticamente falando, uma oposição unificada ganharia fácil a eleição.

É nesse contexto que surge a figura do bispo católico Fernando Lugo, que trabalhou por muitos anos com os movimentos camponeses no norte do país, região dos maiores conflitos agrários. No começo de 2006, o presidente da República, com o consentimento do Judiciário, preparava-se para violar a Constituição e se candidatar a presidente por seu partido. Frente a esse fato, Lugo convocou todos os setores políticos e sociais a uma manifestação de repúdio à violação da Constituição. Reuniu no dia 29 de março de 2006 cerca de 40 mil pessoas – possivelmente a maior manifestação política da história recente do país.

Com o êxito da mobilização organizou uma Concertação Nacional, com todos os partidos dispostos a se unir para retirar nas próximas eleições os colorados do poder. Paralelamente, incentivou a constituição do Bloco Social e Popular, uma ampla coalizão de movimentos sociais e partidos de esquerda. Ainda convocou a constituição do Movimento Popular Tekojoja. As pesquisas de opinião davam-lhe o primeiro lugar nas preferências eleitorais, seria o candidato natural de uma amplíssima frente de partidos e movimentos, desde setores de centro-direita anticolorados até a extrema esquerda.

Porém, esse caminho está cheio de obstáculos. Primeiro, o papa Ratzinger não aceitou sua renúncia e a Constituição proíbe qualquer detentor de cargo religioso de se candidatar a qualquer eleição. Os juristas, no entanto, dizem que o que deve prevalecer é o direito que a Constituição concede ao cidadão, e não as obrigações que queira impor o Direito Canônico ou um Estado estrangeiro (o Vaticano).
Porém, o Partido Colorado, que controla o Judiciário, afirma que vai impugná-lo.

Por outro lado, tanto o governo colorado como a tradicional autofagia da oposição trabalharam para desfazer a ampla frente que Lugo tinha formado. O presidente Nicanor se moveu para liberar o general Oviedo, que estava preso por conta de vários processos judiciais. Oviedo, preso, era aliado de Lugo por meio de seu partido União Nacional de Cidadãos Éticos (Unace), uma dissidência do Partido Colorado) que integrava a Concertação. Oviedo, livre, disputa parte do eleitorado de Lugo. Com a expectativa de ter Oviedo como candidato, o Unace rompeu com a Concertação. O Partido Pátria Querida, do ex-banqueiro ligado a correntes cristãs conservadoras Pedro Fadul, também rompeu a unidade com Lugo e lançou sua candidatura em separado.

Se esse cenário se consolidar significará uma disputa entre pelo menos quatro candidaturas com peso eleitoral. É nesse rio revolto que o Partido Colorado aposta para ganhar, mesmo que em franca decadência, uma vez mais o governo. Mas tudo indica que pela primeira vez, desde a democratização, os setores populares e de esquerda terão uma expressão política à altura das suas mobilizações e lutas sociais. E que pela primeira vez em décadas surgirá um interlocutor político de peso – não se sabe ainda se como presidente –, que não é um militar corrupto e/ou membro da burguesia fraudulenta paraguaia com o qual a diplomacia brasileira vai ter de negociar.

Gustavo Codas é jornalista e economista paraguaio residente no Brasil