Cultura

A imprensa fala em renascimento. Quem é do samba diz que ele nunca morreu. Entre antigos e novos compositores e cantoras, o que se pode dizer é que há uma onda sonora crescendo e mostrando que o estilo musical está cada dia mais vivo

Samba, agoniza mas não morre, alguém sempre te socorre antes do suspiro derradeiro

(Nelson Sargento)

Tem-se falado muito em retomada do samba. A tese virou refrão nos cadernos culturais da mídia e, ainda que seja um refrão meio desafinado, de vozes desencontradas, em que o chamado samba “de classe média” se mistura ao “de raiz”, ganhou corpo irrefutável, de tanto ser entoado.

Os indícios para tal tese não faltam: vão desde o sucesso do musical Sassaricando, com vetustas e  divertidas marchinhas de carnaval, até a inauguração da Casa do Samba em Santo Amaro, na Bahia, passando pelo recente disco da boa cantora “best-seller” Maria Rita, todo feito de sambas. Mais conspicuamente, também estão à sombra dos arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, onde multidões de jovens se reúnem sobre as pedras da rua, nos pequenos bares e casas noturnas para ver esse tal samba de perto e vivenciar, com sorte, um pouco do espírito que animava Noel Rosa e Wilson Batista.

É principalmente do Rio que nos chegam as novas vozes de cantoras iluminadas pela cadência divina do samba, algumas excelentes, como Teresa Cristina, já uma quase unanimidade, cujo novo CD, Delicada, deve seguir o sucesso dos anteriores; ou a jovem Roberta Sá, que arrebatou corações e mentes com seu segundo disco, Que Belo Estranho Dia pra Ter Alegria; ou ainda a corajosa Ana Costa, que criou um selo próprio, Zambo Discos, para lançar sambistas de última hora, mas de primeira, como ela mesma e
Mariana Baltar.

Mas deixemos o lar de Sinhô, Ismael Silva e Almirante um pouco de lado. Pois uma tese, para ser generalizada, precisa ser “provada” nos lugares em que ela é menos provável ou menos evidente.

Lugares, por exemplo, como o “túmulo do samba”, apelido que marcou São Paulo, dado com uma mistura de sarcasmo e afeto por Vinicius (possivelmente num dia de ressaca). Surpreendentemente, é na “cidade da garoa” que a resistência às formas mais comerciais e “vulgares” da arte de Cartola e Candeia se apresenta com mais força.

A própria Beth Carvalho, madrinha de tantos novos sambistas (assim como Zeca Pagodinho é padrinho), declarou recentemente que São Mateus, na zona leste de São Paulo, é um dos maiores redutos do samba no Brasil, comparando-o a Cacique de Ramos. Banhado no caldo de mocotó do Buteco do Timaia, o samba de São Mateus gerou um grupo respeitado, O Quinteto em Branco e Preto, e um CD lançado recentemente com o melhor da roda, chamado Berço de São Mateus, com participações de Beth, Almir Guineto e Luizinho 7 Cordas.

A geografia do samba paulistano, com regiões de alto relevo, como o Bar do Cidão em Pinheiros, o bar do Alemão no Tatuapé, a quadra da Vai Vai no Bixiga, o CEM (Clube Etílico Musical) na Vila Madalena, tem outro ponto importante, onde, se “as rosas não falam”, falam alto os movimentos de “cunho educativo, com muita troca  de informação sobre a história do samba e da identidade negra”, como lembra a cantora paulistana Fabiana Cozza. É a Rua do Samba, um enclave entre as linhas singelas do Hotel Piratininga e a arquitetura antiga e renovada da Estação Júlio Prestes e do Centro de Estudos Musicais Tom Jobim, no Largo General Osório, lugar que já foi mais conhecido como Cracolândia.

Todo último sábado do mês se encontram nesse triângulo de asfalto, das 14 às 20 horas, cerca de 3 mil pessoas para ouvir, entre tantos outros, o pessoal da Comunidade Samba da Laje (Vila Santa Catarina), do Samba da Vela (Santo Amaro), do Projeto Nosso Samba (Osasco), do Pagode do Cafofo (Jardim Marília), que se revezam a cada mês, nas quase 60 edições do movimento. Quem organiza é a ONG Unegro (União de Negros pela Igualdade) e o Projeto Cultural Samba Autêntico.

Não basta ter inspiração. Não basta fazer uma linda canção. Pra cantar samba, se precisa muito mais (Candeia)

Tadeu Augusto Mateus, o T. Kaçula, é “o cara” que coordena a pavimentação da Rua do Samba Paulista. “Não é um evento, não é uma balada”, faz questão de enfatizar, “mas uma ação cultural e política de preservação da memória do samba, do seu conteúdo histórico, da sua riqueza melódica, das suas mensagens.” Cantor, compositor e pesquisador da história do samba, ele está produzindo uma série de doze CDs intitulada Memória do Samba Paulista, a ser lançada junto com um livro que está  escrevendo. Ele conta que, no começo, há cinco anos, atravessava seu carro na rua e abria espaço na marra para colocar a roda de samba, a despeito de multas e da ação da polícia. O esforço valeu a pena e hoje tem o aval da prefeitura, que oferece som, luz e banheiros químicos.

Kaçula não acredita que esteja havendo um verdadeiro renascimento do samba. Para ele, “o samba  nunca deixou de ser ouvido e tocado. O que aconteceu foi uma conscientização maior da importância de valorizar o samba autêntico como resistência à comercialização do pagode nos anos 90”, e ajunta, para não deixar margem a dúvidas: “Pagode não é gênero musical, as pessoas confundem”. O músico Ildo Silva, figura constante em apresentações elogiadas na noite paulistana, veio ver a Rua do Samba pela primeira vez. Acompanha as evoluções da animada roda instalada no asfalto com seu cavaquinho  pendurado no ombro e um largo sorriso no rosto. Mais flexível e otimista, ele nota que “hoje tá muito melhor para os sambistas, tem muito mais espaço e trabalho”. Credita o tal renascimento ao desgaste de outros gêneros, como o axé, o pagode e até o rock.

Dona de uma voz que impressiona pelo alcance e melodia, e uma graciosidade majestosa que lhe rendeu gritos de “diva!” por parte de fãs desinibidos, a paulistana Fabiana Cozza, revezando-se com Juliana Amaral e outras cantoras e músicos, se apresenta regularmente no bar Ó do Borogodó, mais um dos bons lugares onde se toca samba pra valer na cidade. Ela não se considera “tradicionalista”, mas defende o samba que “está no sangue, que não tem mentira”. Recentemente lançou o excelente Quando o Céu Clarear, seu segundo CD, para um lotado teatro do Sesc Pinheiros, cujo público, bastante diverso, se levantou para aplaudir em vários momentos (um dos melhores contou com a presença e a voz de dona Ivone Lara). Ela acredita que essa onda “tem muito a ver com certa atenção que a mídia e a classe média têm dado a algumas cantoras. O samba sempre esteve aí. Não dá pra falar em moda. Eu vejo samba sendo produzido desde pequena”.

O mistério do “novo” samba

O antropólogo Hermano Vianna, autor do importante O Mistério do Samba, livro-referência para muitos estudiosos, também acha que “o samba popular nunca deixou de ser retomado”, e que esse alardeado renascimento vem de um “grupo minoritário, com repercussão na mídia” (referindo-se ao fenômeno da Lapa). Diferentemente da posição “tradicionalista” de Nei Lopes e dos “radicais” de São Paulo, Vianna, defensor das polêmicas expressões híbridas e “popularescas” do samba, alerta que “o discurso contra a vulgarização (do samba) esconde um ressentimento de uma perda de controle da realidade cultural”. E lembra que o samba, apesar de ser uma mistura de ritmos que vão da polca até o maxixe, “surgiu como um mito de pureza, como se estivesse na raiz mais profunda da nossa identidade”.

Construída ou não, é essa identidade, de “não alterar o samba tanto assim”, como pregava mestre Paulinho da Viola, que pontua e dá força a cada palavra dita na Rua do Samba, onde ao coro entusiasmado de Graças a Deus, clássico de Nelson Cavaquinho capaz de arrepiar até o mais empedernido roqueiro ou fã de música eletrônica, pode suceder uma apresentação de jongo e discursos de cunho cultural/político.

A presença algo mágica, encantatória, da Associação Cultural Quilombolas de Tamandaré, que com suas palmas e cantos ancestrais instalou na noite de 29 de setembro um clima caloroso no coração da cidade, é um bom exemplo dos esforços de preservação da memória negra do Projeto Rua do Samba Paulista. Assim como a presença dos sambistas do Projeto Nosso Samba. Vindos de Osasco, eles defendem uma ONG bem organizada, protagonista nessa história de resistência do samba em São Paulo. Basta uma olhada em seu site (www.projetonossosamba.org) para ter uma idéia da seriedade com que encaram  a questão. “São pessoas que têm o samba como estilo de vida, como parte do seu dia-a-dia”, salienta Fabiana, com orgulho.

O grupo Terreiro Grande, surgido em São Mateus de um grêmio que buscava transmitir as tradições das quadras de escolas de samba, é um caso curioso: são puristas a ponto de só tocar sambas cariocas dos anos 40 e 50, mantendo a sonoridade da época. O bar Patriota (mais conhecido como “bar do Alemão”), no Tatuapé, é o santuário pagão onde idolatram (com bom humor, claro) Cartola, Paulo da Portela e Candeia. Sem periodicidade nem divulgação, é lá que eles se encontram em domingos à tarde. Alheios à idéia de sucesso e avessos à “heresia” de Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, entre outros, colocaram no repertório do CD independente que dividem com a cantora Cristina Buarque 26 sambas de antigos compositores da Portela. Tradicionalismo de altíssima qualidade.

Toda essa turma e mais dona Ivone Lara, Fabiana Cozza e as velhas guardas da Camisa Verde e Branco, Nenê da Vila Matilde e Unidos do Peruche deverão participar da festança de aniversário de cinco anos da Rua do Samba, em novembro, que será gravada em DVD.

No tabuleiro da Bahia também tem...

A “invenção” do samba deve-se em parte aos encontros na Casa da Tia Ciata no começo do século 20, como nos conta Marcos Napolitano em seu inspirador A Síncope das Idéias. A  Casa, favorita de Pixinguinha, ficava no Rio, é certo, mas Ciata, ou Hilária Batista de Almeida, era tão baiana quanto o vatapá e o caruru. Justiça poética sendo feita, seu espírito voltou para Santo Amaro, na Bahia, onde foi inaugurada em setembro A Casa do Samba, misto de museu e espaço para apresentações musicais. Na abertura oficial, que coincidiu com o centenário de dona Canô, estiveram a matriarca, seu filho Caetano, dona Edith do Prato e autoridades como o ministro Gilberto Gil e o governador Jacques Wagner. Não à toa, um dos pontos altos da noite foram as apresentações de diversos grupos de samba de roda do Recôncavo Baiano. O gênero, ou celebração, como preferem seus praticantes, realizada espontaneamente em roda, no ritmo das palmas e do pandeiro, foi distinguida em 2005 como obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) investiu cerca de R$ 2 milhões na reforma do Solar Araújo Pinho, às margens do Rio Subaé, para abrigar A Casa do Samba. Além de promover o resgate de formas antigas do samba através de shows de grupos vindos de várias partes do país, o espaço prevê a realização de debates e seminários, como o que reuniu, no dia seguinte à inauguração, José Miguel Wisnik, Hermano Vianna, Caetano e Gil, entre outros. Este último, entusiasmado com o “encontro promissor”, lembrou que o Ministério da Cultura vem batalhando “há dois anos ou mais” para que ocorram iniciativas como essa e a da Unesco.

Daniel Benevides é assessor de imprensa da Fundação Perseu Abramo