Internacional

Para analisar o processo argentino é preciso levar em conta o estado quase caótico do país depois de uma década de políticas neoliberais

Cumpriu-se um ciclo na Argentina que, caso estejamos dispostos a respaldar o processo de mudanças aberto na América Latina, podemos considerar amplamente satisfatório.

Cristina Fernández de Kirchner, integrante conspícua do pequeno comando que orientou esse processo, foi eleita presidenta por um período de quatro anos com 45,3% dos votos, e a Frente para a Vitória, que a respaldou, obteve uma cômoda maioria em ambas as câmaras, incluindo o quorum próprio.

Outro feito bastante auspicioso foi a derrota de alguns membros pouco recomendáveis, conseqüência da liberdade de ação outorgada pelo comando kirchnerista para que competissem entre si, em alguns distritos-chave, diferentes correntes do justicialismo e alguns de seus aliados, no que se chamou de "colectoras" (listas que tinham Cristina como candidata, mas diferiam em termos de intendentes, regidores e governadores). Dessa maneira foram relegados antigos caudilhos do aparato justicialista, particularmente os chamados barones del copo urbano bonaerense e governadores como o da província de Salta, graças a uma nova geração de dirigentes kirchneristas, ligados, em muitos casos, a expressões autênticas do movimento social.

Compreender o processo político desses últimos anos na Argentina não é fácil, pois é preciso analisá-lo considerando sua complexidade e informações extremamente mal-intencionadas que circularam globalmente no grosso das mídias monopolistas, em escala planetária. Sempre que se reflete sobre a situação argentina é preciso ter em conta o estado quase caótico em que se encontrava o país depois que o presidente Dela Rúa fracassou estrondosamente, ao tentar paliativos para enfrentar a situação-limite a que se chegara com uma década de políticas neoliberais. Não só se tratava de uma crise econômica e social sem precedentes como também de falta de prumo do cenário político conforme o conhecíamos por décadas.

Dos três candidatos justicialistas que concorreram entre si em 2003, contra também um par proveniente da União Cívica Radical (UCR), um sobressaiu, o qual até então era governador da província meridional de Santa Cruz. Pouco conhecido, obteve 23% dos votos e assumiu, após a deserção do ex-presidente Menem, que não concorreu uma segunda vez diante da evidência de que não contaria com a preferência dos eleitores para chegar a um terceiro mandato.

O presidente "pingüim" não se amedrontou com seu escasso cabedal inicial e com a falta de uma estrutura de organização própria. Suas iniciativas, significativamente inesperadas, começaram a ganhar a aprovação e o respaldo de um amplo setor da população.

Inesperado
Em muito pouco tempo o novo governo enfrentou e removeu os comandos das FFAA e das forças de segurança até obter uma significativa subordinação. Reinstalou as demandas relativas aos direitos humanos e reabriu as contas pendentes, voltando a fazê-las gravitar na Justiça após a anulação das leis que as haviam congelado. Convocou e possibilitou o encontro das organizações de direitos humanos, que se alinharam, dando um firme respaldo às políticas governamentais. Removeu os juízes que dominavam a Corte e estimulou a incorporação de juristas com perfis democráticos e progressistas. Convocou um número expressivo de intelectuais que não eram ligados ao justicialismo para escalões importantes da administração. Deu provas claras de respaldo à liberdade criativa ao permitir o reconhecimento de artistas anteriormente rejeitados pelo establishment ou pela Igreja. Impôs limites à ousadia de setores reacionários da Igreja Católica, diante de gestos como o protagonizado por um bispo, segundo o qual o ministro da Saúde acabaria no fundo do mar por legitimar o debate pela descriminalização do aborto. Transformou-se em um firme paladino das liberdades públicas e da disposição de não reprimir as manifestações de rua que custaram tantas vidas no passado.

Encabeçou uma firme mudança no alinhamento internacional ao estreitar os laços com o que há de mais progressista na região, a começar pelo Brasil, e permitir um entendimento crescente com a Venezuela de Chávez, enfrentando as campanhas em prol de seu isolamento, além de insistir na consolidação do Mercosul frente à campanha pró-Alca.

Em pouco tempo encarou com muita firmeza uma renegociação digna da dívida externa, que resultou em uma economia substancial de divisas para o país. Estabeleceu um decidido respaldo a um novo modelo de reindustrialização, aproveitando ao máximo as condições do período e possibilitando um crescimento inesperado a taxas "chinesas" de cerca de 9% ao ano, durante os cinco anos de seu mandato. Reduziu quase um terço as taxas de desemprego herdadas do esplendor neoliberal, diminuindo consideravelmente os índices de pobreza. Tratou com equilíbrio o desafio do descontentamento popular, que se encontrava em seu apogeu, com atitudes de respeito pelos protestos, convocando para o diálogo e obtendo um sólido respaldo de várias organizações de piqueteros, deixando à margem a instrumentação midiática do mal-estar pelos bloqueios de ruas e caminhos e, ao mesmo tempo, demarcando os espaços de grupos oportunistas supostamente de "esquerda".

Impôs limites claros à ganância das empresas privatizadas, impedindo o aumento de tarifas e também enfrentando os embaixadores e chanceleres que as representam. Por sua vez, comprometeu-se a dar um forte incremento aos gastos com educação, assim respondendo a antigas demandas dos docentes.

Força política própria

Essa série de iniciativas nos levou a acreditar que, depois de tanto tempo, estávamos diante de um projeto que visa mudar profundamente nossa realidade. Porém, conforme ocorre também em outros países da região, essa reação comum diante da espoliação das políticas neoliberais não encontrou uma força política com ímpeto e consistência para assumir todas as implicações do desafio.

Além disso, no caso argentino, os que assumiram o governo nem sequer contavam com capacidade para gravitar no seio de seu próprio partido. Assim, os primeiros anos da Presidência de Kirchner foram marcados por esforços para derrotar poderosos rivais a cargo da estrutura do Partido Justicialista. A maior tarefa não podia ser outra senão impedir que esse vasto emaranhado pudesse ser arrastado para a oposição, situação que não era difícil de ocorrer em vista das viradas que o partido havia dado nos últimos tempos. Nas eleições parlamentares de 2005 o maior desafio era derrotar o principal caudilho partidário, Eduardo Duhalde, em seu bastião na província de Buenos Aires, tarefa amplamente desempenhada por Cristina Fernández de Kirchner ao eleger-se senadora em disputa com a mulher de Duhalde.

Nesse ínterim, diversos grupos de esquerda que pretendiam ser convocados para as equipes do governo, em nome do que se chegou a chamar de transversalidade, começaram a descobrir que careciam de arraigamento e de enquadramentos convergentes para alcançar relevância. Pouco a pouco ficou claro que tal primazia devia estar associada à gravitação que fosse alcançada no trabalho em diversas frentes.

Uma vez alcançada a primazia no justicialismo, para o comando K o passo seguinte seria convocar outras correntes históricas da cena política argentina, com sensibilidade popular, para ampliar a base de sustentação do projeto. As eleições de 2007 tinham de estar atreladas a essa tarefa.

Pingüino ou pingüins

A Constituição argentina permite a reeleição do presidente por um mandato e não havia dúvida de que Néstor Kirchner, ao candidatar-se, podia ser claramente alvo de um plebiscito no cargo. Porém, surge uma questão: por que submeter o presidente ao desgaste provável de um segundo mandato, em vez de permitir-lhe uma saída honrosa que o preservasse para o futuro, se sua mulher, Cristina, podia encarar uma segunda gestão com o mesmo grau de êxito que o marido? Mantendo a incógnita até o final para insuflar a incerteza da oposição, o comando K decidiu tomar esse rumo, associando à fórmula o governador radical da província de Mendoza, Julio Cobos, como candidato a vice. Assim, tornava-se possível somar um bom número de governadores e intendentes da UCR, que não estavam dispostos a abandonar as posições alcançadas por trás das mesquinhas pretensões da direção de seu partido, ansiosa por estabelecer algum tipo de ligação nas fileiras da oposição a fim de manter espaços no Parlamento. Outro tanto se fez com o outro antigo partido da cena política argentina, o Socialista, que ficou dividido entre os que apoiaram Cristina, os que seguiram Elisa Carrió, presumindo que obteriam algum proveito e acesso ao Parlamento, e aqueles pró-Hermes Binner, governador eleito da província de Santa Fé, que se mantiveram distantes dessa última postura, impulsionada pela diretriz partidária, embora se tenha como certo que no futuro se encontrarão mais próximos do projeto encarnado pelos Kirchner.

A campanha eleitoral mostrou o que em boa medida já se sabia. Uma Cristina sólida, segura, eloqüente, que, com estilo próprio, não ficava a dever em termos dos recursos carismáticos ao notável presidente. Por outro lado, apesar de alguns lugares-comuns orquestrados pela oposição, era inquestionável que a futura presidenta se candidatava por direito próprio, por mais que fosse óbvio que ambos continuariam integrando o comando K, conforme haviam feito até então.

Oposição invertebrada

O declínio de Menem e a derrota de Duhalde deixaram a oposição sem o fator peronista que poderia granjear-lhe alguma consistência. Poucos meses antes, as eleições para chefe de governo na capital haviam dado projeção a Mauricio Macri, integrante de uma família de prósperos empresários. Mauricio, como é chamado nas mídias claramente alinhadas com a oposição, como é comum nesses casos, alcançou cômodos 60% no segundo turno, tornando-se bem cotado para 2011. A eleição presidencial, porém, mostrou-o carente de iniciativa e sem capacidade para articular coligações no resto do país, tornando mais patentes as particularidades do distrito da capital federal, tradicionalmente resistente às opções ligadas ao peronismo. Com pretensões de disputar a liderança da oposição, Elisa Carrió ficou em segundo lugar em nível nacional, com 23%, e obteve dessa vez a maioria na cidade de Buenos Aires. As posturas dessa dirigente proveniente da UCR, que inicialmente pretendiam ser progressistas, foram guinando visivelmente para a direita em uma trajetória surpreendente, o que levou um bom número de quadros que a apoiavam a mudar de lado, além do que alguns de seus apoiadores restantes ameaçam armar uma bancada à parte no Parlamento.

A opção alentada pela UCR, com a candidatura do ex-ministro da Economia Roberto Lavagna, alcançou apenas 17% dos votos e é muito difícil que possa gravitar na futura reconfiguração da oposição. O peronismo dissidente, com menos de 8%, pretenderá aliar-se a qualquer convergência opositora futura, já que não se caracteriza pela fidelidade a princípios. Isso inclui Eduardo Duhalde, que, já se sabe, entrará na disputa pela direção do PJ. Seja qual for o caso, por ora o que se entrevê no horizonte da oposição são mais desavenças do que harmonia.

Merecem um parágrafo à parte os pequenos grupos trotskistas, sempre presentes em todos os conflitos para impedir uma solução negociada. Os cinco ou seis "partidos" que os abrigam, nas três opções que apresentaram, obtiveram magro 0,5% cada um, evidenciando a enorme distância que os separa do cenário político propriamente dito. Pouco melhor foi o desempenho do "proyecto sur',' com o cineasta Pino Solavas e o deputado Claudio Lozano, que alcançaram 1,6% em nível nacional, sendo que o último pôde manter seu prestígio com 7,5% na capital. Com isso ficou claro que a metade de seus eleitores optou por votar em Cristina Fernández para a Presidência. Sem dúvida, hoje é possível afirmar que não resta ninguém à esquerda dos Kirchner.

Mídia x força própria

A campanha eleitoral reafirmou que o papel relevante de oposição, assim como ocorre no restante da região, é encarnado pelos meios de comunicação. Eles foram tenazes na condução da agenda pública. Seus temas recorrentes foram o da "segurança", como se o aumento da criminalidade estivesse desligado da ruína social provocada pelo neoliberalismo; a inflação, aumentada e estimulada pela própria mídia, aproveitando algumas imprecisões nas medições oficiais; a corrupção, que não tem relação alguma com os padrões usuais em épocas passadas; e, por fim, a suposta falta de "garantias republicanas" por parte do oficialismo.

Campanhas desse tipo terão de ser minimizadas no futuro e continuarão sendo o insumo da histeria prevalecente nos bairros mais conformistas das principais cidades. Para a imensa maioria, acostumada com campanhas de descrédito desde os tempos do banimento do peronismo, essas retóricas são insuficientes para gerar desconfiança, mas não se pode subestimá-las. Assim, uma das preocupações centrais do futuro ex-presidente será constituir uma força de gravitação própria que dê respostas permanentes a essas campanhas e, ao mesmo tempo, nutra com novos quadros jovens a administração do projeto.

Esse é o propósito declarado por Néstor Kirchner: fomentar uma força política própria que possa deixar para trás os arranjos com o que resta da velha política. Suas energias e habilidades estarão voltadas nessa direção a partir do dia em que deixar o cargo.

A política de Cristina Fernández de Kirchner será a continuidade, conforme se notou quando da divulgação de sua equipe de ministros. À Concertación política iniciada pretende-se somar uma de cunho social, com os empresários da indústria e os sindicatos como principais protagonistas.

Em todo caso, é certo que, além da continuidade em certas políticas, há um ciclo que foi encerrado: o da tal "saída do inferno", como dizia Néstor Kirchner. Hoje deve construir-se um novo relato que, atendendo às diferentes tradições, busque reafirmar idéias, valores e princípios que possibilitem a passagem pelo "purgatório", mesmo sabendo que a direita haverá de tentar cerrar fileiras para que o "céu" continue sendo propriedade dos poderosos.

(Tradução de Thais Costa)

Mario Toer é professor titular de Política Latino-Americana na Universidade de Buenos Aires. Autor de De Moctezuma a Chávez. Repensando Ia Historia de América Latina, Ediciones Cooperativas, Buenos Aires, 2007.