Sociedade

Entrevista com Nilcéa Freire, ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

Que balanço pode ser feito do primeiro ano da Lei Maria da Penha?
A Lei Maria da Penha pegou. 0 tema violência contra a mulher passou a ser amplamente debatido em seminários, palestras, virou assunto recorrente nos meios de comunicação, em conversas de botequins, inspirou sambas e cordéis. A Lei Maria da Penha colocou a violência contra a mulher na agenda social.

Em apenas um ano foram feitas mais prisões em flagrante de agressores do que nos últimos vinte anos. Em todo o país, as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher abriram mais de 30 mil inquéritos policiais para investigar as agressões contra as mulheres. Desse total, 10 mil viraram processos criminais e agora serão julgados pelos novos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Isso resultou na prisão de 900 agressores e já beneficiou mais de 5 mil mulheres em situação de risco.

Em busca de informação sobre seus direitos previstos na lei, mais de 10 mil mulheres já entraram em contato com a Central de Atendimento à Mulher, no ser­viço de utilidade pública 180, criado pelo governo federal para prestar atendimento às mulheres. Por tudo isso, podemos dizer que a lei chegou para ficar e sua correta aplicação pelas autoridades policiais e judiciárias deve ser uma meta e um compromisso inegociável.

Quais são os números da violência doméstica? Há como distinguir dados da violência doméstica daqueles rela­cionados à violência em geral?
Os dados mostram bem a dimensão do fenômeno social da violência contra a mulher. Mas as estatísticas baseadas em ocorrências são precárias em todo o mundo. Até porque a tipificação da violência doméstica como um crime só aconteceu com a Lei Maria da Penha. Agora será possível construir indicadores mais confiáveis a partir dos Inquéritos instaurados pelas delegacias de todo o país, uma determinação da lei.

Não há como distinguir as estatísticas relativas à violência doméstica das da vio­lência em geral. Mas é certo que a violência doméstica e familiar contra a mulher alimen­ta a violência na sociedade, e vice-versa. A construção da paz começa em casa.

Como a senhora vê as reações de ma­gistrados que dizem que a lei é incons­titucional?

Considero esse tipo de reação um reflexo da cultura machista e patriarcal ainda lamentavelmente vigente na socie­dade brasileira. Inconstitucional não é a Lei Maria da Penha, mas a ausência dela. A legislação é um importante instrumento de concretização da igualdade material entre homens e mulheres. Ao contrário do argumentado por esses magistrados, a lei confere efetividade ao artigo 226 da Constituição Federal, que determina, em seu oitavo parágrafo, que é dever do Esta­do criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.

Podemos, inclusive, citar outros artigos da Constituição, como o primeiro, inciso 4°, que diz que um dos objetivos funda­mentais do Estado é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A Lei Maria da Penha, portanto, veio sanar a omissão do Estado na questão da violência familiar, além de responder às recomendações de convenções interna­cionais, como a Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil, em 1995, na qual o Estado brasileiro se comprometeu a criar leis e adotar medidas para punir e erradicar a violência contra a mulher. Tem também a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da ONU, que institui que os Estados-Parte deverão adotar medidas de discriminação positiva em favor das mulheres enquanto não existir o pleno usufruto da igualdade.

Quais serão os investimentos do go­verno?

O governo federal investirá cerca de R$ 1 bilhão até 2011 em ações para enfrentar a violência contra a mulher. Lançamos, em agosto de 2007, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, uma iniciativa que envolve a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, diversos ministérios e empresas públicas e visa um conjunto de ações articuladas para prevenir e enfrentar a violência.

Várias dessas ações estão diretamente relacionadas à implementação da Lei Maria da Penha, como a reforma e a construção de delegacias, centros de referência, casas abrigo, entre outros equipamentos que fazem parte da Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. Os re­cursos também serão aplicados na criação' de mais Juizados de Violência Doméstica e Familiar, no treinamento de mais de 50 mil policiais e 120 profissionais de educação, entre outros.

Como alterar as condições estruturais da desigualdade de gênero e construir a autonomia econômica das mulheres?

Nessa direção, a SPM vem implemen­tando desde 2005 o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, cujo primeiro capítulo trata justamente dessa questão. Poderíamos falar de muitas ações desse capítulo, mas vamos citar apenas três que consideramos bastante significativas e nas quais a SPM é parceira. Uma delas é o Pronaf Mulher, do Ministério do Desen­volvimento Agrário, que oferece acesso ao crédito às rurais. Outra, também em parceria com o MDA, é o Programa Nacional de Documentação das Trabalhadoras Rurais, que leva cidadania às mulheres do campo. Com o Ministério do Trabalho temos o Programa Trabalho Doméstico Cidadão, que visa melhorar as condições de vida das trabalhadoras domésticas.

No âmbito da SPM, destaco o Pró-Eqüi­dade de Gênero, que promove a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no ambiente de trabalho. É uma parceria do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher e da Organização Internacional do Trabalho.

Como acabar com a impunidade?

Os números mostram que os procedi­mentos começaram a mudar a partir da nova legislação. Agora temos de trabalhar no sentido de fiscalizar a aplicação da lei em todo o território nacional. Essa deve ser uma responsabilidade não só do governo federal, mas de toda a sociedade.

A SPM criou o Observatório de Moni­toramento da Lei Maria da Penha e, nos próximos quatro anos, investirá em sua consolidação e expansão. Acredito que a expansão do número de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a consolidação da Rede de Atendimento à Mulher, a capacitação de profissionais e a construção de dados estatísticos, entre outras ações, serão de grande importância para a redução dos alarmantes indicadores existentes.

Saiba mais: Quem é Maria da Penha Maia

A biofarmacêutica Maria da Penha Maia lutou durante 20 anos para ver seu agressor condenado. Ela virou símbolo contra a violência doméstica. Em 1983, seu marido, o professor universitário Marco An­tonio Herredia, tentou matá-la duas vezes. Na primeira, deu um tiro e ela ficou paraplégica e, na segunda, tentou eletrocutá-la.

Oito anos depois, Herredia foi condenado a oito anos de prisão, mas usou de recursos jurídicos para protelar o cumprimento da pena. O caso chegou à Comissão Interame­ricana dos Direitos Humanos da Or­ganização dos Estados Americanos (OEA), que acatou, pela primeira vez, a denúncia de um crime de violência doméstica. Herredia foi preso em 28 de outubro de 2002 e cumpriu dois anos de prisão. Hoje está em liberdade.

Maria da Penha começou a atuar em movimentos sociais contra a violência e a impunidade. "Eu acho que a sociedade estava aguardando essa lei. A mulher não tem mais vergonha (de denunciar). Ela não tinha condição de denunciar e ser atendida na preservação da sua vida", lembra. Maria da Penha recomen­da que a mulher denuncie a partir da primeira agressão. Não adianta conviver. Porque a cada dia essa agressão vai aumentar e terminarem assassinato". Fonte: Radiobrás/Agência Brasil
Fernanda Estima é editora-assistente de Teoria e Debate.