Cultura

Tropa de Elite, de José Padilha, é o filme nacional mais comentado do ano

Tropa de Elite é um filme bom. É bom esteticamente, reforça essa ótima fase audível do cinema nacional e tem um roteiro muito bem elaborado.

Acima de tudo, Tropa de Elite é bom porque faz pensar. Ainda que vagarosamente, ainda que tenhamos de esperar que passe a fase de euforia e a música do Bope pare de tocar nas baladas, o filme faz e vai fazer pensar. Não sei se há mérito maior em qualquer obra de arte.

As eventuais dissonâncias entre o que o diretor quis mostrar, o que mostrou e o que vimos, entre os que perceberam de cara a crítica estampada na tela e os que apenas se divertiram e encontraram um novo herói são um gap que o tempo vai aproximar.

Vou e volto pensando no filme e, obviamente sem nenhuma pretensão filosófica, me lembro insistentemente de A Piada Mortal, revista do Batman com um já clássico roteiro de Alan Moore.

Entre outras tramas, a história explica as origens do "herói" e do seu arquiinimigo Coringa. No fundo, as opções extremas dos dois se dão por motivos parecidos - resumidamente, uma grande perda.

Histórias de vida relativamente semelhantes levaram as personagens a ocupar o papel de mocinho ou bandido, mas, no fundo, a loucura dos dois é a mesma. A diferença é que Batman está do lado da lei e, por isso, vira nosso herói.

Como nos quadrinhos, no filme nos vemos diante de aparentes "mocinhos" e "bandidos", alçados a essa condição por conta do sistema - que faz aqui o papel das perdas sofridas pelas personagens da HQ.

E, como lá, aqui somos chamados a escolher um lado, e a platéia sai da sala encantada com o capitão Nascimento - personificação atual do mocinho - e com o Bope, cujo emblema agora estampa até lingeries vendidas em camelôs do Rio de Janeiro.

Não percebemos, porém, que o sistema que originou "bandidos" e "mocinhos" também nos vitima: não nos ensina a pensar, aniquila nossa criatividade, nos faz repetidores de meias verdades e nos leva a crer que temos de escolher um lado, quando não temos de escolher lado algum. No filme não temos de escolher lado nenhum por uma razão muito simples: não há, de fato, diferença entre o "bandido" e o "mocinho" Ambos agem à margem da lei; não há a diferença essencial que nos permitiu, no caso da obra de Alan Moore, escolher um lado.

A opção entre se pautar pela legalidade, que é lenta, ineficiente e muitas vezes gera impunidade, ou pela atuação imediata, que se traduz em "fazer justiça pelas próprias mãos',' desconsiderando o fundamento da própria existência do Estado, é legítima. A descrença é legítima, mas, como diz o comissário Gordon, "precisamos mostrar a eles que do nosso jeito funciona".

Sem idealismos, a única opção que se apresenta no filme é a repactuação, ou não, do Estado de Direito. Sendo drástica: a escolha entre civilização e barbárie.

Não há diferença de métodos entre o traficante do filme e o policial que tortura. Não há diferença, na vida real, entre as mães que perdem filhos assassinados pelo tráfico ou pela polícia. A ilegalidade pauta ambas as ações, no caso da polícia com a agravante de que ela é a instituição criada pelo Estado Moderno para defender os direitos humanos.

Quando a polícia se torna violadora, age ao avesso. Ao avesso do que deveria, ao avesso do que poderia, ao avesso do que se pretende.

Entre 2003 e setembro de 2007, as polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo mataram mais de 7 mil pessoas em confronto. No Rio de Janeiro, esses confrontos resultaram na morte de 5.293 pessoas, das quais 179 eram policiais.

A Tropa de Elite do Rio não é mais incorruptível - se é que já foi mesmo. Mata cinco pessoas para cada seis prisões que faz. Age, como explica o filme, baseada na lógica da guerra.

Mas a lógica da guerra não se aplica ao Rio. Não se aplica aos conflitos urbanos ligados à segurança interna, à violência desorganizada e nem mesmo ao crime organizado. A lógica da guerra tolera a perda de civis como conseqüência inevitável do combate. A lógica da guerra se ergue na noção da batalha, e não na de resolução do conflito. Tem como meta vencer o inimigo, e não equacionar problemas.

Como pondera João Paulo Charleuaux, da Cruz Vermelha, "quando você diz que existe uma guerra (...) há algumas implicações. A primeira delas é que você está contribuindo para criar uma sensação generalizada de permissividade e certos métodos e meios usados pela força armada. Cria-se a noção de território inimigo, de que o espaço onde o outro está não faz parte do seu território e deve ser atacado ou ocupado. O outro passa a ser visto como inimigo, alguém que deve ser eliminado. Sim, pois no conflito armado não é crime um combatente matar outro, desde que dentro do conflito. O direito à vida é relativo num conflito armado. No caso de uma situação de violência urbana já não é assim. Para a polícia, matar não é uma estratégia de ação, mas um último recurso, ao qual se recorre em situações específicas".

Não estamos em guerra. Não existem inimigos aqui. Existem transgressores, que ao agir fora da lei se sujeitam a ser punidos de acordo com ela. Nos termos dela. Ir além transforma executor e executado em iguais, e o Estado deixa de exercer o uso legítimo da força para se equiparar ao transgressor.

Ter a clareza de que a distinção está na adoção da lei como referência comum é a única coisa que nos permitirá salvar o coração do Matias e ter motivos reais para nos orgulharmos das nossas forças policiais.

Isabel Figueiredo é advogada, mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP e diretora Nacional do Programa de Apoio Institucional a Ouvidorias de Polícia e Policiamento Comunitário da Secretaria Especial de Direitos Humanos.