Nacional

Escrito no cárcere em 1973, Em câmara lenta motivou nova prisão de Tapajós. Em sua defesa, Antonio Candido escreveu brilhante parecer

Em 1977, pouco se podia falar no Brasil sobre a luta armada que grupos de esquerda haviam travado contra o regime militar. O tema era proibido pelo governo e, ao mesmo tempo, recente e traumático para as esquerdas, que na ocasião ainda não tinham feito um balanço público da experiência e da derrota. Esse silêncio foi rompido por Renato Tapajós ao lançar, naquele mesmo ano, o romance Em câmara lenta. Era a primeira obra nacional a trazer uma reflexão crítica sobre as estratégias da guerrilha e a denunciar o emprego brutal da tortura pela repressão.

Tapajós participara da Ala Vermelha - agrupamento urbano de influência maoísta que empreendeu ações armadas - e por isso cumpriu pena de 1969 a 1974. No cárcere, mais precisamente em 1973 na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, escreveu os originais em folhas de papel de seda, com letras miúdas. Dobradas até se tornarem minúsculas, as folhas eram envolvidas com durex para ficar impermeáveis. Quando os pais de Tapajós o visitavam na prisão, levavam ao sair a pequena cápsula sob a língua e, assim, sem despertar suspeitas na vigilância, transportavam os originais do futuro livro.

Em um minucioso trabalho, eles foram datilografando todos os trechos que recebiam, de modo que, ao ser liberado da prisão em 1974, Tapajós encontrou o texto completo de sua narrativa.

Publicado pela editora Alfa-Omega, de Fernando Mangarielo, o romance acabou se destacando entre os setores mais próximos à oposição ao regime, o que levou a um fato inusitado: em julho de 1977 Tapajós foi preso em São Paulo, tendo ficado dez dias incomunicável, sob a acusação de que Em câmara lenta era um "instrumento de guerra revolucionária" Isso apesar de o livro não ter sido proibido e não ter, do ponto de vista legal, nenhum empecilho à sua circulação. Somente 15 dias depois da prisão de Tapajós, a obra foi censurada e sua venda proibida.

Para o processo então imputado pela Justiça Militar contra Renato Tapajós e Fernando Mangarielo, o advogado Aldo Lins e Silva solicitou um parecer crítico1 ao professor Antonio Candido sobre o romance. É este parecer, até hoje inédito2, que Teoria e Debate publica a seguir. O documento fala por si mesmo. Vale ressaltar, no entanto, o rigor e a lucidez desse crítico literário a quem já foram atribuídos tantos elogios. Mais uma vez, é possível compreender o porquê.

Eloísa Aragão Maués é editora de livros e mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo

Leia abaixo a defesa escrita por Antonio Candido:

Parecer

Tendo sido indicado como Perito no Processo movido contra o escritor Renato Tapajós, por causa da publicação de seu romance "Em câmara lenta", penso que os pontos importantes, no caso, são os seguintes:

1. este livro é subversivo?

2. a sua leitura induz a uma atitude subversiva, ou à prática de atos subversivos?

Antecipo que a resposta é – "Não”, – pelos motivos abaixo discriminados.

1. "Em câmara lenta" não é um livro subversivo, devido a uma série de razões. Em primeiro lugar, porque é um romance e, portanto, escrito num tipo de discurso marcado pela predominância da "função poética" (Jakobson), isto é, a que se caracteriza pelo fato da palavra ter a si mesma como finalidade principal; pelo fato da palavra ser trabalhada em função das suas propriedades específicas.

No discurso literário existem, é claro, outras funções da linguagem, como a "referencial", cuja finalidade é a representação objetiva do mundo interior e exterior. Mas os diversos tipos de discurso se caracterizam pela predominância, não a exclusividade de funções. Na linguagem quotidiana, no discurso administrativo ou científico, por exemplo, predomina a função referencial, que visa a informar, a exprimir diretamente o que percebemos ou inferimos da realidade. Na linguagem literária, predomina a função poética, que visa a realçar as qualidades estéticas da palavra. Não se pode, portanto, tomar como informativo, como documento, um discurso de tipo literário, que visa a criar um universo específico, diferente da realidade, embora a tenha como matéria-prima e procure tomar o seu lugar. Um erro vulgar consiste em pensar que a força da literatura vem da realidade que descreve; quando, de fato, esta força provém do teor estético da linguagem usada. O sentimento real, por exemplo, não basta para fazer literatura, porque, ao contrário do que tendemos a pensar, o que nos toca não é a autenticidade objetiva disso ou daquilo, mas a eficiência estética do discurso, que faz parecer autêntico isso ou aquilo (mesmo que não o seja).

A estas considerações é preciso juntar outra, de grande importância: a que se refere ao caráter de ambigüidade do discurso literário. Neste, as coisas, os sentimentos, as idéias, nunca têm um único significado, mas vários; e isto faz a sua força. Daí a necessidade de "interpretação", que é o modo de ler literatura, sendo uma tentativa de estabelecer quais são os sentidos possíveis, de cujo concurso se forma o, ou se formam os, significados dominantes.

Pelo exposto, vemos que é arriscado tomar como documento um romance, que foi construído deliberadamente como obra literária, portanto artificial, com predomínio da função poética e alta taxa de ambigüidade.

"Madame Bovary", de Flaubert, é pró ou contra o adultério? "À busca do tempo perdido", de Proust, é uma apologia ou uma condenação do homossexualismo? "Sob o olhar do Ocidente", de Conrad, exalta ou denigre os revolucionários? Todas estas questões são secundárias e, na verdade, inócuas. Quando alcança o devido nível literário, o romance ultrapassa tais dilemas e se apresenta como um feixe de possibilidades de significar. Como a vida, ele pode nos deixar perplexos, nos levar ao tacteio, ao erro de visão; mas, como ela, enriquece, enquanto totalidade de experiência.

"Em câmara lenta" não é um retrato documentário, contínuo e fiel da realidade. E escrito conforme uma técnica requintada de fragmentação do real, mistura de planos temporais, visão rotativa, - tudo ordenado em torno da ação que se completa aos poucos e dá nome ao livro. E não apresenta um significado, mas uma série deles, tantos, quantas são as faces da realidade e os correspondentes ângulos de visão.

2. Isso leva à segunda pergunta: a sua leitura induz a uma atitude subversiva, ou à prática de atos subversivos?

No meu entender, não. Um leitor de "Em câmara lenta" pode se interessar pelos dramas pessoais, pela sucessão de atos, pelo suspense das cenas, pelas imagens poéticas, etc. E, sobretudo, pelo mistério lentamente desvendado da cena central recorrente; do ato que vai se perfazendo aos pedaços, até compor uma ação total. Trata-se, pois, de interesse cuja natureza é sobretudo estética. É claro que o leitor poderá ter uma visão panorâmica de atos revolucionários, apresentados nas suas diversas dimensões e podendo, sem dúvida, constituir uma visão política, um modo de conceber a participação nos problemas do nosso tempo. Mas não vejo, em momento algum, convite à prática, induzimento, ou sequer sugestão por meio de embelezamento ou realce do que é descrito, - como ocorre nos romances doutrinários e, em geral, alegóricos, que estiveram em moda sobretudo até o século XVIII. "Em câmara lenta" nada tem a ver este gênero, hoje relegado ao segundo time da ficção. E note-se que no livro não há sequer (como é freqüente nos romances de cunho naturalista) descrição pormenorizada de atos revolucionários. Como vimos, a narrativa, muito moderna, é descontínua, fragmentada, procede por flashes que adquirem certo tom de irrealidade e entra por vezes na dimensão atemporal, que nos arranca do quotidiano presente para entrar, no universo da fábula realista.

3. Alguém poderá fazer uma reflexão como esta: admitindo embora isso tudo, a leitura de um livro não pode, entre as suas diversas interpretações possíveis, levar entre outras a uma conclusão de ordem prática? Portanto, uma pessoa que lê "Em câmara lenta", mesmo plenamente capacitada da sua natureza de produto ficcional, não pode extrair uma determinada conclusão de vida? Apesar de toda a neutralidade de Flaubert, o leitor de "Madame Bovary" não pode, por sua conta, concluir que o adultério é bom? - Sim, isso é possível. É possível que o leitor de "Em câmara lenta", tudo sentido, tudo vivido, tudo pesado, tire da sua interpretação uma conclusão prática do que leu. E qual seria ela? Poderia (voltando ao nosso tema) ser um convite, ou induzimento à subversão?

Admitindo para argumentar e por dever de probidade este plano meramente pragmático e portanto secundário de leitura, que não me interessa enquanto crítico literário, eu concluiria, mais uma vez, pela resposta negativa que antecipei no começo. Com efeito, note-se que a partir da página 186 o livro vai tecendo uma série de dúvidas, de proposições alternativas, de críticas ao tipo de atividade descrita. Ressalvando a ambigüidade dos textos literários, o que pessoalmente infiro, se me situo neste plano, é uma sugestão, indireta, não formulada, mas poderosa, contra a subversão. Sugestão contra a eventual inutilidade de tudo que se descreveu. Parece haver no fim do livro, com efeito, uma atmosfera que faz sentir como são inúteis os tipos de ação que nutrem a narrativa; como é negativo o caráter isolado e quase anti-social do guerrilheiro; como é vazia a acção humana que não se enquadra nos desígnios, na vontade dos outros homens, de uma coletividade.

4. Resumindo para concluir: em qualquer nível que me coloque, sou levado a negar que "Em câmara lenta" constitua um incentivo ou sequer um mero exemplo para atividade subversiva. E se fosse necessário extrair dele uma lição, como dos velhos romances alegóricos, eu concluiria que é, antes, o contrário.

Esta é a opinião que emito, cônscio da minha responsabilidade e com base em análise atenta, como professor, crítico e estudioso da literatura.

São Paulo, 12 de fevereiro de 1978

Antonio Candido de Mello e Souza

Professor Titular Aposentado da Universidade de São Paulo Coordenador do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas