Não estamos imunes aos ventos internacionais, mas nossa vulnerabilidade é muito menor que aquela vivida nas crises anteriores
Não estamos imunes aos ventos internacionais, mas nossa vulnerabilidade é muito menor que aquela vivida nas crises anteriores
Houve uma mudança na qualidade do crescimento brasileiro nos últimos anos. Não se trata apenas de termos deixado a triste marca da estagnação relativa para trás, o que já é um alívio, mas do fato de estarmos superando o padrão de crescimento aos solavancos, de stop and go. Esse padrão, que vigorou por mais de duas décadas, existia porque o crescimento sempre encontrava limites no estrangulamento externo e na inflação. E, a cada crise internacional, sofríamos um choque de juros na tentativa de segurar a revoada de capitais e o estouro da inflação.
Não estamos, hoje, imunes aos ventos internacionais, mas nossa vulnerabilidade é muito menor que aquela vivenciada nas crises anteriores. A grave volatilidade provocada pelo estouro da bolha imobiliária dos EUA, que alimentou o crescimento daquele país por muitos anos, nos afeta, mas não a ponto de sustar o processo de crescimento econômico atual. Mesmo com as mudanças abruptas nos mercados de ações e commodities e registros de prejuízos bilionários nos balanços de grandes bancos internacionais, as reservas internacionais brasileiras continuam em crescimento, indicador cabal de que não há fuga líquida de capitais da economia brasileira.
A comparação de alguns indicadores básicos durante as várias crises internacionais pode revelar as diferenças da capacidade atual de enfrentarmos a turbulência resultante do estouro da bolha imobiliária nos EUA. Em 1997, depois de anos de prosperidade dos Tigres Asiáticos (Hong Kong, Cingapura, Coréia, Tailândia e Taiwan), houve um colapso nas bolsas de Hong Kong que se espalhou rapidamente pelo Sudeste Asiático e provocou uma fuga de capitais de todos os emergentes.
Naquele período, prevalecia a indiferenciação dos emergentes. Todas as vezes que um emergente quebrava nenhum outro era poupado, por mais dócil que fosse aos princípios do Consenso de Washington. Na crise de 1997, a economia brasileira estava submetida a um esforço brutal de desinflação através de uma âncora cambial que gerava crescentes déficits no balanço de transações correntes. A âncora era garantida por juros reais elevados, que sobrevalorizavam a moeda nacional e facilitavam a convergência dos preços dos tradeables aos do mercado americano, via importações. As reservas internacionais eram mais baixas do que as atuais, apesar do câmbio semifixo. A fuga de capitais provocava um aumento brutal das taxas de juros, afetando o custo da dívida interna, e demandava aumentos da carga tributária para servir a dívida.
Em 1998, a crise do calote do governo da Rússia foi ainda mais turbulenta. O risco país já havia dobrado desde a crise anterior, de 521 pontos básicos (pbs) para 1.199, a dívida líquida interna havia crescido em 5 pontos do PIB e as reservas, que haviam chegado a mais de US$ 65 bilhões, se esvaíam com rapidez. O governo FHC, temendo os efeitos que uma mudança cambial poderia ter sobre a inflação e sobre sua reeleição, permitiu a fuga de capitais e a desestabilização econômica, mitigada depois da vitória nas eleições por meio de um empréstimo - ponte do FMI. Mas o estrago já estava feito e o início do II FHC foi uma sucessão de escândalos e trapalhadas de política econômica, até que as especulações de mercado demoliram o real forte. Mais uma vez a dívida pública líquida disparava e, depois de ter subido 8 pontos do PIB desde agosto de 1998, voltou a crescer outros 6 pontos até setembro de 2001, quando ao estouro da bolha da Nova Economia somou-se o ataque às Torres Gêmeas. O déficit de transações correntes continuava em crescimento e, com ele, a dívida externa. As reservas de US$ 40 bilhões, em 2001, já não eram totalmente disponíveis, pois parte era de empréstimos do FMI.
Nada muda em 2002, apenas piora com a quebra da Argentina, a guerra no Iraque e a tentativa de golpe na Venezuela. Durante as eleições brasileiras, a estratégia do terrorismo eleitoral foi adotada pela candidatura oficial e turbinada pela mídia. A Argentina dá o calote em sua dívida e os mercados de crédito se fecham aos emergentes. O dólar sobe para quase R$ 4,00, o risco país para 2.400 pbs, e a inflação dispara. Se havia dúvidas em relação à política econômica da candidatura do PT, já esclarecidas pela Carta ao Povo Brasileiro no final de junho, o governo FHC tratou de amplificá-las ao máximo. Mas é sempre bom registrar que a vitória de Lula provocou uma rápida reversão de expectativas, mesmo antes da posse, e foi seguida por quedas no risco país, na cotação do dólar e por uma reversão nas condições de crédito externo.
Não houve crises relevantes no cenário internacional a partir de 2003. Mas tampouco foi feita uma política econômica indiferente à vulnerabilidade externa. Os bons ventos do crescimento mundial e a liquidez farta permitiram a redução da exposição da dívida pública interna às variações do câmbio. Se nas crises de 1997, 1998, 1999 e 2001 a dívida pública foi afetada drasticamente, ou pelo aumento brutal dos juros, no regime de câmbio semifixo, ou pelo colapso da moeda, no regime de câmbio flutuante, isso dificilmente ocorrerá em 2008. Pelo simples fato de que o setor público agora é credor em dólares.
O crescimento econômico médio anual, desde o ajuste severo de 2003, tem sido superior a 4% e, em 2007, será próximo de 5,3%. O risco país está abaixo da média dos emergentes, em torno de 260 pbs, e as reservas internacionais, em US$ 187 bilhões.
Não se pode desconhecer a gravidade da crise americana atual. Tampouco se deve deixar de considerar que as crises anteriores foram superadas com a rápida ação do Federal Reserve (FED), que garantiu liquidez aos bancos e corretoras e reduziu fortemente os juros, evitando uma crise de liquidação, que poderia demolir todo o sistema financeiro, com efeitos duradouros sobre a economia mundial. O mesmo caminho está sendo seguido agora pelo FED e pelo Tesouro americano, que preparou e aprovou no Congresso dos EUA um pacote fiscal de US$ 150 bilhões para mitigar a queda do consumo e irrigar os pequenos bancos regionais com liquidez.
No Brasil, já surgiram as pressões de sempre para que o Bacen suba as taxas de juros, para combater a inflação provocada pela desvalorização do real. Como se as condições de enfrentamento da atual crise fossem semelhantes às das anteriores. Não são. 0 simples fato de a taxa Selic permanecer em 11,25% ao ano, dada a redução de 1,25 ponto dos juros do FED, já é um fator de atração de dólares. E os investimentos externos no país são recordes. Dessa fonte a inflação não sofrerá pressões relevantes. Tampouco dos preços das commodities, que tendem a cair com uma recessão na economia dos EUA.
Alguns podem dizer que a queda no preço das commodities talvez venha a afetar o saldo comercial. Talvez, mas os contratos de exportações de commodities são de médio e longo prazo e não sofrem correções imediatas. As receitas de exportações podem ser mantidas, mesmo com a queda das cotações no mercado à vista. E a entrada de dólares não está arrefecendo, é o que indica o crescimento das reservas. E, por último, as reservas deverão ser usadas para suavizar a trajetória de ajuste nas cotações do dólar, caso surjam pressões significativas.
A economia brasileira agora avança pela solidez do mercado interno, e não mais pelo dinamismo do comércio exterior. São muitos os fatores que vêm contribuindo para essa trajetória. O crédito, desde o início do governo Lula, subiu de 22% do PIB para 34%.
Além da significativa melhora nas condições macroeconômicas (PIB, emprego, inflação), há as políticas de gasto social e de inclusão creditícia, urbana e rural. O aumento real do salário mínimo, em mais de 40% desde 2003, tem ampliado o poder de compra de milhões de pessoas, favorecendo a redução das desigualdades na renda pessoal e a queda da pobreza. Para os que estão no mercado de trabalho, o efeito é direto, seja pela ocupação, seja por meio do seguro-desemprego, que é indexado ao mínimo.
Às críticas daqueles que querem uma trajetória mais rápida de melhoria social, o que é compreensível dada a imensa dívida social acumulada em décadas, é necessário contrapor o fato de que nunca o país cresceu tanto, e por tanto tempo, distribuindo renda nesse processo. Alegar que a melhoria registrada é uma miragem, sob o argumento de que a distribuição funcional da renda, entre capital e trabalho, é a que interessa e a renda pessoal dos mais ricos é subestimada, é desconhecer o aumento palpável do consumo de bens dos assalariados, principalmente os de consumo duráveis, e a incorporação de milhões de famílias à classe média de baixa renda.
Não há dúvida de que a amplitude de renda pessoal ainda é elevada, mas já foi reduzida em 25% desde o início do governo Lula e o índice de Gini vem caindo seguidamente. A distribuição funcional da renda no Brasil é o inverso da encontrada nos países industriais desenvolvidos, com a participação do capital superior à dos rendimentos do trabalho, mas essa mudança exige décadas de crescimento econômico distributivo, de políticas públicas e de lutas sociais e sindicais.
Nossa capacidade recém-adquirida de absorver crises internacionais, sem o colapso da economia doméstica, deve ser preservada para que essas décadas de crescimento com distribuição de renda ocorram. Mas a ordem social capitalista implica lutas distributivas, e um processo como esse não ocorre sem conflitos. Principalmente em um país em que os usos e costumes da política sempre beneficiaram os donos do poder e seus interesses patrimonialistas e rentistas. Isso ficou claro no recente episódio da extinção abrupta da CPMF.
É um imposto polêmico, mas simplesmente extingui-lo não é a solução. Parece mais com aquelas decisões que jogam o bebê fora com a água do banho. No entanto, tem sentido para os donos do poder. Estes querem duas coisas básicas: impedir o desenvolvimento econômico com distribuição de renda e sabotar o governo Lula. Coisas da democracia. Faz parte da regra do jogo. Como também a tentativa de justificar a medida tecnicamente, já que apenas o uso da truculência verbal é coisa muito deselegante.
O martelar irritante dos arautos do conservadorismo ecoa o discurso da gastança. O Estado é gastador, ineficiente e voraz. É claro que, quando o Estado gasta de acordo com os interesses da plutocracia, ele é promotor da eficiência, do modo tradicional de vida e da preservação das realizações da civilização ocidental. O aumento da carga tributária, desde 1995, esteve diretamente associado aos erros da política econômica do período FHC, que deixou o país vulnerável às crises externas e as absorveu através do aumento da dívida pública - e, portanto, de seu serviço. Gastar bilhões com uma dívida crescente e com juros reais estratosféricos, para essa gente, é uma medida saneadora, de preservação da higidez do sistema financeiro. Natural.
É evidente que não se deveria deixar uma crise sistêmica se instalar, mas, convenhamos, esse risco era conseqüência das decisões dos astrônomos ptolomaicos que conduziam a política econômica do período. Hoje esgoelam contra os gastos sociais do governo Lula. Muito dinheiro para gente pobre, os menos dissimulados chegam a dizer. Essa é a questão.
Mas o governo vem reduzindo o gasto como proporção do PIB e realiza um ajuste fiscal duro, há vários anos. Subiu o superávit primário para 4,25% do PIB durante os primeiros anos, realizou 4,22% em 2007, apesar da meta de 3,80%, reduziu o déficit público para 2,10% e a dívida pública líquida para 42,6%, depois de ter chegado a 55,5% no final do governo FHC.
Os gastos com funcionalismo também caíram como proporção do PIB, apesar das correções em várias carreiras, necessárias após anos de arrochos salariais. Houve aumento dos gastos com a Previdência Social, é inegável. Mas devido ao processo de incorporação de direitos previstos no contrato social estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Processo em fase de esgotamento, que deixará de ser fator de pressão sobre o déficit da Previdência.
Os dados são expressivos. Os gastos com juros nominais no I FHC foram de 5,99% do PIB e no II FHC de 7,30%. Subiram um pouco no I Lula, para 7,34%, e começaram a cair em 2007, para 6,35% do PIB. Os gastos com o INSS ainda sobem. Subiram do I FHC para o Il FHC, de 4,99% do PIB para 5,71%, e do I Lula para o II Lula, de 6,68% do PIB para 7,23%. É uma fonte de pressão sobre as finanças públicas, mas cumpre um papel essencial na correção da pobreza brasileira. Os gastos com o funcionalismo caíram como proporção do PIB.
A oposição cortou a CPMF sob o argumento de que provocaria com isso um ajuste fiscal definitivo. Muito radicais. Mas acontece que isso pode comprometer o financiamento de várias políticas públicas, principalmente os avanços na área da saúde. É bom lembrar que 0,20% do 0,38% financiava a saúde pública, 0,10% ia para a Previdência e 0,08% para o Fundo de Combate à Pobreza. Os aumentos na IOF e na CSLL, previstos pela MP 413/08 e no Decreto no 6.339/08, são necessários para impedir que o orçamento público seja comprometido e o avanço em programas sociais essenciais interrompido.
Mas é correta a alegação de gastança no governo Lula? A oposição parece não saber se o governo Lula gasta muito ou se não consegue gastar. Os discursos saltam da gastança para a incapacidade de realização de gastos, como se não houvesse nenhuma contradição. Poderia não haver, se dissesse claramente: o governo gasta muito com o Bolsa Família e pouco no asfalto da estrada até nosso curral ou socorrendo decisões empresariais equivocadas.
O governo gasta com estradas. E quer gastar mais com infra-estruturas que servem interesses mais amplos. Esse é o sentido do PAC. Ferrovias, portos, hidrelétricas, estradas, linhões, prospecção de petróleo e gás, gasodutos, aeroportos. Esses investimentos geram produtividade sistêmica, empregos, e abrem oportunidades de negócios espetaculares para aqueles que querem produzir, e não apenas viver de renda ou da valorização de seu patrimônio. Empresários de verdade. Mas a concorrência capitalista, para a plutocracia, é um valor que se aplica apenas ao negócio do vizinho.
Apesar da crise americana e das ações equivocadas da oposição, as possibilidades de desenvolvimento com distribuição de renda são muito promissoras. Poderemos ter muitos anos de crescimento próximo de 5%, necessários para diminuir o desemprego, ampliar os salários reais e consolidar uma política robusta de proteção social.
Antonio Prado é economista, mestre e doutor pelo IE-Unicamp, foi da Direção Técnica do Dieese (1990 a 1999) e atualmente é chefe da Representação do BNDES em Brasília.