Nacional

Mesmo sendo uma mercadoria, que obedece a regras mercadológicas e/ou governamentais, o livro didático pode perfeitamente servir como ferramenta de trabalho adequada às necessidades de um ensino crítico e autônomo. No entanto, mudanças que o fortaleçam continuam sendo objeto de controvérsias

O Decreto n° 91.542, de 19/8/1985, representa um importante avanço na democratização da escolha do livro didático. Antes responsabilidade do Estado, essa atribuição, após o decreto, passa a ser do professor. No entanto, muito mais importante do que a quem cabe esse direito é sua utilização em sala de aula. Esta, independentemente de quem o escolha, é exclusiva do professor.

Um dos mais antigos e usados recursos instrucionais, o livro didático freqüentemente desempenha papéis diferentes daqueles circunscritos à esfera pedagógica, podendo vir (e quase sempre vem) marcado de forte significado ideológico. Desse modo, refletindo os valores de quem o pro­duz, pode funcionar como poderoso instrumento de reprodução ideoló­gica, ou, ao contrário, vir a constituir veículo que possibilite ao aluno o desenvolvimento de habilidades volta­das para reflexão-ação-reação diante dos problemas do mundo no qual está inserido. Mas, afinal, seria possível algo sem ideologia? O livro didático é historicamente contextualizado, o pensar de uma época está aí posto. Não é por acaso que os conteúdos dos livros mudam, pois se mudam os pensares.

Mudanças que fortalecem o livro didático, no entanto, continuam sendo objeto de controvérsias. As celeumas que ele provoca revelam a complexidade de sua natureza - pode ser usado para muitos fins. Mas a idéia de que se resume apenas a um poderoso e eficiente instrumento, utilizado por grupos sociais hege­mônicos que, por intermédio dele, perpetuam seus valores, sua ideolo­gia, sua cultura, é uma meia verdade. Mesmo reconhecendo que se trata de uma mercadoria, que obedece a regras mercadológicas e/ou governa­mentais, que o saber ali presente é o saber oficial imposto pelo poder, não se pode esquecer o uso que professo­res, alunos, mães e pais fazem desse instrumento pedagógico.

O livro didático pode, perfeita­mente, servir como uma ferramenta de trabalho adequada às necessidades de um ensino crítico e autônomo. Ve­jamos: cabe ao professor sua escolha. E exclusivamente a ele a escolha dos métodos de trabalho. No planeja­mento do conteúdo programático, quem seleciona os capítulos, define as formas de leitura, escolhe o alvo das problematizações, faz os questionamentos e as críticas? Quem conduz o diálogo entre o saber do professor e do aluno com o texto? Quem elabora as tarefas, as avaliações decorrentes do estudo com o livro? O professor. Então, por que lhe imputar o papel de vilão da história?

Retomando a trajetória do livro didático, lembro que o antigo Decreto-Lei n° 8.460/45 - evidentemente, há muito substituído -, legislando sobre as condições de produção e utilização do livro didático, chama a atenção para a inconveniência de assuntos que despertem ou alimentem a opo­sição e a luta entre as classes sociais e entre as raças; que inspirem desamor à virtude, à escola, às instituições nacionais, à família e ao professor; e, principalmente, que contenham, de modo explícito ou implícito, pre­gações ideológicas contra o regime político vigente no país.

A historiadora Elza Nadai já nos alertou sobre o tema. Seguindo essa lógica, a relação do ser humano com a natureza, em busca do progresso, era a receita do livro didático. Desprezando a produção coletiva e a apropriação individual, o progresso aparece, na­turalmente, como valor de uso pro­duzido pelo trabalho. E, como todos são iguais, visa ao mesmo objetivo: o produto, que é o progresso, obvia­mente compartilhado por todos. Cada ser humano desempenhando uma função, uma atividade, para modificar ou conservar a natureza para o bem de todos faz com que o trabalho seja visto como a relação homem - natureza, mas uma relação sem conflitos: a natureza é transformada pelos homens para o bem comum.

Analisando os livros de História do Brasil, também merece destaque a entrada franca, nas escolas brasileiras da visão romântica de um passado heróico e harmonioso. Quando denuncia-se a violência de rebeldes para legitimar a contrapartida: a violência da repressão. Esta é tolerada: são aceitos todos os métodos que mostrarem eficientes para a manutenção da ordem e da paz.

Essa visão autoritária da educação pretendia, em última análise, foram seguidores de verdades imposta passivos reprodutores dos valores dominantes. Um personalismo excessivo que desemboca no desfilar de grandes homens e um desenrolar sem grandes conflitos, em que a violência do Estado é quase uma nota de rodapé. A versão que predominava na escola era a Pátria grandiosa, como uma entidade ­autônoma que tem existência en mesma, independente de todo o povo. Uma História na qual se destacam atos patrióticos de alguns brasileiros como se fossem representantes todo o povo.

Forjado no século 19, sob a matriz teórica do positivismo, o discurso que prega uma História linear e pacifista, que destaca o papel do indivíduo em detrimento do coletivo, em que gran­des personagens são os únicos sujeitos, ocupando todo o espaço dessa História, e suas ações são potencializadas para exaltar os valores dominantes. Esse discurso foi utilizado pelo livro didático, que se outorgou correia de transmissão da ideologia da classe hegemônica. Nunca é demais lembrar a famosa frase "a história é a biografia dos grandes homens", que no início do sé­culo 20 tinha, ainda, sabor de verdade.

Mudanças e permanências no livro didático

Denominada História Integrada, a utilização simultânea, em quase todas as séries, de um livro de História Geral e outro de História do Brasil foi a grande novidade na metodologia do ensino de História na década de 1980. Na virada do milênio, essa metodolo­gia ganha corpo no mercado editorial do livro didático e os exemplares são confeccionados seguindo o modelo de volume único. A História do Brasil é apresentada como integrada à História Geral. No entanto, a primeira permanece como apêndice da segunda. A lógica e a chave para a compreensão e/ou explicação da nossa condição de país permanentemente periférico dos centros hegemônicos é a macro-história. Chega-se ao extremo de, ao final das descrições sobre os tradicionais grandes eventos da História Geral, sinalizar: enquanto isso no Brasil...

Esses dados põem em relevo importantes questões relativas ao ensino da História: os fundamentos da disciplina, o papel da história nacional, os critérios de seleção de conteúdos e a forma de organizá-los. Seleção e corte de conteúdos histó­ricos não podem ser realizados de forma aleatória em qualquer situação escolar, e, particularmente, nos livros didáticos. E até vale indagar: seria heresia pensar numa História Integrada ao inverso, em que a espinha dorsal fosse uma análise da história nacional e, a partir daí, as suas conexões com o mundo? Seria muito complicado ter como meta, no ensino da História, a discussão do tempo presente? É nessa perspectiva que as concepções da História ensinada, do próprio en­sino da História e os objetivos que se pretende alcançar estão intimamente associados, seja no livro didático, seja na ação do professor.

Diante de todas essas questões, eu me vi instigada a pesquisar o assunto. Daí saiu o projeto de pesquisa para o mestrado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, em 2004: "No Labirinto das Concepções e das Práticas do Ensino da História Recente - A memória da resistência à ditadura militar no Brasil", hoje publicado pela EGBA com o título Ensinar/Aprender História Recente: A Resistência à Ditadura Militar no Bra­sil. Com base nesse trabalho, vamos, a título de exemplo, analisar o lugar e a forma que esse tema ocupa no livro didático.

Pelas mãos de diversos autores, a resistência começa uma longa cami­nhada. Aparece abrindo capítulos, ganha títulos e subtítulos, muitas páginas e imagens. A denominação movimento terrorista lentamente entra no ostracismo.

Estávamos em 1993 e ainda havia historiadores que viam os cidadãos brasileiros que lutaram contra o autoritarismo militar como terroristas. Nenhuma referência aos inúmeros órgãos de repressão e aos sofisticados métodos de tortura; nenhuma referência aos mortos e desapareci­dos; nenhuma lembrança de velhos revolucionários, conhecidos desde as lutas contra a ditadura do Estado Novo de Vargas. Nada sobre a con­juntura nacional e internacional que está associada a tal evento. Por que o rótulo terroristas? A resistência não é merecedora nem de uma nota de rodapé. E isso num momento em que mencionar os tempos da ditadura já não atemorizava.

Um dos campeões de adoção nas nossas escolas, por decisão do professorado, teve sua primeira edição em 2003, e dá um tratamento diferente aos opositores do regime. Reporta-se à guerrilha urbana e rural e reconhece o papel de liderança de velhos revolucionários. Mudanças significativas, sem dúvida, porém o tema ainda ocupa espaço secundá­rio dentro de uma abordagem que privilegia o político-econômico na história da ditadura.

Outro campeão de vendas faz referências claras à resistência e à violenta repressão que sobre ela se abateu. Mas observa-se que o po­lítico-econômico ainda tem amplo espaço garantido.

Encontramos livros mais recentes cujos autores se reportam ao perío­do sem pôr em evidência os nomes dos generais presidentes com seus respectivos feitos e defeitos (tradicio­nalmente mais feitos que defeitos). A resistência, na sua versão armada, é vista como uma reação ao endure­cimento do regime a partir do AI-5. Prisões, torturas, desaparecimentos, bem como as referências aos órgãos repressivos, soam quase como denúncia, ganhando páginas em lugar de meros parágrafos.

A história oral é particularmente privilegiada. Depoimentos sobre os mais diversos e relevantes temas do pe­ríodo, em que opiniões se contrapõem de forma não habitualmente vista em livros didáticos. No lugar de apenas fotos dos presidentes e suas realizações podemos ver a oposição ganhar visibi­lidade através de fortes imagens.

A resistência à ditadura militar no Brasil vem ganhando, pelas mãos de alguns autores, status de fato histórico de primeira grandeza. Autores pas­seiam pelo movimento de resistência ao prestigiar a utilização da história oral como metodologia na prática do ensino de História, quebrando a hegemonia do modelo baseado em biografias nacionais por não usar, como matriz dos capítulos, o nome de cada presidente. A Guerrilha do Araguaia, até então merecedora ape­nas de vagas referências, é lembrada e ilustrada com vistoso e colorido mapa, coincidentemente, ao lado de um igualmente vistoso e colorido gráfico sobre o milagre econômico - jamais esquecido pelos nossos autores.

As mudanças são significativas. No entanto, ainda prevalece a abor­dagem triunfalista dos grandes even­tos, na qual a memória dos grupos sociais não dominantes economicamente não se encontra representada ou valorizada.

Essas novas tendências bem-vin­das para muitos também provocam críticas daqueles que pejorativamen­te as chamam de esquerdização do livro didático. Se por um lado são críticas que podem ser consideradas como uma reação natural a qualquer processo de mudança, por outro representam - bem ao gosto de deter­minada revista de circulação nacional e de alguns jornalistas - uma posição conservadora para a manutenção de um velho poder.

Em verdade, críticas que, ao aler­tar para a dimensão ideológica das mudanças, podem provocar, por parte daqueles que acreditam e lutam pelas mudanças no livro didático, uma ava­liação de como a ideologia, impossível de ser abandonada, pode ser utilizada de forma honesta. Esta, sim, a grande discussão.

Assim, reconhecer de forma crítica as mudanças e as permanên­cias do livro didático pode ajudar a torná-lo um elemento importante na construção do saber no processo educacional e um instrumento que contribua para expandir uma prática de ensino alternativa àquela posta pelo modelo tradicional. E se o ato educacional é, fundamentalmente, um ato político, como nos advertiu Paulo Freire, em se tratando de História essa prática é mais que evidente, considerando-se o papel da História como disciplina escolar voltada para a formação política e cultural dos estudantes, procurando despertar-lhes o respeito às diferen­ças, à consciência crítica, à prática participativa, ao convívio social, às ações transformadoras.

Tânia Miranda é mestre em Educação pela Faced/UFBa, diretora de Inclusão e Diversidade da Secretaria da Educação do Estado da Bahia. Autora de Ensinar/Aprender História Recente - A Resistência à Ditadura Militar no Brasil. Bahia: EGBA, 2007 ([email protected]).