Nacional

Talvez o clima das efemérides incite a um exercício de "história contrafactual", ou o que teria sido se o fosse de outra maneira? Nisso, as mazelas do presente tendem a idealizar um "futuro do passado" perdido, ou ainda a romantizar um "passado passado"

Contam-se as dezenas os mais diversos eventos ensejados pelas "comemorações" do bicentená­rio da transferência da corte e da sede do império ultramarino portugueses para o Rio de Janeiro em 1807-1808. Logo, o triplo inevitável questionamento: o que se comemora? Onde e quem comemora? Declino dessas questões centrais para pensar uma questão anterior, de fundo: o que significa comemorar 1808 em 2008?

"Comemorar", memorar junto, exercício que aponta para as fronteiras movediças entre história e memória e, num movimento frenético, funde no tempo presente, passado e futuro. Há muito o perigo da comemoração, porque ardil da elevação da Nação, foi denunciado e subjugado. Mas o que se seguiu então, desde a dilui­ção da história em memória, ou o apartamento radical dessas esferas (Maurice Halbwachs), muita vez com a primazia da última sobre a primeira (Pierre Nora), não levou exatamente a bons termos. Quando nos pomos a memorar juntos, vemos eclodir a his­tória viva, na pulsão dos debates apaixonados que reverberam a partir da historiografia e se espraiam por todo o espectro social. O acontecimento passado restaura a história, na medida em que ele afeta o presente, fazendo do distanciamento temporal um instrumento meticuloso para a revisão das diversas estratificações de sentido que se lhe foram atribuindo ao longo de gerações, tornando esse acontecimento em evento "supersignificado" (Paul Ricouer). Aqui ele alcança toda a sua importância de força política - e cultural - no tempo presente: a retomada reflexiva do acontecimento supersignificado torna-se o alicerce para a construção narrativa (histórica) de identidades fundadoras. Donde se entrevê que uma separação radical entre história e memória - ou a fusão indiscriminada dessas duas esferas - não se apresenta como opção plau­sível para o historiador.

A história foi, é fato; mas toda ela é sempre interpretação. E esse postulado irônico está encravado em qualquer tema histórico a que se refi­ra. Ninguém em sã consciência negará que um dia houve um grande movi­mento dentro da Europa chamado "bloqueio continental" levado a cabo por um general francês com arroubos imperiais e imperialistas, Napoleão Bonaparte. Ninguém questionará que dele, em sua peleja contra a inimiga histórica Inglaterra, partiu a ameaça final de invasão do pequeno reino português, o que motivou a transferência da corte e Estado lusitanos para sua grande colônia tropical na América. A partir daí, qualquer afirmação poderá ser alvo de interpelações apaixonadas. Essa transferência terá sido uma "fuga" ou uma sábia decisão do regente? Foi atropelada ou um "alvitre amadureci­do"? Qual o tamanho da comitiva: 300, 500, 6 mil, 12 mil, 15 mil, 20 mil pes­soas? Quais os impactos desse evento único nos fastos das casas dinásticas européias - dom João foi o único rei europeu aclamado fora da Europa! - para o velho reino e para sua nova sede tropical? Dom João foi um hábil estadista ou tolo manipulado por seus homens de Estado? A vinda da corte acelerou ou protelou a independência do Brasil na era das revoluções? Foi benéfica para o Brasil ao garantir sua integridade territorial - a América Hispânica se esfacelou em pequenas repúblicas - ou foi prejudicial ao in­duzir a uma transição conservadora e centralizadora? Quais suas eventuais marcas na sociedade e no Estado que se construíram no Brasil ao longo do século 19 e mesmo depois?

Por certo que todas essas são questões pertinentes para quem, como eu, percebe a história como processo, numa dialética complexa de continuidades e rupturas, dos cons­trangimentos da necessidade e a luta pela liberdade, e, antes de tudo, em sua materialidade incontornável. São pertinentes para quem não se satisfaz com parar na contestação de que existem discursos em litígio e pronto, a história não sendo capaz de trans­cender a textualidade discursiva dos relatos que ela produziu sobre si. Para quem concebe a história como essa "dialética das durações" que impregna o presente e se projeta para um futuro, cujos rumos estamos apaixonada­mente a discutir hoje, seguem essas pontuais reflexões latentes no liame entre a escritura da história e a luta pela memória que pulsa nessa época de comemorações e apropriações.

Fragmentação ou unidade

De acordo com a interpretação ora hegemônica, a presença da corte foi decisiva para os rumos da indepen­dência que se lhe seguiu. Faz parte da tradição historiográfica comparar nossa independência - que levou à construção de um Estado imperial, centralizado, e à preservação da es­cravidão, interesse maior das elites que bancavam aquele Estado - com o processo análogo ocorrido na Améri­ca espanhola, marcado, ao contrário, pela fragmentação republicana e pela abolição precoce do trabalho escravo na maioria dos novos países. A ques­tão que se então coloca é: a presença da corte efetivamente moldou o Brasil que se levantou das cinzas do mundo colonial?

Eu não tenho dúvida de que a experiência da transferência não apenas da família real, mas da sede do império ultramarino português, foi decisiva para a solução monárquica, centralizadora e escravocrata adotada pelas elites de mando que tomaram as rédeas da independência e se deram ao trabalho da construção do Estado imperial e escravista brasileiro ao longo do 19. A rigor, tal debate é per­manente na historiografia brasileira e remonta aos tempos imediatos à própria independência. Ele guarda um iniludível viés político - e aqui começo a entrecruzar de maneira mais clara "história" e "memória"-, que matiza tanto as interpretações que atribuem grande importância à presença e atu­ação do príncipe regente e depois rei dom João no processo da emancipa­ção política brasileira como aquelas que minoram sua importância a ponto de se conceber que a independência aconteceu "a despeito de'; "não obs­tante" a presença e ações do sobe­rano. Nos dois extremos, podemos evocar desde Cairu versus Hipólito da Costa, Oliveira Lima versus Tobias Barreto, Josué Montello versus José Honório Rodrigues, Lilian Schwarcz versus Evaldo Cabral de Mello. A his­toriografia é construída a partir dessas retificações que acontecem de geração em geração, mas o leitmotiv da re­construção histórica é a luta política travada no presente.

De modo que a questão beira à tautologia, no sentido de que nela já se indica a resposta potencial. De fato, entre 1808 e 1825 mudanças fundamentais verificaram-se no Brasil, a pavimentar o caminho rumo à indepen­dência da metrópole portuguesa. No contexto da "era de revoluções", que se estende do último quartel do sé­culo 18 até 1825 (na América Latina), a independência brasileira represen­tou a única alternativa conservadora bem-sucedida à opção republicana, que caracterizou o processo de emancipação política tanto na América do Norte (que, como o Brasil, manteve a integridade territorial) quanto na América espanhola, pulverizada em várias repúblicas.

Então, podemos dizer - e aí eu vejo a possível tautologia - que sim, a presença da família real - que se es­tende na figura de dom Pedro depois do regresso da corte a Portugal (1821) - foi talvez o fator mais importante na preservação da integridade territorial, sob um regime monárquico mesmo após a independência; o que, por sua vez, foi um verdadeiro empecilho ao desenvolvimento das potencialidades federalistas, esses possíveis não verificados. O que não podemos sa­ber é se, caso o projeto centralizador, monarquista e conservador não fosse historicamente o projeto vencedor, que tipo de "federação" poderia então ter surgido dos escombros do mundo colonial? - e, o que interessa, em que medida essa hipotética federação teria logrado maior êxito na construção de um Estado e na formação de uma nação brasileira "melhor para a maio­ria", ou seja, mais justa, democrática, inclusiva etc. A memória como olvido traz à reflexão a força dos projetos vencidos, os possíveis não averigua­dos. O viés político é patente: as inter­pretações que lamentam o aborto dos projetos federalistas tendem a atribuir as mazelas sociais do Brasil atual à nossa "revolução conservadora", à "via prussiana" seguida pelas elites brasileiras. Mas em história não temos o dispositivo da "contraprova" Uma experiência federalista teria levado a um país melhor? Nossa experiência republicana no século 20 não autoriza uma resposta tranqüila.

O que me parece decisivo na análise do período joanino, quanto ao que dele sucedeu na história do Brasil ao longo do século 19 (é essa a questão) foi a aproximação, durante os anos brasileiros de dom João, das elites do centro-sul com a Coroa. Dom João VI, em troca de apoio político, não teve parcimônia na dis­tribuição de títulos de nobreza, cartas de sesmarias, cargos na máquina burocrática e outras mercês para os ri­cos nativos, principalmente os pode­rosos comerciantes residentes no Rio de Janeiro, mas também de São Paulo e Minas Gerais. Esse entrelaçamento de interesses das elites nativas com as migradas marcou o compasso do processo de independência, dentro de um ambiente cultural de intensas transformações civilizatórias. E aqui eu concordo integralmente com Evaldo Cabral; esse projeto vencedor, que cooptou o príncipe do Brasil depois do retorno do rei, pugnava pela im­posição de interesses tão regionais (ou mesmo provincianos) quanto os do Rio Grande do Sul, do Pará ou de Pernambuco. O que me faz pensar em quais seriam as vantagens para o Brasil se qualquer outro desses proje­tos regionais tivesse se imposto sobre os demais, como logrou o centro-sul. Ou como teria sido se fôssemos hoje quinze ou vinte países independentes falando em português?

Ler o presente a partir do passado

Talvez o clima das efemérides incite a esse exercício de "história contrafactual”, ou o que teria sido se o fosse de outra maneira? Nesse exercí­cio, as mazelas do presente tendem a idealizar um "futuro do passado" per­dido, o que poderia ter sido e não foi. Ou, ainda, a romantizar um "passado passado'; com suas figuras e institui­ções, e trazê-lo para o presente como saídas possíveis para nossos impasses contemporâneos. Nesse sentido, há, por todo lugar, mas particularmente forte no Brasil, um resgate das eras de reis e imperadores, como se eles fossem um contraponto à corrupção democrática/ republicana. Moto-contínuo, há no Brasil uma ideologia revestida de "imaginário coletivo" de que temos um subconsciente monár­quico, presente na figura de nossos inúmeros "reis" e "rainhas" (do fute­bol, do baião, dos "baixinhos" etc.) e, mais perversamente, na herança de paternalismo próprio à concepção monárquica de mundo. Nesse sentido, uma questão que as efemérides do bicentenário têm trazido à tona é se a vinda da família real pode ter nos legado uma consciência monárquica paternal que atrapalha, de alguma maneira, a melhor consolidação de nossa democracia.

Questão que, a propósito, é pauta para um tratado. Os usos e abusos da história são sempre presentes. Entendo esse discurso de que seríamos hoje me­lhores e mais felizes sob uma monarquia como, no mínimo, um anacronismo. Acho mesmo que o preço pela opção monárquica foi muito alto para nossa história. A história prevalece sobre a memória. Os caminhos foram esses que conhecemos. A questão agora, meio sartriana, é: o que podemos fazer daquilo que fizeram conosco? Como fazer aprimorar os mecanismos democráticos, para a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva etc.? Esse desafio não se há de resolver apenas com uma mudança na forma de governo. Repú­blica ou monarquia, presidencialismo ou parlamentarismo? Não me parece ser essa a questão central.

Também não é muito prudente estabelecer um paralelo entre nosso presidencialismo atual e uma monar­quia. Qual monarquia? A nossa do sé­culo 19? Ou a espanhola do século 21? Isso não é lá muito produtivo. Por fim, acho que a presença do "imaginário" (na falta de termo melhor) paternalista é assunto primordial, não só ao debate histórico acadêmico, mas para a análi­se do Brasil contemporâneo. Mas pen­so, em sintonia com Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, que o "paternalismo" sempre emanou da própria sociedade, dela espraiando-se para a política - e não o contrário.

A "comemoração" do bicentenário da transferência da corte

O que fazer com a efeméride? O historiador francês Charles Mozaré ensina que um acontecimento só se torna memorável devido a uma certa maneira de ser excepcional, de suscitar, para além de seu desenrolar efêmero, uma realidade durável, que acaba inscrita nos lugares da memória coletiva, tornando-se uma espécie de experiência exemplar. Nesse sentido, a celebração, a construção da memória são fundamentos para a constituição de um corpo político. Como essa entidade que chamamos de "nação brasileira" começou? O que nos con­grega em torno dessa comunidade imaginada?

O resgate de acontecimentos históricos marcantes, como foi a permanência da corte portuguesa no Brasil entre 1808 e 1821, e a reflexão sobre suas implicações para a história do Brasil que se lhe seguiu cumprem uma função de coesão social, con­tribuem para manter orgânicas as sociedades. Porém, aqui "coesão" não deve significar unanimidade passiva ou submissão, mas trazer implícita a idéia do conflito incessante que marca a formação da nação. Este quadrante memorial em que estamos imersos de forma quase asfixiante pelo menos desde o bicentenário da Revolução Francesa emoldura o con­texto das "celebrações" dos duzentos anos da chegada da corte portuguesa ao Brasil. O apelo a uma memória nacional que pretende submeter; crítica histórica e o apego intenso; revisões de projetos passados - ben ou malsucedidos - evidenciam o regi me de historicidade vigente, em que o passado se esboroa em categoria! meta-históricas e em que o horizonte de expectativa se dilata ao infinito tudo isso poder-se-ia dizer função da ausência de projeto(s) para nossa sociedade e nossa nação. Retomando o pensamento do teórico alemão Reinhart Koselleck, o resgate do es­paço de experiência (passado), sob as coordenadas de um horizonte de expectativa (projetos para o futuro). deve coordenar a ação dos homens no presente. Na falta de projetos futu­ros coletivos, perdemos a chance de ações coordenadas no presente com vistas à construção de um futuro que queremos; assim perdemos a função do agir, categoria que Ricouer define como "a dívida ética da história pe­rante o passado"

Então, façamos bom uso das "comemorações" (desse "memorar jun­to"). Parece-me que uma boa maneira de fazê-lo seria aproveitar o ensejo para insuflar um grande debate na­cional sobre nossa trajetória (a partir daquele evento ou "por causa" dele), nossa realidade atual com seus im­passes e os projetos possíveis de nação que temos a oferecer ao Brasil e a nós, brasileiros, guardando respeito a todas as diferenças que nos singularizam enquanto um povo novo - segundo Darci Ribeiro, o mais bonito que já se fez sobre a face da Terra.

Jurandir Malerba é doutor em História (USE), professor na Unesp. Foi professor visitante nas universidades Oxford e Georgetown. Escreveu A Independência Brasileira: Novas Dimensões, A Corte no Exílio, O Brasil Imperial, Os Brancos da Lei; em co-autoria com Mauro Bertoni, Nossa Gente Brasileira.