Cultura

A literatura latino-americana surpreende com a riquíssima produção de novatos. Deixam escapar por seus textos a história política da região, mesmo que no espaço comprimido das entrelinhas ou por meio do humor. Contos e romances de nuestros hermanos já podem ser conhecidos pelo público brasileiro

"... não podemos escapar da violência, da verdadeira violência, ao menos não os nascidos na América Latina na década de 50, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende

 

Roberto Bolaño

A cadência da língua espanhola está mais presente nas livrarias brasileiras desde que a obra completa de Borges, verdadeira pedra de Roseta da literatura da América Latina, começou a ser reeditada. No rastro da voz irônica do velho bruxo, novas e antigas vozes se misturam. Das antigas, um desta­que é o uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), tido por Julio Cortázar como o mais importante escritor de sua geração, que teve seu clássico moderno, A Vida Breve (Planeta), finalmente editado por aqui. Pedro Páramo (Record), obra-prima do surrealismo existencial (ou algo que o valha, pois o livro é único), do mexi­cano Juan Rulfo (1917-1986), recebeu uma nova e bela edição. Os primo­rosos contos do uruguaio Felisberto Hernandez (1902-1964) e do peruano Julio Ramon Ribeyro (1929-1994), an­tes "confinados" ao resto do mundo, agora respiram ares brasileiros. Vargas Llosa, por sua vez, figura proeminente do chamado boom literário dos anos 1960 e 1970, ao lado de Gabriel Gar­cia Márquez, teve a mesma sorte do criador do Aleph e está sendo todo reeditado em português. E ainda há os argentinos essenciais Juan José Saer, Ricardo Piglia, Cesar Aira e Antonio Di Benedetto, que vêm aparecendo cada vez mais em nossas estantes.

Diante de quadro tão auspicioso, os editores têm apostado também em novos nomes, dada a riquíssima pro­dução literária de nuestros hermanos. Não há nada que os una em estilo e talvez nem mesmo em espírito, tal como aconteceu (em parte, pois o rótulo também teve algo de forçado) com o chamado realismo mágico, mas há claramente o desejo de se fazerem ouvir em alto e bom som.

Poder-se-ia falar talvez no traço comum da história recente de seus países, de cuja violência não seria possível escapar, como diz o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) na epígrafe acima, primeira frase de seu livro de contos Putas Assassinas, a ser lançado em março no Brasil pela Companhia das Letras. Um indício está no historiador Maggi, persona­gem do romance Respiração Artificial (Iluminuras), de Ricardo Piglia, para quem escrever a história é a única maneira de "aliviar-se do pesadelo".

"As perguntas: como chegamos a esse ponto? e o que há no nosso passado que possa explicar isso? (...) são também perguntas da literatura."

Beatriz Sarlo

De fato, é fácil identificar a presen­ça da sangrenta história política da América Latina nos contos e romances dos novos autores, não como o tiro no meio de um concerto, execrado por Stendhal, mas como um personagem ou cenário natural, que surge ora obli­quamente, como na excelente alegoria Ninguém Nada Nunca (Companhia das Letras), de Saer (1937-2005), em que cavalos são brutalmente assas­sinados na calada da noite, ora na frente do palco, como nos romances de Tomás Eloy Martínez (Romance de Perón, Santa Evita). O argentino Martínez, aliás, declarou em conversa com o escritor Paul Austera: "Quando vivíamos debaixo de uma tempesta­de de ditadores na América Latina, nos anos 60 e 70, falávamos que era preciso escrever a história a partir de outro lugar. Os romances cumpriam o que a história não podia cumprir. Os ditadores prescreviam os discursos da história, mas só os romances podiam refletir a cara do poder tal como ela seria vista depois."

Diferentemente, no entanto, dos livros de Scorza, Fuentes, Roa Bastos, Neruda e Sábato, e, num certo sentido, do próprio Martínez, os novos autores como os excelentes Ignacio Padilla, David Toscana e Mário Bellatin (me­xicanos) e os argentinos Alan Pauls, Sergio Chejfec e Rodrigo Fresán, para citar apenas alguns dos já lançados no Brasil, não fazem literatura en­gajada, ou seja, literatura como um grito de resistência ou de denúncia. Em alguns, especialmente naqueles em que o humor corre solto, nem é possível discernir o vulto curvado da História. Mas todos os livros desses autores "contêm" de alguma forma a história política, mesmo que no es­paço comprimido das entrelinhas, na sombra das frases ou até na ausência proposital de seus traços pouco agra­dáveis, mais afeitos às gravuras de um Goya. Essa percepção ganha força se concordarmos com o ponto de partida adotado pelo crítico marxista Fredric Jameson. No seminal estudo O Incons­ciente Político - A Narrativa como Ato Socialmente Simbólico (Ática), Jame­son concebe "a perspectiva política ( ... ) como horizonte absoluto de toda leitura e toda interpretação".

"O romance contemporâneo vai se transformar em material de consulta para futuros historiadores. "

David Toscana

O chileno Bolafio, epicentro do abalo sísmico que mexeu com a lite­ratura da América Latina (admirado com entusiasmo por Susan Sontag, entre tantos outros), tinha por volta de 20 anos quando foi preso em San­tiago, logo após o sinistro bombardeio do La Moneda. Era simpatizante do MIR e um poeta ainda claudicante, oscilando entre maus e péssimos resultados. Após alguns dias numa cela foi interpelado por um guarda que o havia reconhecido da escola. O reconhecimento não era recíproco, mesmo assim o jovem Bolafio teve sua fuga facilitada, num golpe de sorte absolutamente inesperado.

O episódio está vividamente narra­do em conto no livro Llamadas Telefo­nicas, ainda na fila para ser traduzido, e também é mencionado no já citado Putas Assassinas. A marca do exílio, aliás, está presente em toda a obra de Bolafio, que, a despeito dos temas sempre pesados, tem a leveza de um humor peculiar, devedor tanto de Borges quanto dos beatniks, dos sur­realistas franceses e da cultura popu­lar contemporânea. Em seu primeiro romance lançado no Brasil, Noturno do Chile (Companhia das Letras), construído sobre dois longuíssimos parágrafos, mas que se lêem de um fô­lego só, o personagem principal é um padre apolítico, crítico de literatura, que se vê tragado pelas engrenagens sombrias da ditadura ao ser chamado a dar aulas de marxismo para os líderes militares, Pinochet incluído, sequiosos por saber como pensam os subversivos. Para dificultar ainda mais sua situação, o ingênuo e algo covarde religioso descobre, no porão da casa de uma grã-fina diletante, promotora de saraus aos quais era sempre con­vidado, o aparato repugnante de uma câmara de tortura.

Antes desse livro, Bolafio havia tratado do mesmo tema de forma um pouco mais direta, mas não menos original. Na novela Estrella Distante (também sem tradução), inverte os pólos de uma história real e transfor­ma um aviador poeta, exímio fazedor de poemas de fumaça nos céus do Chile, num assassino torturador das forças ocultas de Pinochet. É talvez seu melhor livro, dadas a força das imagens e a terrível ambigüidade do personagem.

O argentino Martín Kohan, um dos autores jovens mais festejados no mo­mento, também prefere sair da estrada principal por onde passam os heróis e toma o caminho pelo qual trafegam os algozes - como no marcante Villa (Iluminuras), de Luis Gusmán, cujo protagonista é um médico que se vê obrigado a "validar" as torturas come­tidas sob o regime de Isabelita Perón, que presidia à sombra do sinistro Ló­pez Rega. Em seu romance curto Duas Vezes Junho (Amauta Editorial), Kohan descreve a prisão e tortura de uma jovem através das impressões de um soldado perplexo, que pouco ou nada sabe o que fazer diante da indiferença cruel de seus comandantes. Estamos em plena Copa do Mundo, quando os gritos dos cárceres eram abafados pelas explosões da torcida, que, no peculiar nacionalismo argentino, reunia pessoas de todos os matizes ideológicos.

Recentemente Kohan lançou o romance Ciencias Morales, que narra a vida de um garoto num colégio in­terno, à luz crepuscular da ditadura, em 1982. O livro recebeu o Prêmio Herralde de 2007, um dos mais pres­tigiados do mundo literário em língua espanhola - o cultuado Os Detetives Selvagens (Companhia das Letras), de Bolaño, uma divertida e polifônica odisséia em busca da poesia, já havia ganho o prêmio.

Os Pichiciegos (Casa da Palavra), traduzido pela primeira vez para o português, foi um dos discursos lite­rários que, frente à opacidade imposta pelos anos de chumbo, criou na épo­ca (1982) um espaço rico em novos sentidos. Ousado, Rodolfo Henrique Fogwill, também sociólogo, grande re­ferência da literatura contemporânea argentina, mostrou em seu romance todo o absurdo da Guerra das Malvi­nas, última tentativa da Junta Militar de ganhar apoio popular antes de sua derrocada. Com linguagem hiper-rea­lista e ouvido atento à linguagem natu­ral dos diálogos, o autor se absteve de narrar horrores ou heroísmos e, des­pido de quaisquer sentimentalismos, direcionou suas frases enxutas para a prosaica suspensão dos valores em nome de uma patética sobrevivência. Não é preciso dizer que o livro, pro­fundamente verdadeiro e perturbador, foi proibido em seu país, sendo conhe­cido primeiro em edições clandestinas que passaram pelo Brasil.

A insanidade da guerra também é assunto de alguns autores peru­anos recentemente publicados por aqui. Em A Hora Azul (Objetiva), por exemplo, Alonso Cueto narra em rit­mo de romance policial a história de uma jovem índia que, ao contrário de tantas outras, sobreviveu depois de violentada pelo exército que lutava contra o Sendero Luminoso. O jovem Santiago Roncagliolo também parte de uma investigação sobre os abusos dos direitos humanos na luta contra os guerrilheiros de Abimael Guzmán no seu premiado Abril Vermelho (Alfaguara); seu personagem, um promotor, acaba enredado nas tramas obscuras do governo Fujimori. Do mesmo autor, deve ser lançada bre­vemente uma biografia do fanático idealizados do Sendero Luminoso, intitulada A Quarta Espada. Já em Rádio Cidade Perdida (Rocco), de Daniel Alarcón, um dos vinte melhores novos escritores selecionados pela prestigiada revista Granta, os efeitos catastróficos da guerra civil se fazem sentir na dolorosa busca dos desaparecidos.

Sensação da nova literatura por­teña, Washington Cucurto, "negro" argentino, faz da sua escrita também um ato político ("considero a literatura uma geradora social"), mas de outra forma. Ao descrever em Coisa de Ne­gros (Rocco) a vida nas periferias de Buenos Aires e dar voz aos descamisa­dos, buscando nos prazeres da cumbia e do sexo um antídoto para o sufoco diário, Cucurto faz um discurso (di­vertido, bem-humorado) de liberdade. Ele é um dos idealizadores da Eloisa Cartonera (www.eloisacartonera.com.ar), uma cooperativa no barrio de La Boca que reúne catadores de material reciclável e fabrica livros com capas de papelão, vendidos ao preço médio de 1 dólar. A iniciativa se espalhou: no Peru existe a Sarita Cartonera e no Brasil há, nos mesmos moldes, a Dul­cinéia Catadora, que já lançou livros de Glauco Mattoso, Ronaldo Bressane e Douglas Diegues, "el rey del portuñol salvaje”, entre outros.

Daniel Benevides é jornalista