Política

Livros continuam a análise crítica so­bre a presença da esquerda na construção da sociedade e do Estado brasileiros

Os volumes 2 e 3 da co­leção As Esquerdas no Brasil sob os títulos Naciona­lismo e Reformismo Radical: 1945-1964 e Revolução e De­mocracia: 1964-... dão conti­nuidade à análise crítica so­bre a presença da esquerda na construção da sociedade e do Estado brasileiros mo­dernos — livros estes que se debruçam sobre um período singularmente importante na definição das linhas de força que estruturarão nosso país, em todas as suas possibilida­des, limites e contradições, com fortes repercussões so­bre o tempo presente.

Nacionalismo e Refor­mismo Radical: 1945-1964 se detém a um período posi­tivo de nossa história, prenhe de otimismo para as forças populares, pois, contrariando nossa história marcada pela dominância burguesa auto­crática, este se inicia no pós-guerra com a cristalização do processo de modernização industrial e de abertura de­mocrática, consubstanciado normativamente na Constituição de 1946 — pacto cons­tituinte que funda o reco­nhecimento de uma relação inclusiva entre as diferentes classes sociais, pautada na formalização de uma demo­cracia representativa que as­segura liberdade de organização para os diversos partidos políticos brasileiros, inclusive os de extração popular, assim como ampla possibilidade de associação e de expressão que potencializem a libera­ção de energias populares até então represadas.

Não obstante a ausência de elementos importantes para a configuração mínima de uma democracia formal nos moldes clássicos, como a necessária integração das maiorias assalariadas aos processos identitários de construção da Nação, e a re­forma da estrutura fundiária arcaica, impeditiva da extenção da cidadania ao campo, onde viviam milhões de pes­soas relegadas à condição de párias, quase completa­mente assujeitadas à fúria patriarcal dos latifundiários e de seu poder de mando. Acresça-se ainda, que a ade­são da burguesia brasileira à democracia positivada na Constituição de 1946 deu-se mais por razões episódicas, contingenciais, afetas às fra­turas internas que a acome­tiam, assim como ao vigor das pressões populares por maior participação, do que por convicções profundas na supremacia ética dos valores do Estado de Direito.

O que justifica o curso dos acontecimentos tematizados em Revolução e De­mocracia: 1964-..., quando se assiste ao retorno da dominação burguesa centrada fundamentalmente na coer­ção contra as classes popu­lares e no recoesionamento das elites governantes em torno de um projeto buro­crático-autocrático de Es­tado divorciado da idéia de povo-nação, e, também, por conseguinte, da construção ativa, hegemônica, de um Es­tado capitalista efetivamente assimilados das coletividades internas ao desenvolvimento econômico, político e cultural em nosso país.

Realidades abordadas pelos respectivos volumes de As Esquerdas no Brasil que, a despeito da cisão que se opera entre os dois momen­tos históricos analisados a partir da instauração do Gol­pe de 64 — com tudo o que isso significará em termos de retrocesso nos acúmulos ob­tidos pelas lutas populares —, ainda assim são marcadas por uma continuidade explí­cita: o divórcio forjado pelas classes dominantes entre o projeto de modernização, a democracia e o ideal de nacionalidade. Daí a recorrência com que os liberais brasilei­ros se utilizam da noção de modernização, opondo-a a qualquer laivo democratizante ou de esboço de um proje­to nacional, como também fazem os conservadores, ambos voltados para uma espécie de "virtuosa" reco­lonização interna, estribada na absorção acrítica de tec­nologias e modelos provindos das forças de mercado exter­nas que definitivamente nos "civilizasse", antenando-nos com os eflúvios da Europa e dos EUA.

Nesse sentido, os vo­lumes 2 e 3 demarcam por meio do conjunto dos textos apresentados um fio pro­blemático comum que os perpassa: como pensar um projeto de esquerda a partir da realidade concreta brasileira, levando-se em con­ta a descontinuidade das tarefas que nos foram lega­das por um projeto estatal historicamente antinacional, antipopular e antidemocrá­tico. Divergências teóricas da esquerda brasileira que, como bem revelam os livros em questão, definem formas de ação, táticas e estratégicas, bastante diferenciadas das dos agrupamentos de esquerda nesse período histórico, e que são competen­temente tratadas pelos au­tores dos artigos. Polêmicas acerca da centralidade ou não do conceito de nação, do peso da luta de massas e institucional, da pertinência das questões de gênero e de raça em uma visão socialis­ta emancipatória, dos tipos de organização adequados para o enfrentamento com a estrutura do Estado etc. conformam um mosaico de aspectos que explicam as variadas cisões operadas na esquerda da época. Além, é claro, da diversidade de entendimentos sobre o tipo de sociedade a ser constituído em contraponto ao modelo vigente, se circunscrito aos li­mites reformadores da ordem ou se instaurados de novos fundamentos civilizatórios, la­vrados nos valores e utopias socialistas. Diversidade das posições de esquerda brasi­leira que são acentuadas no artigo de Alexandre Hecker, sob o título "Propostas de es­querda para um novo Brasil: o ideário socialista no pós-guerra", contido no volume Nacionalismo e Reformismo Radical: 1945-1964.

Afinal, a experiência bra­sileira, sul-americana e "ter­ceiro-mundista" nos coloca ou não desafios teóricos a serem respondidos? Ou es­taríamos condenados a re­plicar a pretensa experiência "universalista" européia, reproduzindo suas formulações táticas e estratégicas? Deve­mos, a exemplo de uma con­cepção lastreada nos moldes dos clássicos socialistas eu­ropeus, abominar o nacio­nalismo, compreendendo-o como rotunda expressão da burguesia imperialista? Ou seria mais apropriado apre­ender concretamente as po­tencialidades politicamente emancipatórias de um nacionalismo de defesa frente às investidas de um mercado cada vez mais transnacional e em oposição às aspirações da cidadania? (Ver o texto de Ângela Castro Gomes intitulado "Partido Trabalhista Bra­sileiro (1945-1965): getulismo, trabalhismo, nacionalismo e reformas de base". Ou então o texto de Fábio Sá Earp e Luís Carlos Delorme Prado: "Celso Furtado", analisando a criativa inteligência do inte­lectual paraibano em pensar soluções para o Brasil.)

E a religião, considerada nas condições concretas em que se desenvolve no Brasil, pode ser vista como sinônimo inapelável do "ópio do povo"? Ou poderia - como propõem os adeptos da Teologia da Libertação - cumprir um pa­pel de crítica ética ao sentido crescentemente desumani­zador e reificante do capita­lismo hodierno que destrói as bases solidárias dos vín­culos comunitários forjadas pelo povo trabalhador? (Ver os artigos "As esquerdas e a descoberta do campo bra­sileiro: Ligas Camponesas, comunistas e católicos", de Mario Grynszpan e Marcus Dezemone, e "Operação Ca­valo de Tróia: a Ação Católica Brasileira e as experiências da Juventude Estudantil Ca­tólica (JEC) e da Juventude Universitária Católica (JUC), de Marcelo Timotheo da Cos­ta. Ambos fazem parte do vo­lume Nacionalismo e Refor­mismo Radical (1945-1964).

Múltiplas questões e pro­blemáticas também aborda­das no volume Revolução e Democracia: 1964-... trazem a lume, entre outros pontos, a formação complexa e con­traditória da sociedade civil brasileira na contemporanei­dade a partir do processo de aparecimento de novos ato­res políticos e sociais. Como se pode entrever, entre ou­tros, nos artigos de Daniel Aarão Reis sobre o itinerário de organizações de esquer­da como a Polop - "Classe operária, partido de quadros e revolução socialista. O iti­nerário da "Política Operária – Polop" -, ou sobre o MR-8, junto com Marcelo Ayres Ca­murça - "O Movimento Revo­lucionário 8 de Outubro (MR­8). Da luta armada contra a ditadura à luta eleitoral no PMDB" -, e, por fim, sobre o Partido dos Trabalhadores – "O Partido dos Trabalhado­res: trajetória, metamorfoses, perspectivas".

Citem-se ainda os tex­tos elucidativos de Denise Rollemberg ("Carlos Ma­righella e Carlos Lamarca; memórias de dois revolucionários"; "Memórias no exílio, memórias do exílio") e, por fim, destaque-se o interes­sante texto de Michael Löwy sobre o papel revolucionário do cristianismo propugnado pela Teologia da Libertação no desenvolvimento históri­co-crítico do capitalismo, em diálogo fértil e criativo com o marxismo.

Newton de Menezes Albuquerque é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo