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Por séculos a hanseníase foi vista como uma praga e seus portadores segregados pela sociedade. Em 2006, o governo federal decidiu mudar o rumo dessa história e iniciou processo de reparação da violência de que foram vítimas milhares de brasileiras e brasileiros

O presidente Lula criou em 2006, sob a coordenação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República um grupo de trabalho interministerial com a tarefa de diagnosticar e propor medidas para reparar a violência de que foram vítimas, durante décadas, os portadores de hanseníase. Tratava-se de reconhecer a responsabilidade do Estado pela violação dos direitos humanos desse segmento, resgatando sua dignidade e assegurando-lhe condições de vida adequadas.

A iniciativa envolvia mais uma das dívidas históricas que o governo federal decidiu enfrentar e propiciou um processo de aprendizagem para os gestores públicos. A tarefa não era simples, tamanha a situação de exclu­são social: no mundo, ainda são notificados cerca de 300 mil novos casos por ano, dos quais 47 mil no Brasil.

A saga dos hansenianos é a história de milhares de brasileiras e brasileiros que, ao longo do século 20, foram obrigados, pelo fato de terem con­traído a doença, a se recolher numa segregação que exibia todas as carac­terísticas de banimento, considerados uma ameaça ao convívio social.

Velho estigma

A doença sempre foi vista como uma praga e o estigma criado em tor­no da hanseníase remonta aos tempos bíblicos. O Antigo Testamento contém referências à lepra como castigo e o Novo Testamento fala do milagre da cura, por Jesus Cristo, de Lázaro, um portador de hanseníase. Não há na história da humanidade enfermidade tão associada a um sentimento de horror, talvez pelas deformações que causa. Ocasionava medo, pânico, repulsa. As pessoas eram alijadas das famílias e confinadas em centros longínquos. Pouco se sabia sobre os mecanismos de contágio e as possíveis formas de convivência com a doença. Somente em 1873 o cientista norue­guês Gerhard Amauer Hansen isolou o bacilo, que foi batizado com seu nome, abrindo caminho para a cura. Conhe­cida até então como lepra, morféia, mal-de-Lázaro, a partir daí recebeu o nome científico de hanseníase.

No Brasil, até 1986, um número incalculável de pessoas foi obrigado pelo Estado a se isolar em hospitais-colônias. Foram tantos os contamina­dos que, entre 1930 e 1945, a ditadura Vargas adotou o confinamento obri­gatório como política. Mais de cem colônias foram construídas, em locais de difícil acesso, como verdadeiras prisões, com cercas e muros altos. Guardas sanitários tinham a função de capturar os fugitivos.

Homens, mulheres e crianças eram muitas vezes caçados e laçados como animais para ser internados. Perma­neciam nesses locais de banimento por décadas, perdendo assim os vínculos familiares. Dentro dessas instituições, como relatou Almerinda, que cresceu, namorou e se casou na colônia Anto­nio Aleixo, em Manaus, os filhos eram arrancados das mães ao nascer e leva­dos para os preventóriosLocal onde permaneciam pacientes até que se verificasse se haviam contraído a doença., perdendo o direito de conviver com os pais.

No cinema, a enfermidade já foi retratada no clássico Ben-Hur. Bem mais próximo de nossa realidade está Diá­rios de Motocicleta, que mostra como, até bem pouco tempo atrás, eram tratadas as vítimas da hanseníase na América Latina. Uma das cenas mais emocionantes do filme é a travessia a nado do Rio Amazonas empreendida pelo jovem Ernesto Guevara de Ia Serna, estudante de Medicina, que deixa para trás sua festa de aniversário para juntar-se aos portadores de lepra que vivem isolados em uma colônia, no Peru, em plena floresta.

Somente nos anos 1960 o Brasil começou a pôr fim ao isolamento compulsório, mantendo, no entanto, um regime semi-aberto. Em 5 de maio de 1962, o Decreto n° 968 aboliu o isolamento compulsório, mas, na prática, a norma só seria concretizada nos anos 1980.

Heróis dessa luta

Bacurau é o nome de um tipo de coruja, um pássaro que vive só, se esconde durante o dia e permanece em vigília durante a noite. Apresenta também a capacidade de mimetizar o ambiente, confundindo-se com grave­tos e folhas secas. Não se sabe por qual dessas razões Francisco Augusto Viei­ra Nunes recebeu o apelido de Chico Bacurau assim que chegou à colônia Souza Araújo, no Acre. Chico Bacurau contraiu a doença aos 6 anos e, por isso, não foi admitido na escola. Autodidata, tornou-se professor primário no Acre e, ao lado de Chico Mendes e Marina Silva, foi um dos fundadores do PT no estado. Ao morrer, em 1997, Bacurau já tinha deixado como legado uma impressionante lição de vida militante e a criação do Morhan.

Nascido em 1981, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) foi a primeira organização, em todo o mundo, criada para eliminar a doença e combater os preconceitos. Tem hoje representações em 24 estados e atinge mais de cem comunidades.

Como líder comunitário e defensor dos direitos humanos, Chico Bacurau participou de muitas outras lutas pela saúde pública e, em suas andan­ças, manteve estreita relação com o sindicalista Lula. Por intermédio de Bacurau, Lula conheceu a causa dos atingidos pela hanseníase, já no início da construção do PT. Também criou relações com outras lideranças do Morhan e visitou várias colônias antes de assumir a Presidência da Repúbli­ca. Foi, aliás, o primeiro presidente a visitar esse tipo de instituição depois de Getúlio.

O senador Tião Viana (PT-AC), médico com militância em defesa da causa, acolhendo as demandas do Morhan, apresentou projeto de lei que impulsionaria a ação do Executivo que levou à aprovação da lei de reparação. Mas a história dessa conquista está repleta de muitos outros heróis, co­nhecidos e desconhecidos. José Garcia da Cruz, de 102 anos, é o mais antigo paciente do Hospital São Julião, em Campo Grande (MS). Bastante lúcido, conta como foi obrigado a abandonar seu trabalho para a internação com­pulsória, ainda no período Vargas. Familiares lhe viraram as costas. "Meu padrasto me expulsou, minha mãe também. Quem me via fechava as por­tas." Um dia antes do Natal de 2007, o vovô Zé, como é carinhosamente chamado, foi o primeiro beneficiado com a pensão mensal vitalícia de R$ 750, retroativa a maio.

Todos reconhecem a importante trajetória artística de Ney Matogros­so, mas poucos sabem que o cantor travou contato com portadores de hanseníase antes mesmo de integrar o grupo Secos e Molhados, quando residia em Brasília e trabalhava na área de saúde. Hoje é um verdadeiro embaixador da causa, assim como Siron Franco, Nei Latorraca, Elke Ma­ravilha, entre outros artistas.

MP da pensão vitalicia

Desde a audiência de 2006 com representantes do Morhan, em que o presidente Lula determinou a criação do Grupo de Trabalho Interministe­rial, até o início efetivo do pagamento das pensões vitalícias, pode-se afirmar que todo o processo transcorreu em tempo recorde. A reparação econô­mica é uma das principais recomen­dações do relatório. Foi mais uma vez comprovado que as propostas de políticas públicas e os projetos enviados ao Parlamento têm maiores chances de aprovação e de sucesso quando construídos em consenso entre Executivo, parlamentares e os movimentos sociais.

É natural que o exame e a aprovação dos primeiros casos tenham sido mais morosos, até que os pro­cedimentos burocráticos sejam do­minados e agilizados para assegurar, em pouco tempo, um consistente fluxo de aprovação das reparações nos termos da lei. A pensão mensal vitalícia de R$ 750 não é transmissível a herdeiros e estima-se que sejam beneficiárias entre 3 mil e 5 mil pes­soas. Esse procedimento indeniza­tório, porém, só faz sentido quando complementado por outras medidas a serem adotadas pelas autoridades e por toda a população, buscando a superação de todos os preconceitos. Bloqueios ainda existem, são profundos e só serão superados com o fortalecimento de uma sólida cultura de direitos humanos.

A medida provisória que autori­zou a ação do Executivo e o decreto que a regulamentou permitiram a instalação imediata da Comissão Interministerial de Avaliação, iniciando-se as primeiras providências administrativas. Quando o Congresso converteu a MP e aprovou, em 18 de setembro do ano passado, a Lei no 11.520, a Comissão já tinha começa­do a receber e analisar os primeiros pedidos de indenização.

A assinatura por Lula da Medida Provisória n° 373, em 24 de maio de 2007, não foi apenas mais um evento oficial. Os militantes do Morhan estavam presentes para sentir a emoção de cada orador, que encontrava eco nas palmas e lágrimas. Segundo o presidente da República, poucos eventos naquele palácio - e eles são praticamente diários - tiveram uma carga emotiva tão elevada.

Valdenora Cruz Rodrigues, representante do Morhan no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Por­tadoras de Deficiência, resgatou seu passado, contando que, aos 9 anos, passou três dias em um barquinho descendo o Rio Amazonas, a caminho da internação na colônia Antonio Aleixo, muito distante de Manaus. Foi nessa colônia que Valdenora cresceu. O dia 24 de maio de 2007 representou para ela a garantia da pensão vitalícia e a comemoração mais feliz de seu aniversário.

Do fundo do auditório, Cristiano Cláudio Torres, ex-interno da Colônia de Marituba, em Belém, solicitou ao presidente Lula, já na tribuna para discursar, uma quebra do protocolo, porque também queria falar. Rece­beu o microfone e contou que logo após seu nascimento foi levado a um preventório. Só depois de vários anos reconquistou o direito de viver com os pais na colônia. Transgressor, não só de protocolos, mas também das rígidas regras de conduta adotadas na instituição, Cristiano violou as normas que proibiam namoro e casa­mento entre hansenianos e, depois de se casar, foi preso por desobediência. Hoje representa o Morhan na Comis­são Interministerial de Avaliação da Pensão Vitalícia.

Hanseníase tem cura

Hanseníase tem cura e os medicamentos são distribuídos gratuitamente pelo SUS. Para os padrões da Organi­zação Mundial da Saúde é necessário reduzir a prevalência da doença para menos de um caso a cada grupo de 10 mil habitantes. Hoje o Brasil ainda registra taxas superiores a tal índice. Em 2006, foram notificados 45 mil novos casos e em vários estados as ta­xas estão diminuindo, faltando maior controle no Norte e no Nordeste.

O programa para eliminação da doença se assenta em identificar no­vos casos e garantir acesso universal ao tratamento. Simples, o tratamento dura de seis meses a dois anos, não havendo necessidade nem de inter­nação nem de o paciente se afastar de suas atividades ou do convívio social. Só não pode ser interrompido, para evitar o retorno da doença e as seqüe­las físicas. Depois de tomar a primeira dose do medicamento, a pessoa deixa de ser transmissora do bacilo.

Ainda existem 33 ex-colônias no Brasil. A maioria delas abriga pessoas idosas, antigos pacientes que já não possuem parentes ou vínculos fora de seus muros. Mesmo curadas, con­tinuam dependentes de tratamento em virtude de seqüelas, ou receberam alta, mas tiveram de retornar por não ter condições de sobreviver fora da instituição.

A pensão vitalícia deve ser vista como reafirmação da capacidade de superação de obstáculos quando movimentos sociais persistem com vigor em sua luta. O exílio dos han­senianos acabou no Brasil. Mas as seqüelas deixadas na alma das pessoas segregadas, bem como as marcas de violência que ficaram impressas na história, demorarão a ser esquecidas. E é melhor que não o sejam, para que nunca mais se cometam violências dessa espécie.

Rogério Sottili é secretário-adjunto da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República