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Serra e Aécio disputam dois caminhos alternativos para superar a crise da oposição ao governo Lula e construir uma vitória nas eleições presidenciais de 2010

A conjuntura em que se darão as eleições municipais de 2008 inicia-se com uma dinâmica claramente adversa à oposição ao governo Lula liderada pelo PSDB-DEM. Ao contrário das previsões pessimistas sobre a economia, que dominaram a cena da mídia brasileira no fim de 2007, o mês de março parece consolidar a percepção entre os analistas de que o crescimento da economia brasileira neste ano será provavelmente no patamar do excelente resultado de 5,4% recém conquistado.

O crescimento da arrecadação gerada pelo ritmo forte da economia parece mais que compensar a perda de receita pelo fim da CPMF; a ascensão dos investimentos para uma taxa percentual superior ao dobro do crescimento da economia desautoriza previsões apressadas de inflação de demanda; o aumento do emprego, da renda e do salário mínimo lastreia o crescimento do crédito; e o deslanchamento do PAC funciona como um acelerador macroeconômico do dinamismo econômico. Mesmo o fenômeno mundial da desvalorização do dólar, que rebate no Brasil de forma acentuada e preocupante, reflete em uma medida importante o aumento das exportações e dos investimentos estrangeiros produtivos na economia. Mas continua sendo verdade que a manutenção desnecessária de uma taxa de juros básica da economia pelo Banco Central claramente acima da média internacional, embora em um patamar qualitativamente menor do que nos anos neoliberais, ajuda a pressionar o câmbio e a encarecer desnecessariamente a rolagem da dívida pública.

Essa realidade que faz com que os brasileiros estejam mais otimistas em relação ao crescimento do emprego e da renda – como atestam as recentes pesquisas CNT-Sensus (fevereiro) e CNI-Ibope (março) – fundamenta igualmente uma série de programas de grande impacto social. A ampliação do Bolsa Família e dos mecanismos de inclusão social a ele vinculados, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), que impacta a zona sensível da segurança pública, a chegada do PAC em obras estruturantes a favelas nas metrópoles brasileiras, a interiorização da promoção social propiciada pelo programa Territórios da Cidadania, o Programa Reuni, que garante uma histórica ampliação das vagas e a criação de novos cursos nas universidades federais funcionam como vetores de ampliação da base social de apoio do governo. Em 2008, de forma mais nítida que nos anos anteriores, o governo Lula tem assumido claramente uma agenda favorável aos movimentos sindicais brasileiros. O reconhecimento pela primeira vez da legalidade das centrais sindicais, o envio de um projeto ao Congresso que regulamenta restritivamente as demissões de acordo com a OIT, a diminuição dos juros no crédito consignado aos aposentados, o reajuste acima da inflação para cerca de 800 mil funcionários federais certamente traduzem uma pauta nova de avanços classistas e de afirmação dos direitos dos trabalhadores.

São esses avanços que impulsionam a melhora de avaliação do governo Lula perante a população. A pesquisa nacional divulgada pela CNT-Sensus em fevereiro de 2008 marca um avanço importante em relação à realizada em outubro de 2007. A avaliação positiva do governo (ótimo e bom) passou de 46,5% para 52,7% e a negativa (ruim e péssimo) recuou de 16,5% para 13,7%. A aprovação de Lula passou de 61,2% para 66,8%. E é muito provável que essa dinâmica de elevação de popularidade continue nos meses que antecederão as eleições municipais. Segundo a pesquisa CNT-Sensus, 36,8% dos entrevistados admitem votar em candidatos a prefeito apoiados pelo presidente Lula.

A pesquisa CNI-Ibope confirmou e ampliou a tendência de melhor avaliação do governo Lula, ultrapassando mesmo os altíssimos índices do início do primeiro mandato. O governo desfruta hoje de uma avaliação positiva (ótimo e bom) de 58% e de apenas 11% de ruim e péssimo. Impressiona a tendência de alta, fazendo com que o governo já obtenha um saldo (diferença entre ótimo e bom e ruim e péssimo) de 30% positivo até entre os que têm ensino superior e de 31% entre os que ganham mais de 10 salários mínimos. Essa é uma grande mudança em relação aos dois últimos anos. Nas capitais, o saldo subiu em 20% de dezembro a março; no Sudeste, 8% e no Sul, 18%, no mesmo período. A única área de atuação que continua mal avaliada do governo é a política de juros, sendo desaprovada por 53% dos pesquisados.

Uma crise na história
Seria um erro profundo avaliar que as dificuldades das oposições lideradas pelo PSDB-DEM são meramente conjunturais e de situação. Em um sentido histórico, podemos afirmar que, quanto mais o governo Lula se aproximar de sua agenda de mudanças estruturais na vida do país, maior será a crise das forças vinculadas ao programa neoliberal.

Essa crise de legitimidade do programa neoliberal manifestou-se já com toda a força desde o início do segundo mandato do governo FHC, em março de 1999, após a grande crise cambial e de desvalorização do real. Naquele mês, o governo FHC já apresentava uma forte impopularidade, que nunca mais seria superada. As eleições municipais de 2000, que fizeram do PT o partido mais votado do país, anunciavam claramente uma possível ofensiva das forças democrático-populares, deixando para trás o período mais duro da resistência.

A construção da candidatura Serra, como se analisou, procurava reposicionar o PSDB no centro, trocando a aliança preferencial com o PFL pela aliança com o PMDB e assumindo um discurso diferenciado da agenda econômica simbolizada por Malan. Serra, buscando conformar um identidade mais voltada para o desenvolvimento, apresentou-se em seu primeiro programa eleitoral, como todos se lembram, com artistas vestindo macacão de trabalhador e brandindo na mão uma carteira de trabalho, em tudo diverso dos anos de liquidação em massa de empregos dos governos FHC.

Após a derrota, a direção central do PSDB, com referência na tradição paulista do partido, retomou a aliança prioritária com o PFL na oposição agressiva e intransigente ao primeiro governo Lula. Fracassada a experiência serrista de “continuidade sem continuísmo”, a inteligência do PSDB avaliou como um erro importante a quebra da dinâmica de centro-direita, que tinha na aliança prioritária com o PFL sua configuração nítida. Importante também, o partido perdia um de seus tripés regionais de sustentação, o governo do Ceará, criando um isolamento histórico em relação à tradição nordestina.

A candidatura Alckmin em 2006, surgindo de fora da direção nacional histórica do PSDB e, na verdade, impondo-se a ela a partir da força do governo de São Paulo, pode ser interpretada como mais um capítulo dessa crise. No momento de máxima afirmação de sua identidade – a polarização do segundo turno –, ela revelou toda a sua fragilidade, colocando-se de forma ambígua em relação ao programa de privatizações, não conseguindo ampliar alianças e tendo menos votos do que havia obtido no primeiro turno.

Em meio à crise nacional, o PSDB conseguiu reter duas cidadelas importantes que lhe dão ainda uma capacidade protagônica em relação às forças que se opõem ao governo Lula: o governo de São Paulo e o de Minas. O PFL, de fato, sofreu duríssimas derrotas políticas em 2006, perdendo inclusive sua base histórica na Bahia. Serra e Aécio aparecem, assim, como duas lideranças, dois lugares e duas plataformas em busca de um caminho ao governo central do país em 2010.

O caminho de Serra

Articulado com a liderança política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso, o caminho de Serra parece combinar o antipetismo, a priorização das alianças na centro-direita, o controle da máquina diretiva nacional do PSDB, a reafirmação do favoritismo de sua candidatura em função de sua prévia nacionalização em disputas anteriores e a ambigüidade de um discurso liberal-desenvolvimentista.

O antipetismo é hoje, de fato, um traço orgânico inseparável da cultura do PSDB em São Paulo. Ganhou densidade simbólica e riqueza argumentativa durante a primeira gestão do governo Lula, por meio não apenas da orquestração midiática que tem sede em São Paulo como da formação de uma intelectualidade agressivamente crítica da esquerda que tem decerto sua base de audiência em largos setores da classe média paulistana. As eleições passadas mostraram como esse discurso foi reproduzido nacionalmente e ganhou uma importante audiência na Região Sul.

A priorização das alianças de centro-direita tem uma violenta confirmação na luta de Serra contra Alckmin em favor da candidatura de Kassab ao governo da maior cidade do país. Ao que tudo indica, essa disputa entre Serra e Alckmin não terá um termo de conciliação fora das urnas, isto é, se desenvolverá no ambiente tumultuado e incerto das eleições paulistanas de 2008.

O controle da máquina diretiva nacional do PSDB, apenas muito parcialmente atenuado pelo fato de os apoiadores de Serra não terem vencido a disputa pela indicação da liderança do PSDB na Câmara dos Deputados contra a candidatura que uniu Aécio e Alckmin, é fundamental para um partido que praticamente não tem tradição de democracia interna. Sérgio Guerra, o presidente eleito no III Congresso Nacional do PSDB, realizado em novembro passado, é um partidário da candidatura de Serra e a secretaria-geral, que teve um nome indicado por Aécio, foi em parte esvaziada de suas atribuições.

Nas pesquisas, em grande medida artificiais, que se realizam hoje em torno de listas de candidatos potenciais à Presidência da República, Serra tem aparecido com larga margem de vantagem, oscilando em torno de 37% das preferências. Esse número provavelmente será desinflado à medida que outros nomes forem ganhando força, mas não deixa de ser um trunfo decisivo para Serra em um cenário que se define até agora pelo vazio deixado pelo fato de a candidatura de Lula, pela primeira vez nos últimos dezesseis anos, não participar das eleições presidenciais. Ele já parte de um certo patamar de nacionalização de sua candidatura em um quadro em que a possível fragmentação de alianças pode dificultar o caminho para o segundo turno.

Enfim, o liberal-desenvolvimentismo de Serra tem um importante exercício de ambigüidades no Manifesto Programa aprovado no congresso do partido em novembro. Ele se inicia com a afirmação de que o texto pretende ser apenas uma atualização do programa de fundação do PSDB, “na medida em que este permanece válido de uma maneira que nos orgulha”. De fato, ele não traz nenhum viés autocrítico, mesmo parcial ou particularizado, sobre a experiência dos governos FHC. O único momento de autocrítica em todo o texto é, como já havia escrito antes Fernando Henrique Cardoso, a admissão de que o PSDB reduziu seu diálogo com a sociedade e esteve “desatento à riqueza das manifestações culturais do povo brasileiro”.

A novidade vem nas novas ênfases do texto, que imprimem um caráter difuso a sua identidade. Enquanto muito se fala no compromisso com os pobres, o emprego e os programas sociais, mantém-se a crítica histórica do PSDB à generosidade excessiva dos constituintes de 1988, que sobrecarregaram o Estado de tais compromissos com direitos sociais, causa principal do descontrole inflacionário que se seguiu. Ao invés da palavra de ordem “menos Estado e mais mercado” que dominou os anos FHC, agora se diz conciliatoriamente “mais governo e mais mercado”. E, depois de criticar o distanciamento da política externa do governo Lula frente aos centros hegemônicos do capitalismo mundial, afirma que o PSDB é um “partido nacionalista”.

A aposta de Aécio

Sem contar com o controle da máquina nacional do PSDB e sem poder se apresentar com vantagem nas pesquisas por ter já nacionalizado seu nome em disputas eleitorais nacionais anteriores, Aécio busca construir um caminho de “conciliação nacional”, na esteira da tradição de seu avô Tancredo Neves.

A geografia é a mesma (Minas como um ponto de unidade na tradição política brasileira), o artifício político é o mesmo (utilizar toda as possibilidades que a situação de “centro” permite), mas a mensagem carece agora de substância histórica. Tancredo apresentou-se como o condutor da transição no Colégio Eleitoral do regime militar, para superar o impasse com a não aprovação das eleições diretas no Congresso Nacional. Ao fazer isso, de dentro do maior partido de oposição, o PMDB, ele conferia nitidez histórica a uma solução negociada para o “empate político” entre os que lutavam pela permanência adaptada da ditadura e os que lutavam pela democracia. Aécio quer se viabilizar apresentando-se como condutor do pós-lulismo (que se diferenciaria do antilulismo), capaz de fazer uma nova síntese histórica que se seguiria aos anos de conflito entre o PSDB e o PT.

Para ser portador dessa nova mensagem política, Aécio tem de reler a história política recente no sentido de conferir ao conflito PSDB–PT uma configuração de origem paulista não nacional e, sobretudo, em desacordo com as tradições conciliatórias de Minas), marcar permanentemente a diferença com a oposição intransigente ao governo Lula (em nome de uma “oposição construtiva”, que tem suas áreas de convergência) e buscar um diálogo com a “centro-esquerda” e a “esquerda” do espectro partidário.

A base de lançamento desse projeto audacioso é Minas, seu governo, sua tradição centrista, e a evocação do retorno do neto daquele que conduziu a maior experiência de conciliação do Brasil pós-64. O que vem ocorrendo na sucessão do governo da capital de Minas é a primeira área de teste desse caminho. O governador e o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, articulam um nome comum de um terceiro partido, o PSB, que está na base do governo Lula e do governo Aécio, com um nome “neutro”, por ser desconhecido, que tem ainda o “mérito” de ser secretário do atual governo Aécio. O prefeito do PT ganha uma senha decisiva para ser candidato ao governo com o apoio ou, pelo menos, sem a oposição do atual governador de Minas; Aécio ganha provavelmente o apoio do prefeito da capital do estado, na qual o PSDB vem perdendo eleições nos últimos dezesseis anos, para sua obra de “conciliação nacional”.

Um exame da experiência do governo Aécio não o distancia, entretanto, da tradição neoliberal, com matizes mineiros, do PSDB. Houve melhoria das contas públicas do estado, em grande medida devido aos efeitos da nova conjuntura econômica nacional: aumento do emprego e da arrecadação, taxas de juros mais baixas, impacto dos investimentos federais e da nova onda exportadora, na qual o estado tem uma posição privilegiada. Não há “déficit zero”, como diz a propaganda oficial, mas uma evolução estabilizada da dívida consolidada líquida de R$ 32,9 bilhões para R$ 41,7 bilhões entre 2002 e 2006. Se de um lado houve um crescimento de 77,1% da arrecadação tributária, de outro houve uma forte contenção dos gastos com pessoal, obtida a partir de um arrocho do funcionalismo nos três primeiros anos de sua administração.

O governo Aécio optou por não privatizar, à diferença do PSDB em São Paulo, a Cemig e a Copasa. Antes, aplicou expressivos tarifaços nessas duas empresas no início de sua estão, utilizando-as como caixa para as combalidas finanças do estado. Segundo dados do Ministério da Saúde, o governo de Minas é o segundo estado do país que menos investe em saúde. De acordo com o MEC, o rendimento médio dos professores da rede pública do estado está em 16º lugar entre as 27 unidades da Federação. Não há em relação a políticas sociais um investimento que se possa afirmar prioritário do estado. Nem mesmo a construção de relações democráticas com os movimentos sociais.

Dois caminhos e um destino

Os caminhos de Serra e Aécio coincidem no mesmo objetivo de derrotar uma coalizão liderada pelo PT ao governo do país em 2010. Em torno dessa convergência última, restam pelo menos três possibilidades.

A primeira, que, especula-se, seria a ideal para Fernando Henrique Cardoso, a chapa Serra-Aécio, com compromisso explícito ou implícito de um revezamento posterior na ordem da cabeça da chapa. Dois governadores de estados centrais do país convergiriam assim, compensando o estreitamento das alianças no primeiro turno com o protagonismo nacional dessas lideranças e se aliando, em um segundo turno, com todas as forças anti-Lula para derrotar a chapa que expressasse com maior força a continuidade de seu governo.

Até agora, Aécio parece resistir a essa possibilidade, buscando um caminho externo ao PSDB de acumulação de forças para buscar sobrepujar Serra. Especula-se, inclusive, a possibilidade de Aécio deixar o PSDB por um outro partido, nomeadamente o PMDB, para alavancar uma candidatura própria. Manobra de alto risco, a ser levada a efeito pelo menos um ano antes das eleições, com resultados dramaticamente incertos, exceto provavelmente um efeito devastador sobre as chances de vitória de Serra.

Uma terceira possibilidade seria Aécio permanecer onde está, no PSDB, impotente diante dos enormes obstáculos que tem pela frente para se viabilizar, emprestando um apoio apenas virtual a Serra em Minas e elegendo-se senador com uma candidatura de sentido suprapartidário.

O resultado das eleições municipais de 2008, atualizando a correlação de forças entre os vários partidos e lideranças, certamente ajudará a definir qual das táticas do PSDB será vitoriosa.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na Universidade Federal de Minas Gerais