Sociedade

As articulações em torno da juventude podem renovar os espaços tradicionais da política

Talvez hoje os jovens vivam de maneira mais profunda a crise de representação, mas é muito mais diversificada a face social daqueles que se mobilizam

Foto: Elza Fiúza/ABr

Em cada tempo e lugar, diferentes sociedades definem o que é “ser jovem” e o que esperar da juventude. O que dizer da juventude dos dias de hoje? Como generalizar sobre comportamentos de jovens que vivem condições sociais tão desiguais em termos de renda, cor, gênero e local de moradia? Como generalizar expectativas políticas em um tempo histórico marcado por rápidas mudanças na sociabilidade e nas formas de atuação no espaço público?

O tema é mobilizador. Medos e expectativas tensionam as relações entre gerações na vida privada e no espaço público. A juventude espelha a sociedade, com suas contradições e potencialidades.

Nostalgias e projeções

Em cada tempo e lugar são muitas as juventudes e entre elas sempre existem adesões ao estabelecido e territórios de resistências e de criatividade. Não por acaso, o cineasta francês Jean Luc Godard, em Made in USA, retratou os “filhos de Marx e da Coca-Cola”. Nos anos 1960, a juventude se tornou destinatária dos anúncios e propagandas indispensáveis na sociedade de consumo; evocou a idéia de revolução e seus ícones mais radicais, como Guevara e Mao Tsé-tung; conheceu os hippies, que pregavam “paz e amor”; produziu os primeiros yuppies, preocupados com o prazer do sucesso econômico.

A despeito dessas e de outras diferenciações presentes nos famosos anos 1960, quando falamos da “juventude de hoje” idealiza-se o passado. Os jovens de hoje são vistos como mais alienados e desinteressados em questões sociais e políticas que as gerações anteriores. Contudo, os bravos militantes estudantis dos anos 1960 não representavam estatisticamente a maioria dos jovens daquela época, até porque no Brasil, como se sabe, o acesso à vida universitária era bastante restrito. Em outras palavras, é preciso evitar comparar uma minoria do passado com a totalidade dos jovens do presente.

Tal nostalgia parece perpassar também os meios de comunicação. Nos últimos anos, pesquisas de opinião sobre percepções, valores e comportamentos eleitorais dos jovens têm sido divulgadas no Brasil 1. Para comentar resultados dessas pesquisas quantitativas, várias reportagens comparam o “desinteresse” de hoje com registros sobre a “geração 68”. Certamente, não há como comparar respostas de pesquisas, feitas por amostragem representativas, com as memórias da minoria juvenil militante do passado.

Por outro lado, é interessante notar que também raramente se faz uma comparação entre as respostas dos jovens e as respostas dadas por outras faixas etárias. No entanto, a baixa participação e a descrença na política e nos políticos aparecem como fenômenos extensivos a toda a população. A associação entre política, clientelismo e corrupção perpassa toda a sociedade. Portanto, a desqualificação da política e dos políticos feita pelos jovens está associada às percepções mais gerais que povoam a sociedade.

Buscando a especificidade da atual “condição juvenil”, é procedente indagar se os jovens vivem de maneira mais profunda a propagada “crise de representação". Talvez sim. Mas, nesse caso, seria preciso refletir sobre como as mudanças gerais no campo político repercutem em suas diferenciadas trajetórias de vida. Ou seja, também é preciso indagar sobre o que pode haver de novo nas experiências de diferentes segmentos juvenis.

Como lembra Helena Abramo, atualmente é muito mais diversificada a face social dos jovens que se mobilizam: se até os anos 1970 os atores juvenis estavam restritos aos jovens estudantes de classe média, hoje várias dessas formas de movimentação que vemos surgir se fazem entre jovens dos mais distintos segmentos sociais. De fato, nos setores populares urbanos e também no âmbito de alguns movimentos que congregam jovens rurais, proliferam hoje grupos ecológicos, musicais, esportivos, de distintas correntes religiosas cujas ações imediatas visam transformar as chamadas “comunidades locais”. Esses grupos, cada vez mais, se conectam em espaços geograficamente mais amplos seja para realizar intercâmbios artísticos, culturais e de experiências de ação social; seja para participar de mobilizações ligadas às suas áreas de atuação; seja para participar de campanhas e ações ligadas a interesses/direitos mais amplos da sociedade em que vivem. Surgem assim novos pertencimentos sociais que permitem expressar descontentamentos, fazer denúncias e elaborar caminhos de participação.

Novas combinações temáticas e formas organizacionais têm se traduzido em disposições éticas e ações concretas em diferentes espaços dos quais jovens participam.

Portanto, antes de descartar tais grupos juvenis considerando-os como“meramente” artísticos, místicos ou assistencialistas, é necessário conhecer melhor sua atuação no espaço público e atentar para os efeitos políticos de suas práticas sociais.

Em resumo, hoje o movimento estudantil já não é o único e mais legítimo porta-voz da juventude nem a vida política se resume aos sindicatos e partidos. Isso não significa decretar a decadência do movimento estudantil ou a fraqueza das juventudes partidárias e dos departamentos juvenis das organizações sindicais. É verdade que, uma vez mais, faltam estatísticas e séries históricas que permitam comprovar ou questionar qualquer comparação quantitativa entre tais militâncias no decorrer do tempo. Mas é importante atentar para as influências mútuas entre aqueles que atuam a partir dos lugares clássicos da política e os grupos culturais, religiosos, esportivos, ambientalistas, de direitos humanos, de voluntariado etc.

Observa-se na construção do espaço público – em campanhas temáticas e, em particular, na formação de conselhos e outros espaços de expressão de interesses de jovens – a convivência entre diferentes formas de participação. Sem dúvida, essa “convivência” nem sempre é pacífica. Em muitos momentos, há concorrências (não só ideológicas, mas também de finalidade e estilo) entre grupos, em que uns se posicionam em relação aos outros se desqualificando mutuamente. Em geral, no momento das disputas, os organizados são chamados de “manipuladores” e os jovens de outros grupos religiosos, artísticos, de ONGs são chamados de “despolitizados”.

Porém, se atentarmos para a história de vida dos jovens, percebemos que tais fronteiras hoje são bem menos rígidas do que à primeira vista podem parecer. Na trajetória deles,há passagens de um tipo de grupo para outro e também participações simultâneas. Por exemplo, há jovens que começaram como beneficiários de projetos sociais e hoje fazem parte de juventudes partidárias, assim como há jovens de ONGs ambientalistas ou de militância pela livre orientação sexual que se formaram em grupos da Igreja Católica e já pertenceram à juventude partidária. Também há surpreendentes pertencimentos simultâneos, tais como: um jovem negro que é filiado ao PT, pertence à Assembléia de Deus, grupo evangélico pentecostal, e, por intermédio de uma ONG, participa de uma rede voltada para as raízes da “diáspora africana”. Há jovens que atuam em sindicatos e em partidos políticos e fazem parte do movimento hip-hop. Em “redes virtuais de jovens” há diferentes grupos étnicos, movimentos sociais e grupos de jovens patrocinados por fundações empresariais... Enfim, são várias as combinações em torno de causas mais gerais e de projetos concretos ou ações de curto prazo, visando resultados palpáveis e tangíveis.

Desse prisma, as articulações em torno da juventude oferecem uma oportunidade de renovação dos espaços tradicionais da política. O que se observa é que as organizações juvenis “mais clássicas”, que muitas vezes sofrem de problemas de distanciamento das bases, de representatividade e inovação na linguagem e formas de atuação, tem se esforçado para incorporar em sua agenda novos temas,formas de  mobilização, consignas e bandeiras de luta. Ou seja, ao invés de comparar gerações de “jovens organizados”, é preciso comparar as mudanças nas sociedades em que estão tais organizações.

Utopias e novas tecnologias

As conquistas tecnológicas modificam a comunicação, a socialização, a “visão do tamanho do mundo”. Os jovens incorporaram os meios digitais em seu cotidiano de tal forma que – sempre navegando – parecem estar cada vez mais descolados do mundo real, alheios a seus problemas e suas injustiças. Mas isso não é tudo.

É preciso reconhecer que não há hoje participação social que não tenha algum grau de dependência das novas tecnologias de informação e comunicação. A despeito de todas as desigualdades de acesso e diferenças de uso, a existência da internet não pode ser desconsiderada na análise da participação juvenil. Sem dúvida, estamos longe de uma “democracia de informações”. No entanto, as novas tecnologias não só se fazem presentes nos espaços de agregação juvenil historicamente constituídos (movimento estudantil, grupos associativos, políticos e religiosos) como também contribuem para a formação de grupos de novo tipo.

A propagação veloz de certos símbolos e valores, pelos mais diversos países, permite a jovens – de diferentes condições sociais e de diferentes locais do mundo – partilhar, de alguma forma, um mesmo universo de referência. No dia-a-dia não é impossível que grupos de jovens bem distantes socialmente tenham acesso às mesmas informações.

Por exemplo, no início do século 21, ocorreu um grande boom de sites sobre hip-hop pelo mundo. Além de divulgar trabalhos artísticos, esse expediente é visto como uma forma de escoar e fazer circular a “cultura hip-hop”, com suas convicções e crenças, em suas manifestações de rap, break e grafite. Existem portais mais abrangentes nos quais a mensagem da primeira página está sempre relacionada à origem urbana e periférica do hip-hop e seu poder de transformação social; existem sites voltados para grupos específicos, que destacam sua origem e idéias “combativas”, com “atitude”, em geral críticas à sociedade branca e excludente; existem sites de projetos sociais que utilizam o hip-hop como metodologia de trabalho para intervir na sociedade. Em todos os casos, o meio digital é fundamental para a relação entre a experiência local e a identidade que a ultrapassa.

Não por acaso, na interface entre as desejadas melhorias do sistema escolar e a qualificação voltada para a inserção produtiva surge a demanda por inclusão digital. No âmbito da participação social de jovens, as novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs) se tornam instrumentos úteis para a circulação de informações sobre vários temas e causas e, ao mesmo tempo, alimentam novas bandeiras de luta. Esse é o caso do envolvimento de grupos de jovens em defesa do software livre (programa de código aberto), que significa liberdade para executar, copiar, distribuir, estudar, modificar e aperfeiçoar programas.

Desse modo, os expedientes virtuais, vinculados às novas tecnologias de informação, nem sempre afastam os jovens do mundo real. Relativizando tal generalização, a recente pesquisa Juventude e Integração da América do Sul, coordenada pelo Ibase/Polis2, com cerca de 850 entrevistados em seis países da América do Sul, destacou o uso recente das novas tecnologias de informação e comunicação. Tais como: assembléias pela internet; blogs, fotologs, páginas pessoais, fóruns de discussão com temas específicos; torpedos de celular para comunicação entre participantes; celulares usados para registro de manifestações, entre outras. Instrumentos de organização, de registro de atividades, de disseminação das demandas e mobilização, tais tecnologias foram citadas entre os jovens organizados que – em moldes contemporâneos – reinventam utopias (compreendidas como sonhos mobilizadores) por meio de inéditas conjugações entre demandas imediatas e questões mais gerais, normalmente amalgamadas por idéias de direitos humanos e de ecologia.

É possível uma agenda comum?

Determinados conceitos e preconceitos são sempre acionados – consciente ou inconscientemente– para falar sobre a juventude. Tratar a “juventude atual” ou “a juventude brasileira” como uma “unidade social” é o expediente mais usual para generalizações apressadas. Ao pensara juventude como uma faixa etária “objetivamente” definida, como um grupo naturalmente constituído com“problemas e interesses comuns”, tanto se deixa de considerar a existência de desigualdades econômicas, de diferenças, raciais, étnicas, de relações de gênero, de local de moradia, quanto se desconsideram importantes características do mundo contemporâneo.

Em tempos de exacerbada tensão entre o local e o global, aprofundam-se as transformações no mercado de trabalho e os fenômenos relacionados com a violência, que atingem de maneira particular os jovens. Sem dúvida, são os jovens mais pobres os mais atingidos pelo processo de desestruturação/flexibilização/precarização das relações de trabalho e também os que mais freqüentam as estatísticas de mortes violentas. Mas uma das características deste nosso tempo é que os jovens de diferentes classes sociais partilham alguns sentimentos e temores comuns.

Frente a um mundo do trabalho restritivo e mutante, com precarização das condições trabalhistas, desemprego, concentração fundiária, rápidas mudanças tecnológicas e discriminações ditadas pelo fato de serem jovens, dissemina-se o “medo de sobrar”. Frente à perversa combinação entre proliferação de armas de fogo, territórios dominados por traficantes de drogas e a corrupção das polícias, despreparadas para lidar com a juventude, espalha-se o “medo de morrer” prematuramente e de forma violenta.

Nesse cenário de incertezas, para assegurar sua inserção social, os jovens entrevistados na já citada pesquisa Juventude e Integração da América do Sul destacam seis demandas:

1. acesso à educação de qualidade (professores preparados e currículos mais condizentes com a realidade atual), com maior flexibilidade (necessidade de calendários adaptados para combinar trabalho e estudo nas cidades e na área rural) e com garantia de continuidade educativa (secundária, técnico-profissional, universitária);

2.oportunidades de “trabalho decente” e criativo, que assegure remuneração condizente e direitos trabalhistas e abra espaços para novas ocupações na área da cultura, da agroecologia, das ocupações  sociais que permitem aliar inserção produtiva (individual ou em grupo) e valores;

3. acesso à fruição e produção cultural como um direito dos jovens, os quais, em geral, não têm recursos seja para produzir artisticamente, seja para escolher como usar o tempo livre, seja para ter acesso ao patrimônio cultural material e imaterial de seu país;

4. acesso ao transporte subsidiado como direito à circulação na cidade, e entre a cidade e o campo, visto como condição para o exercício de outros direitos fundamentais, como educação, trabalho, cultura e lazer;

5. condições para uma vida segura por meio da valorização da diversidade e respeito aos direitos humanos para reverter ações violentas dos traficantes e das polícias, assim como preconceitos e discriminações (étnicas, de gênero, por local de moradia), que sempre tornam os jovens os principais suspeitos;

6. viabilização de pactos societários em busca de sustentabilidade socioambiental, em torno da ecologia desenham-se diversas ações coletivas e inéditas, possibilidades de articulação intergeracional e entre jovens de classes sociais diferentes, urbanos e rurais.

No processo de construção dessa agenda comum, são imprescindíveis os diálogos entre diferentes gerações e entre variados segmentos juvenis. Trata-se de uma inédita oportunidade de forjar um novo ponto de vista democrático que permita conjugar o particular com o universal; economia e cultura; ética universal e valorização da diversidade; escolhas individuais e coletivas. O que pode favorecer a (re)construção de utopias menos dicotômicas do que aquelas que povoaram os sonhos de gerações passadas.

Regina Novaes é antropóloga, pesquisadora do CNPq e consultora do Ibase