Economia

Com grande significado histórico, Brasil passa de devedor do estrangeiro a credor. Total registrado da dívida brasileira agora é menor que as reservas cambiais

A dívida externa voltou às manchetes, agora não porque esteja em crise, mas pelo contrário, porque pela primeira vez na história brasileira ela teria sido “paga”. Ou seja, em vez de o Brasil ser devedor do estrangeiro, a partir de agora é este que nos deve. Essa reviravolta sem dúvida tem significado histórico, mas para captá-lo é necessário entender como essa dívida é feita e paga e, sobretudo, como ela se relaciona com a inserção econômica do país no mundo.

O que chamamos de dívida externa é a soma das dívidas de residentes no Brasil – governo nacional, governos estaduais e municipais, instituições financeiras e empresas nacionais e estrangeiras (desde que sediadas aqui) – contraídas com residentes no resto do mundo. Quando a mídia anuncia que o Brasil não está honrando sua dívida externa, o leitor comum é capaz de pensar que ele faz parte dum povo de caloteiros. Não é nada disso. As entidades que tomaram empréstimos de não-residentes é que são responsáveis pelo pagamento dos juros e do principal nos prazos contratados. Os demais brasileiros, que são a grande maioria, nunca transacionaram com não-residentes e, portanto, nada têm a ver com isso.

É preciso distinguir na dívida externa duas partes: a que é de responsabilidade de entes privados e a que é de responsabilidade do poder público. Esta última é que de alguma forma nos atinge, como cidadãos que elegem os governos que fizeram as dívidas. A dívida externa pública é um compromisso do Estado, mas (no caso brasileiro) apenas no que se refere ao fornecimento da moeda forte em que ela deve ser servida. Se o governo brasileiro pudesse pagar suas dívidas a estrangeiros em moeda nacional, em momento algum haveria dificuldade em fazê-lo, pois reais (assim como cruzeiros no passado) são emitidos pelo governo brasileiro nas quantidades necessárias.

Acontece que as transações comerciais e financeiras internacionais são feitas com moeda forte: euro, dólar, iene, libra, franco suíço e poucos mais. Essas moedas são “fortes” porque, emitidas pelas maiores economias do mundo, gozam da confiança do mundo empresarial e financeiro. O Brasil faz parte da grande maioria de países cuja moeda não é aceita fora de suas fronteiras, e por isso é obrigado a ter reservas em dólares, euros e outras moedas para poder cumprir seus compromissos financeiros. As reservas cambiais são guardadas e geridas pelo Banco Central e, sendo compostas por dólares, euros etc., constituem dívidas que os países emissores – Estados Unidos, União Européia – contraíram com o Brasil.

O que aconteceu no começo do ano é que o total registrado da dívida externa brasileira passou a ser menor que as reservas cambiais. Em junho de 2007 a dívida externa era de US$ 196 bilhões e as reservas, US$ 147 bilhões. Em dezembro a dívida externa subiu a US$ 198 bilhões e as reservas a US$ 180 bilhões. Mantida a tendência de acelerada acumulação de reservas e de quase nenhum crescimento da dívida externa, em 2008 fatalmente as reservas em moeda forte superariam o valor da dívida externa. Como realmente aconteceu. Mas o que significa isso? Para discutir os detalhes é imprescindível fazer um recuo histórico.

Desde sua descoberta, o Brasil tem sido um país atrasado em relação aos países que lideravam o progresso da economia mundial: a Grã-Bretanha no século 19 e os Estados Unidos no século 20. As classes endinheiradas ansiavam por comprar bens produzidos no “Primeiro Mundo” tanto para consumir como para utilizar como meios de produção de artigos equivalentes aos importados. Por isso, desenvolveu-se no Brasil – como em muitos outros países atrasados – grande fome por libras, dólares e outras moedas fortes.

O Brasil aplacava essa fome exportando produtos primários, basicamente café, algodão, borracha e semelhantes, aos países adiantados. Em princípio, o montante de receitas em moeda forte deveria ser mais que suficiente para saciar a fome de libras, dólares etc., mas eventos bélicos (desde a Guerra da Independência e as guerras civis travadas durante a Regência) e projetos de construção de modernas redes de transporte, energia, saneamento etc. resultaram em crescente endividamento externo do país. De meados do século 19 em diante, o Brasil exportava mais do que importava, sendo a diferença usada para servir a dívida externa, que em geral tendia a aumentar. Quando, por efeito das flutuações conjunturais nos países clientes, os preços de nossas exportações caíam, as reservas cambiais se evaporavam e o serviço da dívida externa tinha de ser suspenso. Isso aconteceu diversas vezes durante a República Velha e sobretudo na grande crise dos anos 1930. Sempre que o serviço da dívida externa era suspenso, o governo restringia o crédito e o gasto público para estrangular a demanda por importados,o que ocasionava recessão, com muito sofrimento para a população.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os países adiantados envolvidos no conflito não pagaram as exportações brasileiras, porque sua produção estava comprometida com o esforço de guerra. Portanto, entre 1939 e 1945 o Brasil foi credor da Grã-Bretanha e de outros países europeus, de modo que não é bem verdade que agora seja a primeira vez que isso acontece. Terminada a guerra, o governo brasileiro gastou os créditos acumulados comprando dos ingleses ferrovias e dos EUA equipamentos e também bens de consumo.

Nas décadas seguintes, o Brasil acelerou sua industrialização e sua urbanização, o que exigiu a entrada avultada de capitais estrangeiros, parte sob a forma de investimentos de multinacionais e parte sob a forma de empréstimos. Como a demanda por nossas exportações não crescia no mesmo ritmo que nossas importações e as remessas de lucros das empresas estrangeiras, crises da dívida externa se tornaram comuns. No fim do mandato de Juscelino Kubitschek, o estrangulamento externo provocou uma crise inflacionária que contribuiu para a derrubada do governo de João Goulart pelos militares.

Ainda durante o regime militar, o Brasil foi um dos países atingidos pela crise internacional do endividamento externo, em 1982, ocasionando a efetiva paralisação do crescimento por anos e a exacerbação inflacionária, só superada doze anos depois pelo Plano Real. Os sofrimentos causados pelo desemprego em massa e o fracasso de sucessivos planos de estabilização gravaram na consciência popular que o pagamento do serviço da dívida externa era a causa primordial de todos os males. Como no início dos anos 1980 a política do Banco Central dos EUA elevou fortemente os juros das dívidas dos países menos desenvolvidos, o que desencadeou a crise, a luta contra o pagamento das dívidas externas se tornou uma das bandeiras mais importantes do movimento popular.

Nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso, a estabilização dos preços foi alcançada pela manutenção da taxa de câmbio em nível baixo, com forte valorização do real. O Brasil passou a importar mais do que exportava e financiava o déficit da balança comercial por meio do endividamento externo em grande escala. A dívida externa era de US$ 148,3 bilhões em 1994 e estava em US$ 210,7 bilhões quando FHC passou o governo a Lula, em 2002. Seu maior valor foi atingido em 1998, US$ 223,8 bilhões. Nessa ocasião, uma crise financeira na Rússia provocou gigantesca fuga de capitais do Brasil, da qual resultou forte recessão aqui. FHC mudou o comando do Banco Central e desvalorizou o real no começo de seu segundo governo, em 1999. Com isso, logrou reduzir o déficit da balança comercial e reverteu o inchaço desastroso do endividamento externo.

O governo do presidente Lula manteve o modelo de câmbio flutuante com metas de inflação. Apesar de sofrer fuga de capitais em 2003, começou a baixar os juros e a implantar programas de redistribuição de renda de grande impacto. Com isso, a economia voltou a crescer. Os lucros dos bancos e das grandes empresas tiveram notável expansão, o que, junto com uma taxa de juros bem acima da vigorante no Primeiro Mundo, atraiu para cá uma enxurrada de capitais especulativos. A torrente de moeda forte fez com que o real se valorizasse continuamente, o que limitou o crescimento das exportações e ocasionou verdadeira explosão de importações nos últimos anos.

Para impedir que a valorização de nossa moeda se acentuasse, o Banco Central expandiu fortemente nossas reservas de moeda forte, ou seja, aumentou a dívida dos países emissores de dólar e euro – EUA e União Européia – para conosco. O resultado está sendo o que seria de esperar: o capital especulativo entra no Brasil como investimento em carteira e os dólares que ele aqui converte em reais reforçam as reservas cambiais. Em outras palavras, a forma como esses fluxos são contabilizados cria um efeito algo ilusório. A soma da dívida externa com o capital estrangeiro investido no país constitui o que chamamos de “passivo externo”, que pode a qualquer momento ser retirado do Brasil. O passivo externo, portanto, cresce junto com as reservas cambiais.

A crise financeira nos EUA provoca fortes idas e vindas do capital especulativo global ao Brasil, tornando o mercado financeiro brasileiro tão instável quanto o dos demais países que também não regulam a movimentação do próprio mercado. Isso significa que o Brasil será ora credor, ora devedor do resto do mundo. Não há dúvida de que a extrema fragilidade externa produzida pela primeira fase do Plano Real foi por enquanto superada e o robusto crescimento da economia nos últimos anos deve ser atribuído também à política de aproximação do Brasil com outros países da América do Sul, Ásia e África. Não obstante tudo isso, para que o Estado brasileiro ganhe autonomia para praticar políticas econômicas, fiscais e financeiras consistentes com suas políticas sociais, será imprescindível proteger-se das crises financeiras que a globalização neoliberal não cessa de provocar.

Paul Singer é economista, secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego