Internacional

Os recursos da exploração de petróleo poderiam ser usados na criação de um fundo para os 30 milhões de habitantes

A idéia de ir ao Iraque para apresentar o projeto da renda básica surgiu em abril de 2003, logo após a nomeação do brasileiro Sérgio Vieira de Mello como representante das Nações Unidas no Iraque. Na época, escrevi-lhe sugerindo que apresentasse a proposta aos iraquianos para que eles pudessem seguir o exemplo do Sistema de Dividendos do Fundo Permanente do Alasca, pioneiro e bem-sucedido caso de Renda Básica de Cidadania. Com as grandes reservas de petróleo do país, o Iraque poderia trilhar esse caminho. Sérgio Vieira de Mello considerou positiva a proposta e disse que a encaminharia às autoridades administrativas iraquianas. Mas infelizmente, com o atentado que o vitimou em agosto daquele ano, o projeto não pôde ser apresentado, muito embora, em junho, na Cúpula de Reconciliação de Chefes de Estado de Amã, o embaixador J. Paul Bremer III, à frente do Iraque após a queda de Saddam Hussein, tenha dito aos iraquianos que eles poderiam seguir o exemplo do Alasca, de tal forma que todos pudessem participar da riqueza da nação.

De 2003 até hoje a idéia foi amadurecendo, vários contatos foram feitos por mim e pelo presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil Iraque, Jalal Jamel Dawood Chaya. Inicialmente eu deveria ter ido em abril de 2007, atendendo a convite do presidente da Assembléia Nacional do Iraque. Mas fui persuadido a não ir, na época, pelo ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, e pelo secretário executivo, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que estavam preocupados com minha segurança. Mesmo na chamada “Área Verde” de Bagdá, sob o controle das forças de segurança de elite, a situação não era considerada segura.

Em outubro de 2007, o embaixador brasileiro no Iraque, Bernardo de Azevedo Brito, que por motivos de segurança trabalha em Amã, capital da Jordânia, disse-me que acabara de voltar de uma viagem de três dias a Bagdá e a situação em geral havia melhorado significativamente. Em vista disso, ele estava pronto a me acompanhar em uma visita oficial ao Iraque. Na ocasião, eu poderia contar com o apoio do governo brasileiro, que contrataria os serviços de uma empresa inglesa de segurança durante toda a nossa permanência no Iraque e até nosso retorno a Amã.

Eu estava convicto de que seria uma das mais significativas viagens dos meus 66 anos de vida. Estava convencido de que o Iraque poderia implementar efetivamente a Renda Básica de Cidadania incondicional aos seus 30 milhões de habitantes, com o objetivo de pacifi car a nação depois de muitos anos de guerra, violência e mortes, e portanto valeria a pena enfrentar o desafio. Senti-me honrado pelo convite feito pelo presidente da Assembléia Nacional do Iraque, Mahmoud Dawud al-Mashhadani – eleito em 22 de abril de 2006 para a presidência, com 159 votos contra 97 e 10 abstenções, como parte da lista da Frente de Acordo Sunita –, para esclarecer-lhes sobre como os iraquianos têm todas as condições para introduzir esse instrumento de política econômica.

Assim sendo, viajamos em janeiro. Chegamos ao aeroporto de Bagdá por volta das 10 da manhã do dia 16 e, de imediato, fomos cercados por seis seguranças com armas de fogo semiautomáticas. Eles já tinham feito uma varredura em todos os lugares do grande saguão do aeroporto. Para percorrer o caminho até a Zona Verde de Bagdá, vestimos capacetes e coletes à prova de balas. No lugar onde fomos acomodados, cada quarto, muito simples, estava protegido contra potenciais morteiros – havia pilhas de sacos de areia nas janelas e sobre os telhados.

Dois conterrâneos estavam no mesmo vôo desde o Brasil: Nawfal Assa Mossa Alssabak, vice-presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil Iraque, um iraquiano residente no Brasil desde a década de 80, que serviu de intérprete em várias ocasiões; e Sergio Kalili, jornalista independente que fi lmou todos os eventos importantes da viagem. De Amã a Bagdá, o embaixador também estava acompanhado de dois membros da equipe da Embaixada brasileira, Safana Sallooum e Valdir Guimarães.

Um fato me impressionou muito. Alssabak, nascido em Bagdá mas há muito residindo no exterior, que voltava à sua cidade natal pela primeira vez, se disse muito desapontado. Mesmo tendo viajado e conhecido várias cidades da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina, ele considerava Bagdá a cidade mais bonita do mundo. Agora, porém, não reconhecia mais as redondezas; em cada rua e avenida, e especialmente na Área Verde, que eu também vi, a mesma cena: muros de concreto com cerca de 3 a 5 metros de altura, algumas vezes cobertos de cercas de arame, impedem a vista da cidade. Na entrada dos prédios, especialmente nos destinados às atividades oficiais, sempre uma grande porta de aço, que se abre diante da presença de guardas de segurança. Entendi isso como um sinal da divisão que hoje marca o Iraque. E tudo isso me trouxe à mente que, nesta sociedade tão separada, os iraquianos estão gastando muito dinheiro para construir muros e aparatos de segurança, que com certeza não serão mais necessários quando o princípio de justiça e de solidariedade se tornar uma realidade nessa nação.

O primeiro encontro foi com o representante especial da Secretaria-Geral das Nações Unidas para o Iraque, Staff an de Mistura – um ítalo-sueco que ocupa a vaga deixada pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Antes de sair de São Paulo, conversei com Carolina Larriera, a viúva de Sérgio, que também trabalhava no escritório da ONU quando um caminhão explodiu a poucos metros do prédio, em 19 de agosto de 2003, matando 22 pessoas. Carolina me pediu que levasse um pouco de terra do Brasil para espalhar no local do atentado. Lamentavelmente, a construção se localiza fora da Zona Verde. Não tive como atendê-la.

De Mistura contou que toda a equipe das Nações Unidas admirava os esforços de Sérgio em favor da paz. Ele nos levou ao local onde há uma placa em homenagem a sua memória. Deixei lá um exemplar do meu livro: Renda Básica de Cidadania. A Resposta Dada pelo Vento (L&PM, 2006).

O segundo encontro se deu com o presidente da Comissão Consultiva do primeiro-ministro, Thamir A. Ghadhban, que também foi ministro do Petróleo. Expliquei-lhe como o Iraque poderia seguir o exemplo do Alasca, que separou 50% dos royalties provenientes da exploração dos recursos naturais para criar um fundo permanente que pertence a todos os habitantes. Ele me apresentou mais razões para fazêlo: o país havia ultrapassado a Arábia Saudita e ocupava agora a primeiro lugar do mundo em reservas conhecidas de petróleo.

Na conversa com o ministro do Planejamento, Ali Ghalib Baban, homem-chave na elaboração de políticas para o futuro, expliquei a racionalidade de uma renda básica, seus fundamentos, e por que os economistas, filósofos e cientistas sociais do mais largo espectro são favoráveis à idéia. Contei também sobre a experiência do Alasca, que desde o início dos anos 80 aplicou os recursos do fundo em títulos dos EUA, ações das empresas do Alasca, das empresas americanas e internacionais e em investimentos imobiliários. O Fundo Permanente do Alasca aumentou, de lá para cá, de US$ 1 bilhão para cerca de US$ 40 bilhões. Cada morador do Alasca, desde que resida por um ano ou mais – hoje são cerca de 700 mil –, tem o direito de receber um dividendo igual, que evoluiu de cerca de US$ 300, no início da década de 80, para US$ 1.654 por ano, per capita, em 2007. Esse sistema fez do estado o mais igualitário dos cinqüenta estados americanos. Em 1976, quando o Alasca tinha 300 mil habitantes, foi realizado um referendo sobre a idéia: 76 mil votaram “sim” e 38 mil votaram “não”. Hoje, com base no que pude observar pessoalmente em 1995 – quando visitei o estado durante sete dias – e a partir das considerações do professor Scott Goldsmith, da Universidade do Alasca, em sua palestra na Conferência da Bien em 2002, seria um suicídio político para qualquer líder naquele estado americano propor o fim do Sistema de Dividendos.

O ministro explicou então como o Iraque tem analisado as diversas experiências dos principais países produtores de petróleo. Mas, devido à destruição causada pela guerra, boa parte dos recursos tem sido destinada à reconstrução – inclusive dos próprios mecanismos de extração do petróleo.

O ex-primeiro-ministro e líder da coalizão principal do Conselho de Representantes do Iraque, Ibrahim al-Jaafari, nos recebeu para uma conferência e um jantar em sua casa. Havia mais de quarenta autoridades presentes. Tive a palavra por cerca de 50 minutos, o
sufi ciente para explicar as vantagens da proposta da Renda Básica na promoção do senso de solidariedade entre xiitas, sunitas, curdos, cristãos, judeus e outros grupos. Enfatizei que tudo estaria em acordo com o Alcorão e com os escritos de seus seguidores e que os ensinamentos dos princípios da justiça e igualdade no Islã são similares àqueles do cristianismo.

Ao grupo falei sobre como se desenvolveram no Brasil o programa Bolsa Família e outros que o precederam desde os anos 1990. Ao final, comentei ter lido uma entrevista do técnico Jorvan Vieira, brasileiro que dirige a seleção nacional de futebol do Iraque, campeã dos Jogos Asiáticos de 2006. Jorvan disse que, no começo, foi difícil para os xiitas passar a bola para os sunitas. Mas, a partir do momento em que ele conseguiu harmonizar o grupo, o time não perdeu mais. Antes de embarcar para o Iraque, pedi a Pelé que autografasse duas camisetas: uma do Santos e outra da seleção brasileira. Dei a camisa do Santos para Jaafari.

No dia 17 de janeiro, fomos recebidos na residência do presidente do Conselho de Representantes, Mahmud al-Mashhadani. Ele usava a tradicional vestimenta árabe, e justifi cou a escolha de me receber em casa porque, como brasileiro, eu era o exemplo de uma sociedade na qual pessoas de diferentes origens podem viver em harmonia. Dei-lhe a camiseta da seleção brasileira com a mensagem do Pelé, “Desejo Paz para o Iraque”, e o DVD Pelé Eterno, produzido por Anibal Massaini. Mais uma vez fi z o paralelo de como seria importante os jogadores de um time harmonizarem seu comportamento e de como a Renda Básica poderia ajudar todos os povos a viver com solidariedade, com base na aplicação dos princípios de justiça e da renda de cidadania incondicional.

Mas a Renda Básica de Cidadania seria paga a todos os cidadãos, incluindo o presidente Mashhadani do Iraque, o Pelé, o senador Suplicy e os mais bem-sucedidos empresários no Iraque e no Brasil? “Sim”, respondi. “Mas por quê”, continuou ele, “se não a necessitamos para nossa sobrevivência?” Expliquei que estaríamos contribuindo relativamente mais para nós mesmos e para que todos na sociedade pudessem receber a Renda Básica de Cidadania.

Quais são as vantagens de sua implementação? A eliminação da burocracia envolvida para saber quanto a pessoa está recebendo no mercado formal ou informal e, com isso, também o fim do estigma de sentir vergonha de ter de dizer: “Só ganho isso, portanto preciso de uma renda complementar”. Também acaba o fenômeno da dependência que resulta de um sistema que estabelece que alguém só receberia um complemento de renda se sua renda não atingisse determinado nível. Daí a pessoa avaliaria que, ao aceitar algum trabalho, iria perder o que o governo estava lhe dando naquele programa, e poderia decidir que não mais iria trabalhar, o que produziria a armadilha do desemprego ou da pobreza. Principalmente, do ponto de vista da dignidade e da liberdade do ser humano, seria bem melhor saber de antemão que no próximo período, e mais e mais, com o progresso da nação, todos os membros de sua família receberão uma renda básica como um direito de participar da riqueza da nação. Uma vez mais, tentei explicar-lhe como o Iraque estava numa posição excelente para seguir o exemplo do Alasca e usar os recursos provenientes da exploração do petróleo para criar um fundo que pertencerá a todos os 30 milhões de iraquianos.

Contei ao presidente Mashhadani sobre o discurso que fiz no Senado brasileiro, em setembro de 2002, quando o governo dos Estados Unidos ameaçava atacar o Iraque. No pronunciamento, pedi ao presidente George Bush que prestasse atenção às recomendações de Martin Luther King Jr.: nunca deveríamos beber do cálice da violência, do ódio, da vingança e da guerra; deveríamos sempre enfrentar a força física com a força da alma. Depois, pedi-lhe permissão para cantar a canção de Bob Dylan com a qual concluí aquele meu discurso: “How many roads must a man walk down...” E dei-lhe a camisa da seleção: “Desejo Paz para o Iraque, Pelé”.

Nosso último encontro foi com o ministro de Relações Exteriores, Hoshyar Zebari, e com o vice-chanceler Labeed M. Abbawi. Eles expressaram o quanto estavam felizes em receber um senador brasileiro e que gostariam muito de incrementar as relações entre o Brasil e o Iraque em todos os campos. De fato, o ministro de Comércio do Iraque é esperado para visitar o Brasil em breve.

O embaixador Bernardo de Azevedo Brito disse-me que considerou nossa jornada muito produtiva, apesar de ter sido abreviada. Ele continua trabalhando nos assuntos decorrentes de nossas conversas com as autoridades iraquianas. O presidente da Comissão de Reconstrução, Economia e Investimentos foi visitá-lo na semana seguinte à nossa viagem, em Amã. O presidente e o vice-presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil Iraque, Jalal Jamel Dawood Chaya e Nawfal Assa Mossa Alssabak, consideraram a viagem “um grande sucesso, com excelente repercussão em todo o Iraque, e real interesse de várias partes na aproximação de ambos os países”, como expressaram em carta de 30 de janeiro de 2008.

Não vi nenhuma ameaça ou sinal de violência durante o tempo em que permanecemos em Bagdá. De qualquer forma, é importante mencionar que a imprensa iraquiana registrou em 18 de janeiro que, um dia antes da recepção na residência de Ibrahim al-Jaafari, dois morteiros caíram a um quilometro de distância daquele local. Também, na semana seguinte, infelizmente, devido à ação de duas mulheres suicidas, duas bombas explodiram no mercado popular de Bagdá, matando 73 pessoas e ferindo mais de cem. Ouvi dos iraquianos que, em geral, os responsáveis por esses ataques violentos sabem exatamente quem pretendem atingir e que tais ataques são bastante precisos. Eu poderia ser considerado otimista, mas estava certo de que não seria alvo de nenhum tipo de violência, pois o motivo da minha viagem foi exatamente propor um instrumento que contribua para maior justiça naquela nação.

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador da República pelo PT-SP