Internacional

Eleito em 2002 e fortemente apoiado pelo governo Bush, o presidente colombiano tenta extinguir a insurgência e acabar com o conflito usando mais violência

Na segunda metade do século 20 ocorreram movimentos revolucionários armados em quase todos os países da América Latina. Apenas dois levaram à conquista do poder, a Revolução Cubana em 1959 e a Revolução Sandinista em 1979. Os demais não alcançaram seus objetivos militarmente e quase todos deram continuidade à ação política pela via eleitoral.

No entanto, ainda se encontram guerrilhas em atividade em dois países. No México, nos estados de Chiapas e Guerrero, e na Colômbia, onde persiste uma insurgência que remonta à guerra civil de 1948 a 1953, quando adeptos do Partido Liberal e do Partido Conservador disputaram a hegemonia econômica e política do país, dando origem às futuras Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército Popular (Farc-EP). Estas se apresentaram como tal a partir de 1964 influenciadas pelas teses decorrentes da Revolução Cubana, além de outros grupos como o Exército de Libertação Nacional (ELN), o Exército Popular de Libertação (EPL) e o Movimento Revolucionário 19 de Abril (M-19).

Ao contrário de outros países onde a esquerda foi massacrada pelas ditaduras militares ao longo das décadas de 1960 e 1970, na Colômbia os diferentes grupos insurgentes se estabeleceram sob um regime democrático formal em que as eleições presidenciais ocorriam a cada quatro anos, até a mudança constitucional promovida pelo atual presidente Álvaro Uribe, para possibilitar sua reeleição.

Na década de 1980 houve iniciativas governamentais para integrar os diferentes grupos à atividade política eleitoral. O M-19 abandonou a luta armada no fi nal dos anos 1980 e criou um partido político e o EPL o seguiu um pouco depois. As Farc mantiveram a guerrilha mobilizada, mas organizaram um braço político, Unión Patriótica (UP), para participar da eleição presidencial de 1990. Porém, quase 2 mil militantes de esquerda, inclusive dois candidatos presidenciais da UP, foram assassinados nesse período, o que desestimulou as Farc e o ELN a abandonar a luta armada.

As conseqüências da violência generalizada desde os anos 1990 foram trágicas. Mais de 4 milhões de colombianos se refugiaram nas grandes cidades, há cerca de 15 mil desaparecidos e se contabilizam 5 mil assassinatos, a metade deles de sindicalistas. Os algozes foram principalmente os paramilitares das Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), que ampliaram sua força nesse período, mas há também muitas vítimas das ações das Forças Armadas, bem como das próprias Farc. Os recursos provenientes do narcotráfico contribuíram para ampliar a estrutura e a quantidade de armamentos de todos os grupos, fosse por intermédio da ligação entre traficantes e paramilitares, fosse pelos “impostos” cobrados pelas Farc sobre as plantações de coca, como afirmou o comandante Raul Reyes, recentemente morto pelas Forças Armadas colombianas em território equatoriano, em entrevista à revista brasileira Fórum.

Andrés Pastrana, do Partido Conservador, elegeu-se presidente em 1998 com a promessa de promover a paz no país e chegou a se encontrar com altos dirigentes das Farc durante a campanha eleitoral, um sinal de que possuía os necessários contatos com a insurgência de esquerda para iniciar as negociações de paz.

Seu governo fez um acordo com a ELN e chegou a liberar uma grande área desmilitarizada para acomodar as Farc, onde se realizariam as reuniões para negociar um acordo de paz, o que no fim não levou a nada. Tudo indica que elas interpretaram essa concessão como uma demonstração de fraqueza do governo e o comandante Manuel Marulanda faltou à reunião com Pastrana, alegando “falta de segurança”.

Foi durante seu governo que se negociou o Plan Colômbia com o presidente dos EUA, Bill Clinton, em 2000, para financiar a localização das plantações de coca e fumegá-las, bem como equipar e treinar as Forças Armadas colombianas para enfrentar os grupos guerrilheiros e as AUC. O governo Pastrana terminou melancolicamente com forte escalada da violência, além de sua própria impopularidade como presidente, e a produção de cocaína nunca se reduziu.

O presidente eleito em 2002, Álvaro Uribe Velez, também do Partido Conservador, prometeu a mesma coisa que o antecessor: extinguir a insurgência e acabar com o conflito, só que, em vez de pela via da negociação, pela força. Fortemente apoiado pelo governo Bush por meio do Plan Colômbia, ele recebe US$ 4,7 bilhões dos EUA a cada quatro anos em material bélico, assessoria e ajuda direta e colocou as Farc na defensiva, além de afastá-las dos grandes centros urbanos. O Plan é complementado por um gasto cinco vezes maior do governo colombiano, o que representa 6,3% do PIB em defesa, percentual superior ao próprio orçamento militar americano, que é de 4%, apesar da ocupação do Iraque e do Afeganistão, ou a média dos países da Otan, 2%.

As Forças Armadas colombianas aumentaram seu efetivo de 160 mil homens em 2002 para 210 mil em 2007, o maior da região andina, e hoje 80% dos servidores públicos do país trabalham no setor de defesa, consumindo 60% da folha de pagamentos do governo.

Uribe fez ainda um acordo com os grupos paramilitares em que os mais comprometidos com assassinatos e outras violações de direitos humanos se entregariam e receberiam condenações mais brandas e os indivíduos menos comprometidos entregariam suas armas em troca de uma remuneração e a possibilidade de ingressar nas Forças Armadas. Assim, o governo pode dedicar todos os esforços no combate às Farc.

Uribe também conquistou forte apoio do empresariado colombiano e dos donos de terras graças a uma política neoliberal de privatizações, eliminação de direitos trabalhistas e promoção do livre comércio, apesar de o Tratado de Livre Comércio com os EUA não ter sido aprovado pelo Congresso americano de maioria democrata devido aos altos índices de violação de direitos humanos e sindicais na Colômbia.

Não obstante sua estratégia eminentemente militar, o governo colombiano começou a receber uma forte pressão internacional para buscar negociações com a guerrilha e libertar diversos políticos e personalidades mantidos como reféns pelas Farc, alguns há dez anos. Essa pressão partiu principalmente do governo francês em função do seqüestro da ex-senadora Ingrid Betancourt, de dupla nacionalidade, colombiana e francesa, e ex-candidata à Presidência do país pelo Partido Verde.

A tática das Farc foi aceitar a intermediação do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, auxiliado pela senadora Piedad Córdoba, do Partido Liberal (PL), que junto com o Pólo Democrático Alternativo (PDA) faz oposição ao governo Uribe. É um partido organizado há poucos anos na Colômbia, reúne vários setores da esquerda e se apresenta como a alternativa de poder progressista no país.

Esse processo levou à libertação de sete dos aproximadamente cinqüenta reféns civis que estão em poder das Farc e aumentou a pressão da opinião pública sobre o governo em favor de negociações visando um acordo humanitário, mesmo dos setores mais propensos à solução militar, devido à crueldade do seqüestro de pessoas não envolvidas diretamente no conflito e submetidas à detenção em condições extremamente precárias.

A guerrilha condicionou a realização de negociações ao estabelecimento de nova área desmilitarizada, o que foi rechaçado por Uribe, que, no entanto, não podia rejeitar abertamente a possibilidade da libertação de reféns.

Diante disso, sua tática foi atrapalhar ao máximo a libertação que se viabilizava pela via negociada e acusar a guerrilha pelo sofrimento dos reféns. Um ataque do Exército contra um acampamento das Farc em junho de 2007 custou a vida de onze ex-parlamentares que ali se encontravam cativos, provavelmente vitimados pelo fogo cruzado, e em dezembro de 2007 ele desautorizou a intermediação de Chávez nas negociações para a libertação de reféns. A libertação do primeiro grupo foi inicialmente frustrada devido a ações do Exército colombiano na área combinada para sua entrega à Cruz Vermelha.

O ato mais grave, porém, foi o ataque a um acampamento das Farc em território equatoriano na madrugada do dia 1º de março de 2008, matando 24 guerrilheiros, entre eles um de seus comandantes mais importantes, Raul Reyes.

A violação da fronteira e soberania de um país vizinho causou grande comoção internacional e Equador, Venezuela e Nicarágua romperam relações diplomáticas com a Colômbia, com os dois primeiros também reforçando militarmente suas fronteiras.

Inicialmente, houve uma reunião de emergência do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o fato por intermédio de uma resolução em que reafirmou a “inviolabilidade das fronteiras e soberania das nações sob qualquer pretexto” e aprovou uma investigação mais detalhada sobre o ocorrido. Em 17 e 18 de março, o Plenário da OEA reuniu-se e repudiou o ataque colombiano ao território equatoriano, apesar das tentativas dos governos colombiano e americano de defendê-lo sob o argumento da Doutrina Bush, que considera “ataques preventivos extra-fronteiras como medidas de legítima defesa contra o terrorismo”. A secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, chegou a se deslocar para o Brasil e o Chile antes da reunião para “expor” a posição do governo americano e ajudar Uribe, que é hoje seu único aliado na região.

Entre as duas reuniões da OEA houve um encontro do Grupo do Rio na República Dominicana, quando o presidente Álvaro Uribe pediu desculpas pelo ocorrido ao presidente Rafael Correa, do Equador, o que baixou a tensão e restabeleceu as relações com os países vizinhos, embora ele não tenha se comprometido a não repetir a ação, conforme o desejado.

Interessa a Uribe manter a tensão. Periodicamente, a polícia colombiana anuncia novos dados supostamente descobertos no computador de Raul Reyes e os vaza aos meios de comunicação como forma de acusar o governo de Rafael Correa de envolvimento com as Farc. Uma dessas situações resultou na publicação de uma foto de Reyes com um personagem que o jornal El Tiempo de Bogotá afirmou ser Gustavo Larrea, o ministro da Defesa do Equador. Na verdade, tratava-se do secretário-geral do Partido Comunista Argentino, Patrício Etchegaray, e após pressão do governo equatoriano o jornal se retratou.

A política de Uribe mantém sua popularidade em alta na Colômbia e o ataque o fortaleceu internamente. Se conseguir manter a ofensiva belicista, certamente buscará nova alteração na Constituição que lhe permita disputar um terceiro mandato. A probabilidade é que amplie a ofensiva militar neste ano, até porque não tem a segurança de manter o apoio americano nos mesmos níveis com o fim do mandato de Bush em 2009, ano em que também vence o contrato para manutenção da base americana em Mantra, no Equador, cuja renovação o presidente Correa já descartou.

Embora a ELN esteja se desmobilizando conforme previsto no acordo feito ainda no governo Pastrana e as Farc estejam militarmente na defensiva, a realidade mostra que não existe uma solução militar.

As Farc estão ativas há mais de 40 anos, não chegaram ao poder e se degradaram politicamente, sobretudo ao longo da última década, ao se utilizar de seqüestros, cobrança de impostos sobre o tráfico de drogas ilícitas, entre outros mecanismos, para se manter em ação. Porém, cada vez que perdem um dirigente com viés mais político, como aparentemente era o caso de Raul Reyes, sua ala mais militarista ganha força.

No entanto, mesmo assim, para os camponeses pobres, sem outra perspectiva senão trabalhar para o latifúndio, o ingresso na guerrilha é uma alternativa. Tanto que as Farc recrutam 84 novos membros para cada cem que perdem e se estima que seu contingente atual seja de 11 mil combatentes.

Se não devem ser reconhecidas como uma força beligerante, tampouco são um grupo terrorista, como pretendem os EUA e o governo colombiano. Apesar de seus equívocos e de representarem uma posição política minoritária no país, as Farc são um grupo insurgente e com capacidade de se manter atuante por muito tempo.

A possibilidade de uma solução pacífica passa pelo estabelecimento de um ambiente que as favoreça, o que definitivamente não está nos planos de Uribe e da cúpula militar da Colômbia, ainda mais quando podem contar com o apoio americano nos níveis atuais. O conflito colombiano a esta altura transformou-se num grande negócio e move muitos interesses econômicos e políticos.

A aposta na paz passa pelo fortalecimento da sociedade civil colombiana, que desde 2000 articula a “Assembléia Permanente pela Paz”, e pela ascensão do PDA ao poder, o que seria uma possibilidade real desde que Uribe seja impedido de buscar seu terceiro mandato. Esse partido foi reeleito em 2007 para governar novamente o segundo maior orçamento do país, que é a Região Metropolitana de Bogotá.

Essa é a estratégia que os partidos políticos e governos progressistas e de esquerda da região deveriam apoiar, pois pode levar progresso a esse país que tem a segunda maior população da América do Sul.

Kjeld Jakobsen é consultor em relações internacionais, foi secretário da CUT e da Prefeitura de São Paulo (2003-2004)