Cultura

Há uma animada revolução artística brotando e gerando frutos em diversas regiões do país, utilizando as recentes tecnologias e novos modelos de negócio

Houve tempo em que ter uma banda era uma atitude heróica e inglória. Sem lugar para tocar, sem facilidade para gravar ou meios para divulgar o seu som, as bandas penavam no circuito alternativo. Muitas simplesmente morriam no caminho. Alguns selos abnegados cumpriam o papel de registrar a cena a duras penas, por amor à música. Um dos mais conhecidos, Baratos Afins, existe até hoje, na loja de mesmo nome capitaneada por Luis Calanca nas Grandes Galerias, em São Paulo.

Eram poucos os grupos que atingiam o sucesso e conseguiam um lugar ao sol nas grandes gravadoras; mas há quem argumente que mesmo os Paralamas, Titãs e Legião Urbana, se tinham muitas vantagens, também se viam aprisionados por esquemas nem sempre animadores.

Com o surgimento das novas tecnologias e das mil possibilidades que elas proporcionam, não é mais preciso ser herói e sofrer para viver de música. Há uma simpática e entusiasmada revolução sendo tocada por diversos coletivos país afora que trabalham com a lógica do cooperativismo e da economia solidária. E assim eliminam não apenas os incômodos intermediários da indústria da música como também as grandes dificuldades vividas no passado.

Grupos como o Espaço Cubo, de Cuiabá, criado em 2001 por jovens universitários, tornaram-se uma das experiências mais interessantes surgidas no meio musical brasileiro. Fazendo uso criativo da tecnologia e de novos modelos de negócio, com o objetivo de “fomentar um mercado autoral, alternativo e auto-sustentável”, o Espaço Cubo conseguiu a façanha de transformar a cena musical na capital mato-grossense, atualmente uma das mais auspiciosas. Para Pablo Capilé, um de seus fundadores, “hoje, até para a gente ser egoísta, tem de se pensar coletivamente”.

O “homem coletivo”, tal como imaginado por Carl Jung, é peça central na idealização dos novos movimentos. “A gente está percebendo que não existe mais o artista sozinho, desgarrado, que é preciso desenvolver-se coletivamente”, diz o músico e compositor Vitor Santana, da Sociedade Independente de Música (SIM), de Belo Horizonte. Vitor também representa o Fórum de Música de Minas Gerais que reúne, além da SIM, a Associação Artística dos Músicos de Minas Gerais (Ammig), a Cooperativa de Música (Comum) e a Associação Nacional dos Violeiros do Brasil (ANVB).

Em busca de objetivos semelhantes aos do Espaço Cubo e com o exemplo de Pernambuco, onde a cena mangue beat ganhou reforço de ações do poder público, o Fórum, entre outros apoios, construiu parcerias com o Sebrae para ações de capacitação e a Secretaria de Estado da Cultura, com a qual prepara o Programa de Desenvolvimento da Música Produzida em Minas, cuja idéia é inserir o estado em festivais e feiras de música, nacionais e internacionais. O projeto com o Sebrae prevê, ainda, o mapeamento da cadeia produtiva da música em Belo Horizonte, em parceria com a Fundação João Pinheiro.

Outra peça fundamental na engrenagem dessa revolução barulhenta (no melhor dos sentidos), que está colocando as grandes gravadoras para escanteio, são os festivais independentes. Com o Festival Calango que atrai até 16 mil pessoas em suas diversas formações (oficinas nas escolas, seminários, programas de rádio), o Espaço Cubo movimentou também a cena alternativa nacional, que hoje conta com pelo menos outros trinta festivais semelhantes, todos vinculados à Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin). São centenas de bandas novas circulando pelo país, articuladas pelos coletivos regionais e entidades como a Associação Brasileira da Música Independente (ABMI) e as Casas Associadas, que representa os estabelecimentos de show brasileiros.

E ainda existe, desde 2006, o Circuito Fora do Eixo, que também reúne produtores de festivais emergentes e movimentos independentes de 22 estados. Com atuação paralela e complementar à Abrafin, foi criado para agilizar os contatos e gerar intercâmbios entre os festivais que estão mais à margem da cena indie brasileira. Através do seu site, promove debates e encontros entre produtores e bandas. Talles Lopes, um de seus idealizadores, também do Coletivo Goma de Uberlândia, é enfático: “O mercado independente vai conquistar cada vez mais espaço, com a perspectiva de criar um novo paradigma”.

Em meio a toda essa efervescência, grupos como os cuiabenses Vanguart e Macaco Bong, os mineiros do Porcas Borboletas, Móveis Coloniais de Acaju (Brasília), Los Porongas do Acre e Trilobit de Londrina, através da exposição gratuita em sites como o MySpace e o Trama Virtual (em que, numa ação inédita, os downloads são remunerados) e alta rodagem pelos festivais, começam a formar o que Lopes chama de “mercado médio”. Nesse mercado, segundo Capilé, não há mais a figura do artista iluminado que faz um sucesso estrondoso; “o sucesso agora é pagar as contas”.

É um mercado que não comporta as grandes gravadoras, as quais vivem a crise apontada pelo paradoxo: “Se por um lado há um crescimento muito grande da produção musical, de outro há uma diminuição dos catálogos tradicionais de artistas”, como aponta Lopes. Sintomaticamente, Chico Buarque, Maria Bethânia, Milton Nascimento e Pato Fu saíram de suas respectivas majors. “As grandes gravadoras não têm mais nada de grandes: conseguiram não apresentar o MP3 à sociedade e agora vendem plástico, não música”, pondera João Marcello Bôscoli, da Trama, a qual ele prefere chamar de “empresa de música”.

As chamadas majors, porém, “tentam buscar o tempo perdido”, como diz Capilé, e vêm contratando artistas novos que estouraram pela internet. A Som Livre, por exemplo, deixou de lado suas tradicionais compilações e passou a investir em novos talentos através do selo Som Livre Apresenta. A Universal tenta o mesmo com o selo Seven Music, e a Sony/BMG busca se inserir na nova realidade com contratos de parceria com seus artistas – é o caso de Ana Cañas, uma das boas revelações surgidas recentemente.

Para os militantes dos coletivos e cooperativas, isso, no entanto, é muito pouco. “A gente lança mais gente, com mais potencial e com uma lógica oposta ao acúmulo de capital, que envolve as bandas em todo o processo”, afirma Capilé com segurança. Vitor Santana emenda: “Você cria uma estrutura que é mais sustentável e democrática, do que com as gravadoras”.

Essa estrutura tem entre seus principais trunfos a moeda complementar, que nada mais é do que um sistema de trocas por serviços, nos moldes da economia solidária. O Espaço Cubo, por exemplo, tem o seu Cubo Card, que movimenta uma economia que inclui da prefeitura à padaria da esquina. O Goma de Uberlândia tem também o seu Goma Card, assim como o Catraia de Rio Branco. Já existe até o Favela Card, da Central Única das Favelas (Cufa). O lucro em dinheiro deixa de ser um fim em si e dá lugar a novas maneiras de se relacionar com o mundo. Para Tales, “a galera não tá mais junta por interesse – você tem valores que são compartilhados”.

As próprias bandas “de gravadoras”, e mesmo as grandes, vêm buscando outros caminhos. O Radiohead, por exemplo, uma das mais cultuadas do momento, colocou seu mais recente disco inteiramente na internet antes de lançá-lo nas lojas, e deixou para o público decidir como e quanto pagar. Para Ronaldo Lemos, da Fundação Getulio Vargas do Rio e também do portal Overmundo, inovador no mapeamento cultural do país e feito exclusivamente por colaboradores, o Radiohead “foi brilhante ao conseguir abranger todo o espectro da nova música; as demandas se diversificaram e eles conseguiram atender todos os públicos”.

Outros foram na mesma direção,com algumas variações: a soprano e ativista pelos direitos humanos Bárbara Hendricks; o 9 Inch Nails, banda que, como o Radiohead, consegue ser experimental e ter sucesso comercial ao mesmo tempo; o Charlatans, grupo inglês dos anos 90; Saul Williams, poeta do hip-hop e batalhador contra o Digital Rights Management (DRM), gestão dos direitos digitais que restringe os movimentos na internet. E mais, num número que cresce em progressão geométrica. Para não deixar dúvidas, Michael Stipe, do superconsolidado R.E.M., declarou à revista Rolling Stone: “A tecnologia elimina os intermediários”.

No Brasil, o rapper B-Negão, que era do Planet Hemp e hoje se equilibra entre a carreira solo e o grupo Turbo Trio (que acaba de lançar disco novo), há anos vem colocando suas música gratuitamente na rede. Com isso, chegou a construir uma carreira também fora do país. E o grupo pernambucano Mombojó, que pôs os álbuns Nadadenovo (2004) e Homem-Espuma (2006) em seu site oficial para download gratuito de qualidade, utilizando a licença Creative Commons (que permite a reprodução não comercial de qualquer obra, seja disco, filme, livro etc.). Conta Chiquinho, tecladista da banda: “No início a parada parecia que só ia nos render um pouco de mídia gratuita. Porém, começamos a notar que a nossa música estava chegando a lugares que nunca conseguiríamos atingir pelos meios tradicionais de distribuição”. Pensando nisso, a Trama já está preparando o lançamento de álbuns virtuais, em que você baixa as músicas na ordem imaginada pelo artista e baixa também a capa e os créditos. Segundo Bôscoli, o primeiro será de Tom Zé, com participação de várias cantoras novas.

Daniel Benevides é jornalista.