Mundo do Trabalho

A greve nasceu nas fábricas e empolgou 16 mil dos 21 mil trabalhadores da cidade industrial, um marco político que ultrapassou os limites do município

Às 7 horas da manhã de 16 de abril de 1968, os operários da trefilaria da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira pararam as máquinas e ocuparam a fábrica. Logo, 1.600 metalúrgicos estavam em greve, a primeira na história da empresa. Elegeram a comissão de negociação, organizaram-se em grupos para manter a disciplina, impedir a bebida e qualquer baderna.

Em 19 de abril, os seiscentos metalúrgicos da Sociedade Brasileira de Eletrificação (SBE) aderiram à greve. No dia seguinte, os 4.500 trabalhadores da maior empresa do Parque Industrial, a Mannesman, também pararam. A partir de então, na mais absoluta calma e ordem, a RCA, Pohlig Haeckel, Industam, Cimec e outras paralisaram a produção. Sem os tradicionais piquetes, sem assembléias no sindicato.

O coronel Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho, no dia 2 de abril, viria à cidade de Contagem e tentaria convencer os trabalhadores a interromper a greve, ilegal, contestatória – e, estranho: sem líderes ostensivos. Não pôde sequer intervir destituindo a direção do sindicato, pois a greve nasceu nas fábricas e empolgou 16 mil dos 21 mil trabalhadores da cidade industrial. Os metalúrgicos já tinham vencido o medo, e então enfrentaram o ministro que saiu da assembléia sob vaias. O coronel-ministro pôs em prática a partir daí a “guerra” que prometeu. Na TV, disse que a greve era um desafio ao governo e uma transgressão à lei, e que os grevistas poderiam ser demitidos e enquadrados na odiosa Lei de Segurança Nacional. Com o patronato acertou o não-pagamento dos dias parados e a busca de um por um em suas casas.

O Parque Industrial foi ocupado por 1.500 policiais militares. As assembléias foram proibidas, assim como a distribuição de boletins e qualquer tipo de aglomeração. No dia 26 de abril os últimos grevistas retornaram ao trabalho. No entanto, no dia 27, boletins inundaram a Cidade Industrial convocando os trabalhadores para transformar o Primeiro de Maio em um dia de protesto contra o arrocho salarial.

Os vencedores aparentes: ditadura e patronato. Por que então a já lendária greve de 1968 jamais é esquecida? Por que cientistas sociais como Francisco Weffort, Magda Neves, Yone Grossi, Delsy Gonçalves de Paula, Michel Le Ven, Augusto Buonicore e tantos outros a ela dedicaram milhares de páginas e horas de pesquisas?

Contagem-1968 tornou-se um marco pleno de significados políticos, ultrapassou o município e o estado de Minas Gerais. Meses depois estimulou os metalúrgicos de Osasco, em São Paulo. Introduziu novos modelos de organização, de relação com os sindicatos. Recusou a lei (anti)greve e enfrentou o arrocho, levando o governo militar a conceder abono de 10% para todos os trabalhadores brasileiros pela primeira vez desde o golpe de 1964. O patronato viu-se incapaz de evitar a greve. O controle essencial na relação de dominação lhes escapou. Os trabalhadores fizeram-se ouvir, foram contestadores, entraram em cena.

O golpe de 1964 atrasou o desenvolvimento político, social e cultural do povo brasileiro. Mas sem dúvida o sindicalismo sofreu grande derrota e o golpe militar foi contra a classe operária para impedir as greves. A lei (anti)greve impunha exigências que as inviabilizava e penalizava duramente sua burla com demissão sem indenização, afastamento de dirigentes sindicais envolvidos, multas e intervenção nos sindicatos. A Lei do Arrocho estipulava que os aumentos salariais dependiam de um cálculo que envolvia o salário real médio dos últimos dois anos combinado com a previsão de inflação nos próximos doze meses e a estimativa de aumento da produtividade.

Entre 1964 e 1967, os trabalhadores brasileiros amargaram perda de 12% do salário real. Leis que restringiam severamente a atuação dos sindicatos tinham como objetivo facilitar a implantação de políticas econômicas assentadas na compressão dos salários e na redução de direitos sociais, como a estabilidade e a conseqüente facilitação das demissões. Os trabalhadores e o movimento sindical tiveram dificuldade em reagir. Setores da própria esquerda interpretaram a partir dos trabalhadores como cooptação da classe operária e deslocaram para os estudantes insubmissos, para os marginalizados (chegavam a enaltecer o papel dos “bandidos sociais”) ou para camponeses pobres, o papel de vanguarda revolucionária.

Em 1967, com o fim da intervenção, surgem oposições sindicais em todo o país. Em São Paulo surge o Movimento Intersindical Anti-Arrocho (MIA). Em Mina Gerais, a oposição apresenta uma chapa encabeçada por Ênio Seabra, em uma aliança entre Ação Popular, Partido Comunista Brasileiro, Corrente Revolucionária e independentes, com a proposta de afastar os pelegos, fazer oposição ao arrocho e contra o fim da estabilidade. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT) impugnou a candidatura de Enio, que foi à luta, ganhou o direito de concorrer e foi eleito. O Ministério do Trabalho destituiu Ênio Seabra e impugnou mais três diretores. Nem isso foi impedimento a uma direção combativa. As esquerdas recuperaram o Sindicato dos Bancários e atuaram em sindicatos como o dos petroleiros, dos marceneiros e dos professores públicos. Em março de 1968, assembléia de 2 mil trabalhadores da Secretaria de Saúde (hoje Minascentro) cria o Comitê Intersindical Anti-Arrocho.

Em Minas e no Brasil, 1968 é um ano marcado pela ampliação da oposição ao governo militar. Juscelino Kubitschek (JK) é mineiro e junto com Lacerda e Jânio Quadros compõe a Frente Ampla. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de Minas soma-se à oposição liberal-democrata. As lutas estudantis crescem em volume e extensão. Artistas, intelectuais, jornalistas, padres, famílias de exilados e perseguidos se manifestaram. A volta dos trabalhadores à cena estava latente.

Mas por que Contagem?

A cidade industrial de Contagem foi um sonho das elites mineiras, um “salto de sete léguas para o futuro”, como disse JK. Uma planejada para impulsionar a industrialização em Minas. Iniciada na década de 1940, deslanchou nos anos 1960 e em 1968 já abrigava 105 indústrias e 28 mil trabalhadores. Estrategicamente situada, milhares de trabalhadores foram atraídos para o maior projeto de modernidade dos empresários mineiros. Carteira assinada, direitos consolidados, novo status social, morar nos arredores da bela capital mineira... Oitenta por cento dos operários da Belgo recebiam dois salários mínimos, gastavam a metade com aluguel e transporte. O sonho das elites realizava-se à custa do pesadelo dos trabalhadores. Salários inferiores aos de Belo Horizonte, superexploração do trabalho, vigilância interna despótica, jornada longas e exaustivas. Áreas ainda desocupadas pelas indústrias, ruas não-urbanizadas, beiradas de córregos, terrenos pantanosos viraram favelas para os trabalhadores que não conseguiam realizar o sonho da casa própria autoconstruída nos bairros da região. Bom para o patronato que não precisava remunerar moradia e transporte nos salários deprimidos. Os bairros novos recebem os trabalhadores sem ruas asfaltadas, com transporte público precário; falta tudo, escola, saúde, lazer, energia...

Os boletins clandestinos referem-se à vergonha dos trabalhadores de mostrar as marmitas com arroz, ovo e couve e ao clima opressivo, expresso em situações como a restrição a usar o banheiro.

A greve surge como uma ação para resgatar a dignidade e o respeito próprio dos trabalhadores, como revolta com o tratamento dispensado pelos empresários e pelo Estado aos verdadeiros construtores do progresso e “do salto de sete léguas para o futuro”, contra a onipotência do aparato militar e o desrespeito às lideranças sindicais.

Quarenta anos depois, as lideranças criticam o importante estudo pioneiro do cientista político Francisco Weffort1 (1972) sobre a greve de Contagem, pela subestimação do papel do sindicato dos metalúrgicos e dos grupos de esquerda. Dezenas de militantes das classes médias atuaram em Contagem e no Barreiro. Pessoas que renunciaram às suas carreiras, com muita coragem pessoal, viam nas favelas, nos bairros desprovidos, assolados pela poluição, o espaço coletivo da classe operária, constituída como classe, agindo como classe, liderando a revolução.

Consumiam suas noites, explicando a realidade capitalista, buscando introduzir novas práticas políticas, para além da revolta individual, da sabotagem de peças. Andarilhos e missionários da revolução, que acreditavam iminente. Tinham pressa; seu tempo se conta por dias e semanas. Percorrem as portas de fábricas, ponto de ônibus, escolas noturnas, bairros, favelas, igrejas. Nos “aparelhos” os mimeógrafos produzem boletins que eram distribuídos nas casas.

A greve na Belgo foi liderada pelo Comando de Libertação Nacional (Colina), organização autodenominada político-militar, que editava o Piquete e era uma dissidência da Política Operária (Polop).

A Ação Popular agregava lideranças importantes como Ênio Seabra, Mario Bento, Argentino, e “integrou à produção” importantes quadros políticos, além de deslocar outros para atuar nos bairros e escolas. Editava o boletim Companheiro e outros específicos como o Bodoque. A Corrente Revolucionária, dissidência do PPCB, atuava no sindicato por intermédio do inesquecível Joaquim de Oliveira, vice-presidente, e da então jovem secretária Conceição Imaculada (posteriormente banida do país quando trocada pelo embaixador alemão sequestrado) e nas fábricas e bairros com quadros jovens. Publicava o 1º de Maio. A Polop, enfraquecida pela dissidência Colina, entusiasmou-se com a emergência da luta operária e lançou o Partido Operário Comunista (POC). Tinha importantes quadros não-metalúrgicos, como Otavino Alves, Milton Freitas e Alcides Oliveira e “deslocou” seus melhores militantes para a cidade industrial. Publicava o Combate.

O PCB era o partido mais antigo. Fortemente atingido pelo golpe e pelas dissidências, tinha quadros como Antônio Benigno, da Mannesman. O próprio Antônio Santana, que ficou como presidente do sindicato após Enio Seabra ser impedido de tomar posse, era vinculado a Benigno. A Igreja Católica, por meio de inúmeros padres, seminaristas e militantes leigos, desempenhou também importante papel.

Em outubro, as esquerdas planejaram outra greve, acreditando no agravamento da situação econômica e na possibilidade de derrotar o governo militar. Os fatos demonstraram que, na verdade, o país caminhava para o golpe dentro do golpe.

A repressão à Frente Ampla, ao MDB, à contestação na área cultural, ao Congresso de Ibiúna, a absoluta intolerância à entrada em cena dos trabalhadores e à insurgência, apontavam para as trevas da repressão.

Em 3 de outubro a nova greve foi esmagada.

O legado

O mito e a mística de Contagem permaneceram. Mesmo nos anos de chumbo, militantes organizados ou não, sobretudo cristãos engajados radicaram-se em Contagem e no Barreiro.

Poucos anos depois, vieram o Jornal dos Bairros, o Centro de Estudos do Trabalho, o Centro Cultural Operário, o Grupo de Estudos e Trabalho em Educação Comunitária (Getec), as pastorais e os movimentos populares urbanos. Apenas dez anos depois, em plena ditadura, vem a oposição sindical metalúrgica, em seqüência as greves nas fábricas. O novo sindicalismo articula-se com os movimentos de bairros e favelas, com as comunidades de base, com a imprensa popular. Muitos dos dirigentes de 1968, junto com as novas lideranças, fundaram o Partido dos Trabalhadores (PT) e, poucos anos depois, a Central Única dos Trabalhadores (CUT).

A greve de 1968 jamais foi esquecida, pelo que significou, pelas novidades que trouxe para a organização e para a orientação dos trabalhadores.

Não espanta, pois, que a tradição inaugurada em 1968 seja celebrada e elevada por dois prefeitos sindicalistas: Marília Campos, de Contagem, oriunda do sindicalismo combativo dos bancários dos anos 1980, e Emídio de Souza, metalúrgico de Osasco.

Nilmário Miranda é vice-presidente da Fundação Perseu Abramo