Nacional

Municípios assumem papel central não só na prestação direta de serviços públicos como também têm se transformado no mais importante locus da sedimentação da democracia

O município, no Brasil, foi institucionalmente transformado em ente federativo pela Constituição de 1988. Há quem afirme que, mesmo antes disso, já possuía um grau de autonomia elevado. Com algumas fontes próprias de financiamento definidas e algumas atribuições constitucionais estabelecidas, ele já teria, na prática, esse caráter. Mas não vamos entrar nessa polêmica.

Para se entender, porém, a situação institucional atual dos municípios, é importante ressaltar que essa definição surge, no debate constituinte, não a partir de uma discussão forte sobre a importância ou não de o município ganhar esse status, mas, sim, como decorrência de vários movimentos de contraposição à exacerbada centralização de atribuições que se havia instalado durante o período da ditadura militar. No processo de resistência à ditadura, firmaram-se movimentos pró-descentralização, calcados tanto o avanço de uma série de movimentos sociais de caráter setorial, que pleiteavam a municipalização de vários serviços, como também na luta pelo fortalecimento das instâncias subnacionais. Em ambos os casos, a palavra de ordem era “descentralização”, pois o período autoritário havia firmado a União como o centro político de todas as decisões e ações públicas. Era necessário resistir, e essa resistência significava, entre outras coisas, enfraquecer esse poder central e descentralizar a ação pública. No caso dos movimentos sociais setoriais, foram muito fortes os movimentos pela municipalização da saúde, da educação, da habitação, entre outros, que acabaram, vários deles, ganhando contornos de lutas nacionais, com conquistas de caráter nacional, também, voltadas à descentralização.

É no bojo dessa luta por descentralização que, na Constituinte, os municípios acabam ganhando o caráter institucional de entes federativos.

Lacunas institucionais

Esse caráter que os municípios assumem, porém, não tem sua institucionalidade completada até hoje. Várias são as lacunas institucionais para a sedimentação plena dos municípios como entes federativos, desde a clara definição de atribuições diferenciadas entre eles, quanto uma boa definição do financiamento dessas atribuições. O artigo 23 da Constituição Federal não foi regulamentado até hoje. Esse artigo define as competências comuns entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios e prevê, em seu parágrafo único, que leis complementares fixarão normas para a cooperação entre essas esferas federativas, buscando o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar, em âmbito nacional.

Também o financiamento das atribuições não está bem equacionado. As receitas municipais mais significativas são as transferências, seja nacionais seja estaduais, as quais possuem critérios de rateio nem sempre justos. A reforma tributária que, neste momento, tramita no Congresso, apenas esbarra na questão federativa ao desconstitucionalizar o critério de rateio do ICMS. O critério atualmente previsto na Constituição, que define a transferência de 25% do ICMS arrecadado em cada estado para os municípios que o compõem, estabelece que esse rateio será distribuído segundo um índice de participação para cada município, impondo que pelo menos três quartos desse índice sejam definidos com base no Valor Adicionado no território de cada município, sendo o restante distribuído segundo a legislação estadual própria. Esta legislação estadual varia bastante de estado para estado, mas o peso maior, dada a definição constitucional, será, sempre, o Valor Adicionado Fiscal.

Essas transferências, com essas definições, provocam distorções, criando situações fortemente anômalas. Só para ter idéia do quanto essas distorções são importantes, pegue-se o caso do estado de São Paulo, onde as transferências de ICMS para os municípios, obedecendo àqueles preceitos, criam situações de transferência per capita que possuem os seguintes extremos. Em 2006, ano para o qual já se tem os dados consolidados na Secretaria do Tesouro Nacional, Paulínia, que é o município com maior receita de ICMS per capita, recebeu o equivalente a R$ 8.492,00/per capita e, no outro extremo, o município de Francisco Morato, no mesmo ano, recebeu apenas e tão-somente a transferência de R$ 62,00/per capita.

Esse quadro institucional criou distorções nas finanças públicas a partir das receitas transferidas. Essas distorções acabaram dificultando, em nível municipal, as administrações de prestar, a contento, muitos dos serviços públicos essenciais à população, principalmente nos campos da saúde e da educação, considerados fundamentais para a sedimentação da cidadania. Isso, agravado por uma economia geograficamente muito desigual, provocou a proposição e sedimentação de mecanismos compensatórios, com vinculações de receitas, por um lado, e por transferências compensatórias, por outro. Muitos desses mecanismos, a despeito de sua intenção positiva e elogiosa, acabaram sedimentando, como efeito colateral, novas distorções no gasto público.

Observem-se os casos de saúde e educação, que possuem mecanismos vinculatórios de despesa à receita própria e transferida. No caso da saúde, os gastos municipais obrigatórios são de 15% daquela receita e na educação, 25%. Na educação, além dessa vinculação, criou-se também o Fundef, atualmente substituído pelo Fundeb, que busca um mecanismo de redistribuição dos recursos entre os municípios, para tentar minimizar os efeitos das distorções na receita. Na saúde, a municipalização tem os mecanismos de compensação do SUS.

De qualquer forma, quando se olha para aquele quadro de extremos, entre Paulínia de um lado e Francisco Morato de outro, pode-se perceber as dificuldades de ambos os municípios para uma boa qualidade do serviço público. Gastar 25% de sua receita em educação, para Paulínia, com seus 73 mil habitantes, implica inventar despesas, sofisticando sobremaneira o serviço prestado. Em compensação, para Francisco Morato, com seus 146 mil habitantes, esse mesmo serviço terá uma qualidade apenas e tão-somente sofrível, se o limitador de 25% for respeitado. A qualidade do gasto público tem seu perfil condicionado ao perfil da receita.

Ação municipal, democracia e cidadania

Independentemente dessas lacunas institucionais na definição do município como ente federativo, este vem ganhando importância crescente na vida pública brasileira. No período pós-ditadura, os municípios vêm assumindo papel central não só na prestação direta de serviços públicos, os quais se têm municipalizado com muita rapidez, como também vêm se transformando no mais importante locus da sedimentação da democracia no Brasil. A cidadania vem se firmando, cada vez mais, no Brasil, a partir da esfera municipal.

É interessante notar que esse papel crescente dos municípios tem muito a ver com a atividade governamental do Partido dos Trabalhadores, que surgiu e se firmou a partir de algumas vertentes de movimentos sociais e de resistência democrática. O PT teve suas primeiras experiências institucionais na esfera legislativa e, no Poder Executivo, nos municípios, onde exercitou, experimentalmente, muitas políticas públicas de sedimentação da cidadania não só no combate à exclusão, como no campo dos diferentes direitos públicos.

Obviamente, essa característica não é privilégio e exclusividade do PT nem se materializa totalmente em toda e qualquer administração petista, mas é nesse partido que toma vulto e caráter de política estratégica. As administrações municipais têm se transformado em importantes laboratórios de políticas públicas. No processo eleitoral municipal que se avizinha, ao que tudo indica, os programas de governo ganharão maior força na disputa eleitoral. E, nos programas de governo, a visão de cidade, mais que o rol de realizações, vai ganhando centralidade.

Quando se toma a cidadania como o exercício de relação entre o cidadão e a apropriação da coisa pública, bem como a garantia crescente de direitos, tem sido no exercício de governos locais que essa relação mais tem se firmado. Mesmo nas políticas públicas de inclusão do governo federal, na maioria das vezes, é no município que estão seus principais executores. Parte importantíssima das ações do PAC, principalmente nas áreas de habitação e saneamento, entre outras, passa pelos municípios, mais do que por outras esferas de governo.

A municipalização da ação pública vem se dando independentemente de sua institucionalização. Em muitos casos, os municípios têm assumido funções que não lhe são definidas institucionalmente, mas que lhes são demandadas pela proximidade que se estabelece entre a população e o poder público no âmbito do município. É o caso, por exemplo, da segurança pública, que tem sido institucionalmente entendida como atribuição estadual e federal, mas na qual os municípios vêm agindo de maneira crescente não só pelo fortalecimento dos papéis das guardas municipais, mas também pela relação de parceria que se coloca para as administrações públicas locais, em face dos estados.

O município como ente federativo

Ante esse crescente papel que os municípios vêm assumindo, cabe indagar se essa novidade brasileira é bem-vinda ou não. Há quem diga que o município como ente federativo é como jabuticaba, só existe no Brasil. Mas jabuticaba é uma fruta deliciosa! Essa novidade brasileira, apesar de surgida como decorrência indireta da luta por descentralização da ação pública, em contraposição à hipertrofia do poder nacional que se exacerbou nos tempos da ditadura, tem-se mostrado importantíssima para o aprofundamento da democracia e da cidadania. Cabe, então, levar mais longe essa característica dos municípios brasileiros.

Cabe aprofundar, ainda mais, a institucionalidade desse arranjo federativo, com uma regulamentação mais clara do artigo 23 da Constituição Federal. Cabe, também, aprofundar a possibilidade de outros arranjos, setoriais ou regionais, para a ação pública. Há temas de ação pública que transcendem o âmbito estrito de um município, mas que se situam em nível inferior à ação estadual, na qual os arranjos podem e devem ser de cooperação entre municípios. Isso tanto pode apontar para os temas metropolitanos, com arranjos regionais de múltiplas facetas setoriais, como podem apontar para temas setoriais específicos que demandam ação supramunicipal.

Já vêm surgindo vários desses arranjos, seja de caráter regional seja setorial, agora amplificados com a entrada em vigor da Lei dos Consórcios Públicos. Há vários comitês de bacias, normalmente voltados ao tratamento de temas ambientais ou de saneamento, que transcendem o âmbito municipal, pois problemas de montante se apresentam a jusante, nas bacias hidrográficas de importância urbana. Há consórcios públicos, com arranjos voltados a temas de interesse comum entre dois ou mais municípios de uma mesma região. Muitos são os temas que demandam arranjos supramunicipais, em regiões conturbadas, como são os casos de transportes públicos, de saneamento, de saúde, de infraestrutura viária etc.

O artigo 23 estabelece várias atribuições comuns a todos os três entes federados, voltadas ao bem-estar da população, mas essas atribuições, em boa medida, têm ou precisam ter sua consecução materializada na esfera municipal, pelo menos aquelas que demandam ação administrativa direta, não só gestão política e administrativa. Há várias atribuições comuns que precisam de regulamentação mais clara, como são os casos da saúde, educação, cultura, do controle do meio ambiente e da habitação. Obviamente, essas competências podem variar demais em cada uma das esferas, ou em ações coordenadas entre municípios. Tome-se o caso da saúde. De acordo com o porte do município, o nível de atendimento pode variar muito no âmbito da própria cidade. Há municípios que poderão ter apenas e tão-somente atribuições ligadas aos níveis mais básicos da atenção à saúde. Outros, com maior envergadura, poderão ter atribuições mais complexas. Os mecanismos de financiamento do SUS, bem como o acesso universal à saúde pública, não se equacionam com facilidade com os mecanismos de financiamento atuais, onerando-se, sobremaneira, as redes públicas de alguns municípios em detrimento de outros. Esse mesmo problema afeta também as demais políticas setoriais, tornando necessária maior clareza institucional sobre as normas de cooperação entre as esferas da federação.

O financiamento da ação pública, portanto, precisa ter regulamentação simultânea com a regulamentação das atribuições. Nesse sentido, a revisão da estrutura tributária faz-se necessária quanto à partilha federativa. A desconstitucionalização do Índice de Participação no ICMS, preconizada pela reforma tributária atual, precisará criar, quando de sua regulamentação, melhores condições de atendimento a essas atribuições municipais, fortalecendo, ainda mais, o município como ente federativo e, conseqüentemente, como principal espaço de ação pública direta na superação de desigualdades, bem como na afirmação da democracia e da cidadania.

Antonio Carlos Granado é economista, membro do Instituto de Governo e Cidadania.