Cultura

Romances críticos e irreverentes fazem a crônica da nossa história, desenhando um retrato plural do país e das esquerdas brasileiras

Antonio Callado. Foto: Acervo Iconographia

Ninguém melhor que Antonio Callado para apresentar uma visão verdadeira, embora (ou porque) ficcional, do autoritarismo brasileiro, principalmente na sua manifestação ditatorial. De modo crítico e irreverente, seus romances fazem a crônica de quase meio século da nossa história. Os fatos aí tematizados referem-se a um passado recente e, em alguns casos, a acontecimentos quase coetâneos. Retrocedendo à chamada Era Vargas, detêm-se no período ditatorial de 1960 e 1970, com o endurecimento de 1968, a conseqüente radicalização da resistência, as prisões, a tortura, a guerrilha, os seqüestros, o exílio e flagrando a volta dos primeiros exilados às vésperas do lento e gradual processo de abertura política. Mas essa ficção transcende os fatos, desenhando um retrato plural, crítico e autocrítico, do Brasil e das esquerdas brasileiras. Retoma-se a tradição do romance empenhado, tão característico da literatura brasileira, com um refinamento que não compromete a comunicação e um caráter documental que não perde de vista a complexidade da vida e da literatura.

As inúmeras viagens – a Londres, Paris, Bogotá, Washington, Xingu, Pernambuco, Vietnã do Norte, Cuba – como repórter adepto de um jornalismo inteligente, proporcionam a Callado experiências das mais cosmopolitas às mais regionais e locais. Sair do país ajudava a “ver essas coisas que o brasileiro raramente vê”, como costumava dizer. E cobrir as lutas dos pobres pela terra e pelo pão, como no caso das Ligas Camponesas do Nordeste, permite-lhe recriá-las com simpatia, despertando a solidariedade dos leitores da “cidade letrada”.

O romance Quarup, publicado em 1967, reeditado inúmeras vezes e traduzido em várias línguas, falou aos leitores das décadas de 1960 e 1970, nacionalistas, desenvolvimentistas, populistas, antiimperialistas e revolucionários. Continua a falar aos leitores das décadas seguintes, mais cosmopolitas e céticos tanto diante dos programas desenvolvimentistas e modernizadores quanto diante dos radicalismos românticos. Estabelece um contraponto entre as diversas ideologias da nação brasileira, problematizando o projeto alencariano de uma  nacionalidade harmônica, bem como a concepção mesma da importância da palavra e do intelectual na luta por uma sociedade mais justa.

Concluída uma primeira versão, pouco antes do golpe, o romance foi-se transformando como se transformava o país. Também o escritor, antes eufórico, recém-chegado das viagens que lhe haviam permitido reunir um material tão variado para tentar ordenar na sua cabeça e no papel o Brasil redescoberto, tinha sido atropelado pela história. Camaleônico como a nossa realidade, esse texto acaba sendo uma espécie de “evocação histórica”, para usar a expressão do próprio autor. Porque rememora como coisa já remota o que Callado considerava a “mais viva experiência social jamais inventada no Brasil”. Projetado para acompanhar um lento amadurecer do que se esperava fosse uma revolução sem violência, em tempo de Miguel Arraes, das Ligas Camponesas, das campanhas de alfabetização com o método Paulo Freire, da militância de estudantes e operários exigindo as reformas de base, o romance conclui com a derrota desse projeto e a morte de tantos militantes e de suas ilusões, Quarup é, assim, ele mesmo uma espécie de cerimonial, que encena ritualmente as esperanças e o desencanto dos revolucionários. A passagem da ilusão romântica – que via o Brasil profundo como um paraíso terrestre, representado pelos índios do Xingu – à vivência dos problemas do índio real, contaminado pelo branco e em processo de extinção, sintetiza-se numa das cenas mais famosas do livro, quando, depois de uma expedição cheia de peripécias em busca  do coração do país, este se revela um lugar coberto de formigas. Ao final, o romance se abre para novas formas de resistência, entre elas a opção pela luta armada, ainda a partir do sertão. Já no romance seguinte, isso também vai aparecer como mais uma ilusão romântica, que acaba atribuindo ao  sertanejo o papel de salvador da pátria antes atribuído ao índio.

Desencanto e utopia, eis aí uma tensão dialética, evidente em Quarup, e uma constante nos livros do escritor, nos quais a repressão, a tortura, a dominação e a morte aparecem sempre contrapostos à imagem da vitalidade, do amor e da liberdade, simbolizados geralmente por elementos naturais: a água, as orquídeas, o sol, que travam uma luta circular com a noite, os subterrâneos e as catacumbas. É essa dimensão mítica e transcendente que faz Salviano ascender aos céus (ao menos aos olhos do povo), em Assunção de Salviano (1954); é ela que faz Delfino recuperar a calma e o amor depois da penitência que o leva a percorrer a procissão com a cruz de Cristo nas costas, em A Madona de Cedro (1957); é ela que permite, apesar do golpe militar, que, no final de Quarup, Nando e Manuel Tropeiro partam para o sertão em busca da guerrilha e que, bem mais tarde, o já debilitado Quinho (Sempreviva, 1981), uma vez cumprida sua vingança, se reencontre com Lucinda, a namorada morta dez anos antes nos porões do Doi-Codi. Lucinda, retomada na figura de Jupira e de Herinha, é também parente da terra e das águas, um símbolo a mais dos “nervos rotos” mas ainda vivos da América Latina, a que alude a epígrafe deste romance, tirada de um poema de César Vallejo.

Foto: Pedro Biondi/ABr

Parque Indígena do Xingu: índios dançam em apresentação na principal comunidade dos Kuikuro

Estuário onde desaguam vertentes das obras anteriores, Quarup é também uma fonte exuberante, a partir da qual certas características, já esboçadas em Assunção de Salviano e A Madona de Cedro, se aperfeiçoam e desdobram no projeto coerente de uma ficção impulsionada pela urgência, mas alimentada por um cristianismo antigo, em que o Cristo tropical convive lado a lado com os mitos pagãos e os beatos sertanejos,todos eles temidos pelas elites que produzem mártires mas, ao mesmo tempo, tudo fazem para apagar suas marcas na memória popular.

Bar Don Juan (1971), Reflexos do Baile (1976) e Sempreviva (1981) retomam as andanças do padre Nando, tentando retratar os diferentes momentos do processo revolucionário e contra-revolucionário. O que sempre se busca são alternativas para “o atoleiro em que o Brasil se meteu”, embora isso se faça com desesperançada ironia, desvelando machadianamente o idealismo das utopias alencarianas.

Em A Expedição Montaigne (1982) essa ironia explode na sátira. Anti-herói paródico, Vicentino Brandão é Nando, Quinho e tantos heróicos revolucionários das narrativas anteriores. A dimensão utópica desaparece, persistindo somente de forma negativa, na amargura de um mundo fora dos eixos: nossa tragicomédia exposta. Mas no desconcertante Concerto Carioca, de 1985, a busca persiste e se amplia num confronto de culturas e de tempos, encenado no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. A tentativa desse livro é a de concentrar num cenário urbano o retrato previamente desenhado a partir dos confins do Brasil. O Jardim Botânico é aí, porém, uma espécie de mini-floresta que enquadra e anima de modo mítico com suas árvores e riachos, a figura do indiozinho Jaci, vítima de um perseguidor feroz, no qual se pode ler o símbolo dos colonizadores de ontem e dos depredadores da vida e da natureza hoje. “Concerto desafinado”, essa narrativa, feita de “seqüências inconseqüentes”, na expressão de Ettore Finazzi-Agrò, aponta para o atoleiro que emperra a nossa história, do qual, para arrancar-se, seria necessário fazer como o velho barão de Münchhausen, puxando-se pelos próprios cabelos, na falta de um Peri que se arrancasse das águas, com palmeira e tudo, navegando para novos e amplos horizontes.

Callado morreu, sem acreditar mais num outro Brasil, que ainda hoje acreditamos possível. Seu último romance, Memórias de Aldenham House, de 1989, estende a um contexto mais amplo, latinoamericano e mundial, essa visão pessimista do Brasil, atolado nos males de um passado colonial. Destaca-se aí a referência, como parte desse mal de origem, à integração perversa da nossa América. Ela já aparecera em Sempreviva, nos rastros eloqüentes da Operação Condor e agora volta na memória viva da guerra da tríplice aliança (Brasil, Uruguai e Argentina) contra o Paraguai. Memórias de Aldenham House encena o conflito de culturas entre colonizador e colonizado e destes entre si, sendo o crime gerador de tantos outros nesse confronto, simbolizado pela Inglaterra, ícone da “civilização”. Vinte anos depois dos sucessos, vividos pelo protagonista brasileiro (também narrador), que fugira do autoritarismo, como os colegas da Bolívia e Paraguai, com os quais trabalhara na casa mal-assombrada da BBC, em Londres, ele escreve suas memórias novamente na prisão de uma outra ditadura, para flagrar no passado e no presente a prepotência do autoritarismo tradicional na América Latina, responsável pela repetição da tragédia como farsa, no destino de um paraguaio, não por acaso de nome Facundo. É ainda a visão do beco sem saída, que se reforçou nos últimos anos de vida do escritor.

Nessa ficção, o tema do mal se faz presente de várias maneiras, surpreendendo ao mesmo tempo o indivíduo e a sociedade nos momentos em que os demônios se soltam e o sadismo dos Knuts-Shibatas e dos Fleurys-Claudemiros (como em Sempreviva) se manifesta exemplarmente no facismo mais exaltado. Depois de Quarup relativiza-se, também, se não se inviabiliza, aquela religiosidade, presente desde Assunção de Salviano, que permite a Callado prever meio profeticamente as facetas revolucionárias da Igreja, no seu papel de resistência à ditadura e na defesa dos pobres. Mas continua sendo notável a atualidade desse e de outros temas tratados no conjunto dessa obra – incluindo a dramaturgia, principalmente nas peças dedicadas ao negro –, como o tema da liberação feminina, da defesa do prazer sem culpa, da virada da igreja católica, da defesa da vida humana, independente de raça, etnia, sexo ou religião, da proteção dos recursos naturais, todos eles trazidos à luz pela explosão da juventude de 1968.

Hoje, quando se problematizam as identidades nacionais, num mundo considerado pós-nacional, ao mesmo tempo em que se afundam e refundam nações em guerras sangrentas, uma literatura que poderia parecer ultrapassada, por narrar a busca da nação, pode revelar-se ainda atual, se notarmos as novas possibilidades que se estão abrindo, num Brasil que Callado não pôde viver, mas com o qual soube sonhar. Por virtude desse muito imaginar, seus livros transmitem ainda energias positivas para vencer o catastrofismo irresponsável, não nos deixando cegar para novas e importantes conquistas. Para terminar, um exemplo bastante concreto: a dívida externa é um dos males da nossa modernização selvagem, tematizada constantemente por Callado.

Até o começo do século 21 diversos estudiosos constatavam a permanência dessa dívida, em que parecíamos para sempre atolados (a metáfora, utilizada por Marcelo Ridenti em artigo de 1997, é a mesma de Callado). Agora que, finalmente, nos livramos dessa dívida, como nos lembrava recentemente Tarso Genro, por que não ver aí um passo importante para sairmos do atoleiro? Certamente, sabendo desse notável feito, Callado onde estiver estará já escrevendo o romance de um Brasil, para o qual o fracasso da revolução e do velho socialismo real não impedem a continuidade da luta pela construção de um socialismo democrático e ainda possível.

Ligia Chiappini é professora titular de Literatura Brasileira na Universidade Livre de Berlim