Sociedade

Pensar o legado de 1968 implica discutir o significado da experiência ditatorial no país e o tipo de relação estabelecida pela sociedade brasileira

Livraria Civilização Brasileira sofre atentado a bomba no Rio.          Foto: Acervo Iconographia

Como acontece em ocasiões comemorativas, não faltarão neste ano eventos a respeito do significado e do legado de 1968 para a história brasileira e mundial. Passados 40 anos, os analistas se esforçam em buscar explicações que possam tornar inteligível um ano no qual países com realidades geográficas e sócio-políticas distintas como França, Brasil, Japão, México, entre tantos outros, vivenciaram eventos fundamentais para a compreensão de suas respectivas histórias no século 20.

Neste artigo não são almejadas explicações de tal natureza, tampouco discussões acerca da importância de 1968 para mudanças substanciais nas formas e temas da participação polít ica no século passado, como a liberalização comportamental, a mudança da rígida estrutura universitária, o surgimento de movimentos ecológicos, da entrada na cena política de demandas específicas das chamadas minorias: mulheres, negros, homossexuais. Tratarei aqui de uma dimensão de 1968 que tem sido deixada de lado nos últimos anos: a especificidade do caso brasileiro e de sua relação com a forma como a sociedade brasileira lida com o seu passado ditatorial recente.

Nesse caminho, o primeiro ponto a ser destacado é o de que o ano de 1968 é indissociável de 1964. Em outras palavras, o contexto histórico brasileiro é o da existência de uma ditadura militar e de busca, por parte de setores progressistas da sociedade, de caminhos para lutar contra o  regime discricionário. Assim, pensar o legado de 1968 para a história brasileira implica discutir o significado da experiência ditatorial no país e, mais ainda, o tipo de relação estabelecida pela sociedade com esse passado.

Como ensina a historiografia recente, o  posicionamento e as disputas políticas do presente estão implicados na forma como se lida com o passado. Essa observação ajuda a compreender como autores e protagonistas políticos do período apresentam versões não apenas diferentes entre si, mas também apreciações que revelam as fissuras da sociedade brasileira no que diz respeito à ditadura militar instaurada em 1964. Nesse caminho, interessa destacar quatro idéias que formam uma interpretação sobre o período ditatorial que têm aparecido no debate público sobre 1968 e merecem ser discutidas criticamente, uma vez que implicam a construção da memória social do país.

Em primeiro lugar, há uma tendência à aceitação do discurso dos militares de que o golpe de abril foi uma reação à iminente quebra de duas dimensões da legalidade: a do país, ameaçada pelo avanço dos movimentos sociais infiltrados pelas idéias comunistas; e a das Forças Armadas, que sofriam com a insubordinação dos militares de baixa patente. Assim, diante do perigo que se avizinhava, o Exército foi obrigado a tomar o poder para impedir o alastramento do comunismo no país.

Uma segunda idéia, coerente com o exposto anteriormente, é a de que o Ato Institucional n°5 (AI-5), de 13 dezembro de 1968, foi uma reação dos militares à radicalização de setores das esquerdas brasileiras que pegaram em armas. Implícito nesta interpretação está a defesa de que caso a esquerda não tivesse optado pelo caminho das armas, não teria havido o recrudescimento do regime.

A terceira idéia diz respeito à opção da esquerda revolucionária pela luta armada. Neste ponto, é forte a corrente que apresenta os militantes das organizações que participaram das ações armadas como bem-intencionados, mas ingênuos protagonistas de uma luta esvaziada de projeto político e baseada em aspirações pessoais adolescentes.

Nesta perspectiva, o resultado da luta armada foi a violência desnecessária e o inútil sofrimento dos jovens que dela participaram1. Por fim, e coroando um tipo de interpretação que chega perto de isentar os militares pela ditadura instaurada em 1964, e aprofundada em 1968, está a noção de equivalência da violência dos militares e aquela dos militantes de esquerda, chamados de “terroristas”. Essa perspectiva aparece de forma mais clara no questionamento das indenizações recebidas por ativistas ou familiares perseguidos no período ditatorial, e na comparação com a situação dos militares que, também atingidos pela violência das esquerdas, não teriam recebido o mesmo tratamento dispensado aos militantes de esquerda2.

De acordo com este raciocínio, poderíamos concluir, por exemplo, que os militares que torturaram e mataram os militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na região do Araguaia mereceriam o mesmo tratamento que os familiares dos que foram mortos. Vale salientar que no processo de construção da memória social, o esquecimento voluntário e a distorção de determinados fatos são sempre utilizados pelas correntes em disputa. No caso do período ditatorial, são várias as tentativas de se deixar esquecer acontecimentos para que interpretações como as apresentadas acima possam ganhar legitimidade. Sem procurar traçar um quadro completo da história do período, aponto adiante alguns elementos que podem servir para questionar tais idéias.

Uma questão aparentemente óbvia, mas que por sua importância deve ser enfatizada, é a de que os argumentos utilizados pelos militares, segundo o qual o golpe de abril foi uma reação às forças políticas que ameaçavam a legalidade, não se sustentam pelos fatos. Analisando a história da primeira metade dos anos 1960, percebe-se que foram os militares, apoiados por setores civis, que romperam a legalidade democrática, sob o pretexto de um pretenso perigo comunista no país. A primeira tentativa golpista se deu em 1961, não se concretizando graças ao movimento de oposição liderado pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, o qual teve adesão nacional. Derrotados neste momento, os militares voltaram em 1964 e tomaram de assalto o poder.