Quarto ano do golpe militar no Brasil, 1968 foi único na história da democracia
Quarto ano do golpe militar no Brasil, 1968 foi único na história da democracia
Quando se fala em movimento estudantil, o tempo recua quarenta anos para assistirmos a um filme, divisor de águas no imaginário das rebeliões, dos cercos policiais, das barricadas, canções de protesto e irreverências nos costumes. Março de 1968 marcava o quarto ano do golpe militar no Brasil. A guerra do Vietnã, o Quartier Latin, em Paris, os protestos na Tchecoslováquia, o frescor da revolução cubana, a febre do maoísmo, a terra, em transe. Como um raro alinhamento dos astros, 1968 foi único na história da democracia.
Em Curitiba, sem lenço, sem documento, ouvia-se A Banda, de Chico Buarque, e o frenesi dos festivais, e João do Vale “pisava na fulô”1 num tablado da Casa do Estudante; assistia-se – na febre do cineclubismo – a Um Dia, Um Gato, Os Companheiros e Vidas Secas2. E, assim, passou a ferver o caldeirão arrogante do reitor Suplicy de Lacerda, antes ministro da Educação do presidente Humberto de Alencar Castelo Branco que, de qualquer maneira, queria inaugurar na Escola Polítécnica o ensino pago no Paraná – o famigerado acordo MEC-Usaid3. Antes, como em todo o Brasil, os estudantes foram para a rua protestar contra a sanha da ditadura que havia assassinado a inocência do secundarista Edson Luís de Lima Souto. O ano de 1968 começaria em 28 de março.
Por obra de um flagrante fotográfico, do estudante tencionando a atiradeira contra o policial militar e seu cavalo na Escola Politécnica, uma luta ganhou repercussão internacional. Em maio, os alunos protestavam para impedir a inauguração de um curso de engenharia pago numa universidade pública. O campus, ainda rarefeito e afastado do centro da cidade, era ideal para o exercício da cavalaria. Alguns se machucaram, outros foram detidos.
Dois dias depois, a resposta surpreendente: cerca de 3 mil estudantes concentraram-se bem cedo na Praça Santos Andrade, em Curitiba, de onde saíam os ônibus para a Faculdade Politécnica. Por certo, a polícia estava lá, acantonada. Mas, dissimuladamente, tomou-se outra direção − a apenas dois quarteirões encontrava-se a Reitoria da Universidade Federal do Paraná, símbolo político do arbítrio do ensino superior.
A ocupação foi cinematográfica e impressionante pela velocidade e pelo entrosamento das iniciativas. Os estudantes tomaram de empréstimo dos trabalhadores de um prédio em construção pés-de-cabra e outras ferramentas para retirar os paralelepípedos, e rapidamente ergueram barricadas. Carros oficiais que por ali passavam eram interrompidos com a mesma finalidade. Até um sistema de rádio foi utilizado, e às 8 horas da manhã a reitoria estava tomada e protegida.
Enquanto a polícia chegava com infantaria e cavalaria, mais estudantes aglomeravam-se num círculo externo. O momento mais dramático foi a derrubada do busto do reitor, narciso arrastado por jovens imberbes. Tiveram início então as negociações, com mensageiros indo até a casa do governador. Diante da iminente selvageria, prevaleceu o bom senso. E a gratuidade do ensino público. Este foi um feito que merece estar ao lado dos grandes acontecimentos que marcaram o ano de 1968 no Brasil.
O movimento estudantil do Paraná renasceu em 1965, com características bem curiosas. À época do golpe de 1964, a União Paranaense de Estudantes (UPE), entidade mais importante, estava na mão da direita. Aos poucos, ano a ano, sua composição foi avançando para a esquerda. O Diretório Central dos Estudantes (DCE) e os diretórios das grandes escolas da Universidade Federal e da Universidade Católica distribuíam-se entre as forças políticas mais reconhecidas, como o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), a Ação Popular (AP), a Dissidência Leninista e a Política Operária (Polop) ou lideranças próximas. A Igreja progressista estava lá. O mesmo aconteceu com inúmeras faculdades isoladas em cidades do Paraná, como Ponta Grossa, Londrina e Maringá, que, aos poucos, foram se alinhando com as lutas do movimento estudantil brasileiro.
Umas das disputas mais acirradas que animavam a luta estudantil no Paraná era a polarização em relação a propostas diferenciadas para o futuro da universidade, tem do em vista o resgate das reformas de base preconizadas até antes do golpe. Um embate teórico acontecia em torno da proposta Universidade Crítica, encampada pela Polop e por grupos mais próximos aos trotskistas e a de Universidade Popular, puxada pela AP e que tinha certa proximidade com o PCBR.
Militantes do movimento estudantil participavam de panfletagens nos bairros operários buscando a aliança com a “força dirigente da revolução” e apoiavam o incipiente movimento bancário. A eleição da UPE, em um confronto acirrado entre dois grupos de esquerda, foi vencida pela Dissidência Leninista e os aliados, mas pouco pôde fazer: a queda do 30º Congresso da UNE (União dos Estudantes) e a imposição do AI-5 (Ato Institucional nº 5) colocaram as entidades combativas na ilegalidade e seus dirigentes, na clandestinidade. De fato, o ano de 1968 teria seu fim em 13 de dezembro. Restaria a difícil opção entre construir um movimento de massas e a resistência armada. No Brasil, jamais nevaria tanto como naquele Natal.
José Carlos Zanetti é economista, trabalha na Coordenadoria Ecumênica de Serviço, em Salvador, e militante de Direitos Humanos. Foi vice-presidente da UPE (1967-1968) e militante da AP