Sociedade

A maioria das narrativas sobre o período centra seus personagens numa vaga “classe média”, com raras alusões a trabalhadores de setores não intelectualizados

Material apreendido pela repressão na invasão do Crusp em dezembro de 1968. Foto: Agência Estado

Pouco depois da decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-5) em 13 de dezembro de 1968, forças da repressão invadiram o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp). Nem todos os que ali moravam eram militantes e, menos ainda, engajados em organizações políticas clandestinas. Sem dúvida, porém, sua maioria esmagadora se colocava numa atitude crítica com relação ao regime, ao qual se opunham por diversos e nuançados vieses que implicavam diferentes temas e motivações e, até mesmo, “graus”: para muitos (talvez a maioria), não estava em xeque apenas o regime, mas o próprio sistema.

Era também em um salão do Crusp que aconteciam as grandes assembléias do movimento estudantil de São Paulo.

Ou seja, o Crusp era um importante centro de efervescência, discussão e ação política. Por isso, no dia 19 de dezembro, foi invadido e saqueado por tropas formadas por efetivos tão jovens quanto os estudantes que nele residiam. A presença numerosa de jovens em ambos lados dessa trincheira, por si só, já desqualifica uma leitura recorrente, mais ou menos explícita (dependendo do autor), dos eventos de 1968 enquanto resultado de um “choque geracional”.

Do butim recolhido, parte tinha destino certo: a exposição do “material subversivo apreendido”, que o regime organizou, dias depois, no saguão dos Diários Associados, no centro de São Paulo.

A exposição no saguão dos Diários Associados

O material apreendido foi classificado em três grandes blocos, expostos na seguinte seqüência: armas, literatura e subversão da moral e dos bons costumes.

No setor das armas, facas domésticas, canivetes e estiletes, além de meia dúzia de garruchas de bucaneiros, peças geralmente do século 19, muito usadas então para a decoração de ambientes, uma vez que sua serventia para qualquer combate era nula e munição para esse tipo de arma já não mais era fabricada.

No segundo setor, havia “farta literatura” subversiva. Na ausência de documentos clandestinos ou de obras de Marx, Engels, Lênin, Che Guevara, Mao Tsé-tung, por exemplo, tomavam seus lugares pilhas de livros, coroadas por títulos como O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Manual de Bombas Hidráulicas etc.

No terceiro setor, a investida dos “subversivos/as” contra “as mais sagradas tradições cristãs do nosso povo” e pela “destruição da família”. Ou seja, amontoados de caixas de pílulas anticoncepcionais e preservativos.

Por que isso é importante?

A exposição sintetizava bem o que pensavam os senhores do regime, sua visão de mundo, e qual a ordem – para além do político stricto sensu – pretendiam para o país. Cada um daqueles setores representava claramente uma esfera em que pretendiam intervir prioritariamente e com maior dureza depois do AI-5.

No primeiro setor e antes de tudo, estavam representadas as organizações da chamada luta armada, que já haviam começado suas ações naquele ano, além da tentativa da guerrilha nacionalista de Caparaó (1966-1967).

No segundo, o saber, o estudo, o pensamento, a crítica, a inteligência.

Por fim, o terceiro dizia da conservação dos costumes, da condição da mulher na sociedade, “da tradição democrática, ocidental e cristã” etc. Não podia ser diferente: o golpe foi dado com a mobilização da Liga das Senhoras Católicas, o apoio da Tradição Família e Propriedade (TFP) e da Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

Além dos alvos a serem destruídos, pelo material exposto e a forma como estava exposto ficava transparente o grau de elaboração e o patamar de sofisticação dos quais partiam os senhores do poder para definir e combater seus inimigos. Assim, tematizavam sem rebuços, como atribuição sua, a disputa política das armas, do pensamento e dos costumes, que passarão a tentar normatizar, transformando todas essas questões em questões de disputa de poder e, portanto, em questões políticas.

Ora, se é verdade que, naqueles tempos de guerra fria, todas as questões tendiam rapidamente a se “politizar” e a assumir extremados contornos ideológicos, no Brasil, a ditadura acentuou ainda mais essa tendência, levando-a ao paroxismo e, portanto, ao estágio da morbidez: era igualmente suspeito e acusado de subversivo o militante político clandestino; o jovem de roupas “estranhas” e/ou cabeludo; ou a jovem que pregasse e/ou exercesse livremente sua sexualidade antes do casamento etc., ainda que as conseqüências pudessem ser diferentes.

Por isso, não podemos falar de qualquer aspecto da vida daqueles anos em um Brasil sem tratarmos diretamente da questão da ditadura, da política, da disputa de poder. Se, numa democracia (por mais limitada que seja), costumam ser muitas as mediações e variáveis entre o comportamento cotidiano dos cidadãos e o poder de Estado, naquele contexto tais mediações e variáveis tendiam a zero.

Ou seja, em nosso país, discutir qualquer dos assuntos postos em pauta por 1968 é discutir também o regime e, muitas vezes, o próprio sistema.

Jovens estudantes da "classe média" em ação...

Um problema grave corta transversalmente as diversas representações daqueles anos, especialmente 1968. Isso está disseminado, seja em trabalhos ficcionais, acadêmicos, ou textos políticos de esquerda que acabam coincidindo com leituras e versões oficiais da direita.

Essas leituras e versões oficiais da direita têm a intenção e o objetivo muito claro de desqualificar a história daquele tempo, fazendo com que aquelas manifestações/erupções não sejam apropriadas enquanto parte da saga do povo brasileiro. O problema maior é que muitos estudiosos e artistas (de várias áreas), sem perceber, acabam fazendo eco e legitimando esse tipo de construção.

O primeiro equívoco reside na questão de classe, em que se misturam diversas questões. O discurso comum nos afirma que aqueles protagonistas eram, em sua maioria esmagadora – se não na sua totalidade – jovens estudantes da “classe média”.

“Classe média” é uma expressão impressionista que, na melhor das hipóteses, pode nos falar de determinadas faixas de renda, estabelecidas arbitrariamente a partir dos objetivos (geralmente mercadológicos) e intenções do autor que dela se utilize. Afirmar que aqueles sujeitos históricos pertenciam à “classe média” nada nos diz. Exceto se tal expressão vier carregada de um juízo de valor pejorativo (estigmatizante) e/ou se for tratado como sinônimo de “pequena burguesia”. Nesse caso, trata-se de um equívoco imperdoável, uma vez que esse último conceito, que tem outra matriz de pensamento, é bem preciso e nos diz de relação de propriedade, nos diz do pequeno proprietário de algum negócio que explora a mão de obra de um pequeno contingente de trabalhadores (assalariados), apropriando-se, portanto, de parte da mais valia por estes produzida. Esta não era a condição de classe da maioria esmagadora daqueles protagonistas que, não apenas eram filhos de assalariados dos mais diversos setores, e de chamados profissionais liberais.

Mais que isso, a maioria esmagadora desses protagonistas (e nos referimos aqui também, aos estudantes) trabalhavam, eram assalariados.

Não perceber isso, é não conseguir perceber quem eram os protagonistas daqueles acontecimentos, suas condições de classe, suas necessidades objetivas (incluídas aqui suas subjetividades), seus anseios e propostas de mudanças.

Agora, vejamos a questão dos estudantes constituírem a maioria esmagadora dos protagonistas daquele período histórico.

Dizer que alguém é estudante, não significa nada além dizer que a pessoa está matriculada em algum estabelecimento de ensino. Ou seja, por si só não nos diz de uma condição de classe e, como já vimos, a maioria desses estudantes que se engajaram (nos mais diversos níveis) nas lutas de 1968 e anos imediatamente anteriores e seguintes, vinha de famílias de assalariados, sendo que muitos deles eram igualmente assalariados.

Também é importante entendermos que, graças à política populista em curso até 1964 (seguida de lamentável capitulação no dia 31 de março), liderada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e coadjuvada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), o golpe conseguiu rapidamente destruir todas as organizações de trabalhadores – especialmente de operários e camponeses. É isso que cria o isolamento político dos partidos e organizações de esquerda das chamadas massas, e não o inverso, como costuma nos ser apresentado. Ainda que as políticas dessas organizações pudessem pecar – e efetivamente pecassem – em muitos pontos (e às vezes gravemente), não se deveu a tais organizações o “isolamento das massas”, nem elas o pretenderam, embora, enquanto conjunto, até meados dos anos 1970, não tenham conseguido elaborar estratégias e táticas capazes de superar essa situação (a maioria foi destruída antes de lograr esse sucesso).

Nesse quadro pós-1964, serão o movimento estudantil e outros setores urbanos os primeiros a reorganizar e constituir alguma força capaz de manifestar seu repúdio ao novo regime. Esses outros setores a que nos referimos inserem-se sobretudo no universo mais geral dos chamados “trabalhadores intelectuais”, como jornalistas, escritores, diretores, atores e outros profissionais de teatro e cinema, músicos e compositores, alguns setores do professorado universitário etc. Uma conseqüência disso é que as organizações políticas de cunho partidário e de ação clandestina surgidas depois do golpe crescerão, nesse momento,  fundamentalmente nesses setores, uma vez que o recrutamento de quadros e militantes se dá no interior dos movimentos e não fora deles.

Ou seja, do nosso ponto de vista, o mais correto seria entendermos que esses sujeitos (que não foram os únicos, ainda que possam ter sido a maioria e que ganhou visibilidade naquele momento) não eram “jovens-estudantes-da-classe-média”, como pretende o cacoete, mas jovens trabalhadores, cuja grande maioria ainda estudava, somados a profissionais do setor do trabalho intelectual.

Os militares nacionalistas e de esquerda, a classe operária, e o início da “luta armada"

Outro engano, que subjaz a muitas das representações daqueles anos, é entender o golpe de 1964, enquanto um “golpe militar”, e o regime que implantou, como uma “ditadura militar”. Esse equívoco oblitera o conteúdo de classe de ambos, ao mesmo tempo que se lhe confere um caráter estamental e/ou corporativo, conduzindo a um raciocínio binário e maniqueísta, estabelecendo enquanto centro da contradição os pólos militares e civis. Na verdade, tratou-se de um golpe da grande burguesia brasileira subsidiária do grande capital internacional (daí a importância e articulação com o governo e empresas de Washington), do latifúndio, da “direita ideológica”, da grande maioria da então mais alta cúpula da Igreja Católica (Estado do Vaticano), que tiveram como braço armado as Forças Armadas, cuja cúpula participou de toda a conspiração, garantindo em seguida o novo regime. O golpe foi dado por essas classes, contra um programa de reformas de interesse popular, das quais se beneficiariam os setores do capital nacional, a classe trabalhadora e o povo.

Com o golpe civil-militar de 1964, milhares de militares foram expulsos, cassados e/ou submetidos a Inquéritos Policiais Militares (os famigerados IPMs). Sobretudo na Marinha e no Exército. Muitos se organizaram e prosseguiram em sua militância. Eram geralmente nacionalistas, engajados nas reformas do governo João Goulart, e outro tanto socialistas de diferentes matizes.

A primeira manifestação de enfrentamento armado do regime foi o episódio conhecido como a Guerrilha de Caparaó (1966-1967), protagonizada fundamentalmente por nacionalistas oriundos do Exército e na Marinha. Por outro lado, durante os anos pós-golpe e 1968, diversas organizações operárias prosseguem seu trabalhos, enquanto outras são criadas. No primeiro caso, temos, apenas como um exemplo, a Frente Nacional do Trabalho, organizada pelos cristãos de esquerda. No segundo, temos as oposições sindicais, que se articulam por todo o Brasil, sendo a mais conhecida a oposição sindical metalúrgica de São Paulo. Ou seja, a classe operária (e outros trabalhadores assalariados), depois das intervenções dos governos pós-golpe, também se reorganizava.

O primeiro enfrentamento armado do regime foi conhecido como Guerrilha de Caparaó (1966-1967). Foto: Agência Estado

E é nesse movimento que eclodem, em 1968, ocupando brevemente a cena, mas marcando uma virada na concepção de sindicalismo, as greves de Osasco e Contagem, imediatamente sufocadas pelo regime. Essas greves também darão importantes quadros para as organizações políticas clandestinas.

Alguma conclusão

O fato é que a maioria das representações e leituras (ficcionais ou não, e nas mais diversas linguagens) dessa época – exceto algumas poucas memórias de militantes – ao partir de uma leitura oficial, martelada pela grande mídia comercial e legitimada por alguns trabalhos acadêmicos – acaba por centrar seus personagens numa vaga “classe média”, sobre um fundo político absolutamente distorcido e onde a classe trabalhadora e o povo ficam eclipsados pela expressão estigmatizante de “classe média”, e com raríssimas e geralmente breves alusões aos personagens oriundos dos demais setores que não os “trabalhadores intelectuais”.

Alipio Freire é jornalista, escritor e integra os conselhos editorais do jornal Brasil de Fato, da revista Fórum e de Teoria e Debate.