Internacional

Por que a década de 1960 e, seu ano símbolo, 1968, foram anos de sonhos, utopias, assaltos ao céu? As razões são muitas e variadas, mas certamente o marco internacional ajuda a compreendê-las

Tema político da década: solidariedade com a resistência vietnamita à ocupação militar norte-americana. Foto: Rex Features/Grupo Keystone

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A década de 1960, junto com a de 1920 surgiram como aquelas em que os grandes projetos anti-sistêmicos pareciam possíveis, pois foram décadas de crise hegemônica, em que as grandes estruturas de poder mundial mostravam fissuras e projetos alternativos exibiam força e pretensões. Na década de 1920, as conseqüências da Primeira Guerra Mundial, a derrota alemã – em que se concentrava a esquerda mais forte da época –, a vitória da revolução bolchevique produziram um cenário de crise hegemônica.

Grandes transformações poderiam ser previstas naquele momento, já que várias sociedades européias tinham sido profundamente afetadas pela guerra, tivessem ou não triunfado. Mas as derrotas da esquerda, em particular na Alemanha e na Itália, abriram campo para que as grandes transformações fossem fortemente regressivas, instaurando o fascismo e o nazismo. A década se concluía com a abertura de um período contra-revolucionário de massas.

Para chegar à década de 1960, o mundo passou pela Segunda Guerra Mundial – que, com o passar do tempo, assemelha-se cada vez mais a um segundo tempo, de três décadas, de uma única guerra –, que terminou por elevar os Estados Unidos a nova potência mundial, diante da superada Grã-Bretanha e da derrotada Alemanha. E, finda esta, pelo mais longo ciclo expansivo do capitalismo, que na Europa foram chamados de os “30 gloriosos”, pela expansão econômica e pela afirmação de direitos sociais, incluindo o pleno emprego.

A “era de ouro do capitalismo” – segundo Eric Hobsbawm –assistiu ao crescimento simultâneo das potências centrais do capitalismo – de suas locomotivas nesse ciclo, os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão –, de núcleos do terceiro mundo – como os processos de industrialização no México, na Argentina e no Brasil – e do recém-constituído “campo socialista”. Esse ciclo se dá com os Estados Unidos funcionando como o grande fator de reativação – com o Plano Marshall a promover a reconstrução da Europa, em particular dos países derrotados, Alemanha e Itália –, assim como do Japão e da Coréia do Sul, sob ocupação militar norte-americana.

A crise do mundo bipolar

A ascensão norte-americana institucionalizou-se com os acordos de Yalta1, que ao mesmo tempo formalizaram a constituição do “campo socialista”, sob a liderança da outra superpotência mundial, a então União Soviética. O ciclo de maior expansão econômica capitalista foi o da bipolaridade e o de maior extensão dos direitos sociais e políticos. Nesse aspecto, coincidiram, não por acaso, o antiliberalismo e o momento menos injusto do capitalismo.

A década de 1960 não se explica por fatores meramente econômicos, mas sua explosividade tem também nesse plano condimentos importantes. As maiores mobilizações populares costumam dar-se no final de um grande ciclo expansivo, quando os direitos conquistados passam a ser colocados em jogo e a expectativa de continuidade da extensão dos direitos é interrompida. O longo ciclo expansivo, responsável, junto com a força reivindicativa dos sindicatos, pelo pleno emprego, refletia correlação das forças social e ideológica, favoráveis aos trabalhadores.

As lutas dos povos do mundo eram assumidas em mobilizações, movimentos e palavras de ordem. Foto: Top Foto/Grupo Keystone

Esse ciclo revelava sinais de que se extinguia no início da década de 1960, com a diminuição do ritmo de crescimento das economias, ao mesmo tempo em que as mobilizações populares seguiam a luta pela ampliação dos seus direitos.

Do ponto de vista político, a bipolarização entre as duas superpotências revelava dificuldades para manter sob sua direção os processos políticos mundiais. A razão fundamental era o surgimento e o fortalecimento do chamado terceiro mundo, a partir da multiplicação acelerada da independência das colônias européias na Ásia e na África, paralelamente à ascensão das lutas antiditatoriais e antiimperialistas na América Latina. Ao lado desse aspecto, as divergências sino-soviéticas projetavam a China como potência autônoma, com capacidade própria de liderança internacional.

Che Guevara: a imagem que marcou a década. Foto: Anp/Spaarnestad Fotoarchief

A crise cubana foi um momento de intensificação dos conflitos entre as superpotências, que se concluiu com o desgaste nas relações entre Cuba e União Soviética, já que esta acordou uma resolução com os EUA, não tendo consultado Havana. Mas este não foi o único risco à política de “convivência pacífica”, em que a competição e a colaboração econômica afirmava a interdependência entre as duas superpotências.

A vitória da revolução cubana, como resultado de um processo de guerra de guerrilhas, favorece a multiplicação dessa forma de luta na América Latina – no Peru, na Guatemala, na Venezuela, somando-se a elas Colômbia e Nicarágua –  e também na África (como na Argélia, no Congo, em Angola, em Moçambique, na Guiné-Bissau, no Marrocos, entre outros) e na Ásia. Aqui, a resistência vietnamita lutava contra a ocupação militar norte-americana, depois de haver derrotado forças japonesas e francesas, luta que se estenderia ao Laos e ao Cambodja, além das lutas na Indonésia – vítima de um dos maiores massacres do século 20, para contê-la.

A extensão das lutas guerrilheiras, incentivadas e apoiadas por China e Cuba, as duas maiores lideranças emergentes, questionava a política de “coexistência pacífica” entre Estados Unidos e União Soviética. O Movimento de Países Não-Alinhados2 organizava as forças da periferia, onde disputavam liderança China e Cuba.

Alegando que o modelo de desenvolvimento econômico soviético era reprodução dos capitalistas, a China acentua suas divergências com a União Soviética e passa a criticar a política de coexistência pacífica e os acordos de desnuclearização, que mantinham esse poder nas potências que já dispunham dele, bloqueando o acesso dos novos países à tecnologia nuclear. A intensificação da polêmica é posta em prática pela China em seu processo de “revolução cultural”, ao radicalizar as posições defendias por Mao-Tsé-tung até caracterizar a União Soviética como “imperialista” ou “social-imperialista” –  social nas palavras, e imperialista de fato.

Essa caracterização soviética como imperialista a igualava aos Estados Unidos, definindo os conflitos entre ambos como divergências interimperialistas. Trata-se, assim, de romper com essa bipolaridade entre as superpotências. Porém, a análise chinesa radicalizava-se mais ao definir o imperialismo norte-americano como decadente –  chamado de “tigre de papel” –, enquanto o soviético seria mais perigoso, por ser ascendente. Colocavam-se assim as premissas para concentrar a luta contra a como inimigo fundamental − o soviético −, assim como abrir espaço para uma aliança tática com os Estados Unidos –, o que só se concretizaria no início da década seguinte, em 1971, com a visita do presidente Richard Nixon a Pequim.

Cuba buscava espaços para as lutas guerrilheiras nos três continentes, coordenadas na Tricontinental e na Organização Latinoamericana de Solidariedade (Olas)3 ambas constituídas em reuniões na capital cubana. Trazia diferenças com a União Soviética –  principalmente em relação aos Estados Unidos – e com a China, porém procurava não aprofundar conflitos com esses países. Na América Latina, as diferenças eram mais acentuadas pela presença dos partidos comunistas, que em quase todos os países apresentavam conflitos com os movimentos guerrilheiros, na definição das estratégias nacionais.

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A resistência vietnamita

O tema político aglutinador da década de 1960 foi a solidariedade com a resistência vietnamita à ocupação militar norte-americana. A luta dos vietnamitas recebia solidariedade da União Soviética, da China, de Cuba, dos movimentos de libertação e grande parte dos governos dos três continentes periféricos. Para o governo norte-americano pareciam representar simplesmente mais uma incursão militar, entre tantas outras, fácil, por atacar um país atrasado, agrícola, produtor de arroz. Tratava-se de obter sucesso onde Japão e França –  potências coloniais decadentes –  haviam fracassado, de “dar uma lição”, que tivesse eco em outros países onde se desenvolviam lutas guerrilheiras.

No entanto, a força demonstrada pela resistência vietnamita levaria a política norte-americana a desenvolver uma escalada militar cada vez mais intensa, chegando ao contingente de 700 mil soldados naquele país, a minar o porto de Hanoi, a utilizar Napalm para atacar zonas de ação da guerrilha. As atrocidades sucediam-se, exibidas pela imprensa internacional; a quantidade de mortos norte-americanos enfraquecia a coesão interna, intensificando-se tanto a solidariedade internacional com o Vietnã, como as lutas internas  norte-americanas pela retirada das tropas, pela negação de se incorporar às Forças Armadas norte-americanas e pela deserção dos soldados já incorporados.

Além do movimento pacifista, a coesão interna norte-americana era afetada também por outro movimento: a luta pelos direitos civis, que buscava terminar com as discriminações raciais ainda existentes no país. Essa combinação levaria à maior crise de legitimidade do sistema político norte-americano, porque ela se dava no marco de outros acontecimentos, como os assassinatos do presidente John Kennedy, do seu irmão, o então secretário de Justiça Bob Kennedy e dos líderes negros Malcom X e Martin Luther King. Essa ruptura da unidade interna durante uma guerra externa costuma ser fatal ao sucesso bélico, e desenhava-se, surpreendentemente, uma grave derrota dos Estados Unidos.

A centralidade da luta contra o imperialismo norte-americano favorecia extensa solidariedade aos vietnamitas. Pouco antes da sua morte na Bolívia, Che Guevara havia lançado sua mensagem à Tricontinental, em que, depois de criticar como as divergências entre China e União Soviética enfraqueciam o apoio ao Vietnã, que assim encontrava-se solitário diante dessas divisões em um campo que deveria estar unificado diante do imperialismo norte-americano. Che destacava a centralidade da luta dos vietnamitas de resistência à invasão norte-americana e como dela dependia o futuro da luta antiimperialista. Mas concluía, destacando a melhor forma de solidariedade com os vietnamitas, e um dos grandes lemas daquele ano: “Criar dois, três... muitos vietnãs”.

Na Europa ocidental, especialmente na França e na Alemanha, formaram-se grande quantidade de comitês de solidariedade ao Vietnã, que congregaram os estudantes e deram início às mobilizações que desembocariam nas barricadas de 68. Um deles, o da Universidade de Nanterre, na França, foi o desencadeador das lutas de maio de 68. Bastaria isso para destacar o papel fundamental que os temas internacionais, em particular a solidariedade com os vietnamitas e contra o imperialismo norte-americano, tiveram em todas as lutas da década de 1960.

O internacionalismo, a solidariedade

A imagem que marcou a década foi a de Che, especialmente depois da sua morte, em outubro de 1967. Suas citações – além da já mencionada sobre o Vietnã –  povoaram as lutas e o imaginário políticos e ideológicos: “O dever de todo revolucionário é fazer a revolução”; “É preciso endurecer, sem perder a ternura, jamais.”; “o verdadeiro revolucionário é feito de grandes sentimentos de amor”.

Sua imagem passou a representar a rebeldia, o compromisso ético da militância revolucionária, a solidariedade internacionalista, expressa da forma mais concreta na sua gesta no Congo, primeiro, na Bolívia, em seguida. O movimento dos anos 1960 tinha um forte componente internacionalista, solidário. Todas as lutas dos povos do mundo eram reivindicadas pelas mobilizações, pelos movimentos, pelas publicações, pelas palavras de ordem.

Líder estudantil Daniel Marc Cohn Bendit, em maio de 1968. Foto: Top Foto/Grupo Keystone

Em um caso concreto, em maio de 1968, quando o líder estudantil Daniel Marc Cohn-Bendit foi proibido de reingressar na França, onde vivia, embora fosse alemão de nascimento, os movimentos cunharam a expressão: “Somos todos judeus alemães”, de forma similar ao que havia feito a Comuna de Paris, quando, em pleno conflito bélico da França com a Alemanha, nomeou como ministro do Trabalho um operário alemão, para mostrar que os interesses dos trabalhadores de todos os países eram os mesmos e se situam por sobre os conflitos bélicos entre as burguesias dos vários países.

Emir Sader é secretário executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso)

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