Cultura

Nosso cinema viveu um dos momentos mais ricos de sua trajetória e foi pensado como um instrumento de transformação do Brasil

Glauber Rocha: parábolas visionárias sobre os impasses de 'Um Brasil Arcaico'. Foto: Agência Estado

O ano de 1968 foi sonho e pesadelo. A juventude, os operários e a classe média esclarecida saem às ruas para enfrentar o regime militar. Eletricidade e adrenalina permanentes no ar, a sensação palpável de ser agente ativo da história, o sentimento quase concreto de que a revolução está para acontecer, a vida pulsa forte nos corações idealistas dos brasileiros que querem tomar os céus de assalto... Mas a realidade caminha na contramão dos desejos libertários, freados pela instituição do AI-5.

E o cinema? O Cinema Brasileiro (com iniciais maiúsculas) viveu um dos momentos mais ricos de sua trajetória de constantes altos e baixos. Nessa época, o movimento que ficou conhecido internacionalmente como Cinema Novo encontrava-se no auge de sua primeira fase. A fase mais livre, ousada e politicamente descarada. Os filmes de Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 graus, de 1955, Mandacaru Vermelho, de 1961 e Vidas Secas, de 1963) marcam o início desse ciclo. Surge uma jovem geração de cineastas – Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Santos, Cacá Diegues, Ruy Guerra – que expõe despudoradamente nas telas o Brasil profundo e suas contradições. O cinema é pensado como um instrumento de transformação da realidade e se contrapõe às superproduções de Hollywood. No time dessa talentosa geração, o genial cineasta-filósofo Glauber Rocha produz parábolas visionárias sobre os impasses de um Brasil arcaico que se prepara para entrar (à força) na modernidade. Estávamos às portas do milagre econômico e, com um viés de ultra-esquerda, Glauber também sonhou com o Brasil-potência.

O filme mais emblemático e importante do período, que consegue concentrar em duas horas de celulóide a metáfora de uma época, é Terra em Transe (1967). Nesse filme premonitório sobre o fracasso da revolução social, concebido como uma alegoria-realista, Glauber condensa os enclaves intransponíveis que o Brasil vivia no período. Com um subtexto quase panfletário, que sugere a via armada como o caminho para a libertação, o complexo drama político-existencial resume o espírito da época. Proibido pela ditadura, Terra em Transe choca os mais conservadores, mas é exibido e premiado no Festival de Cannes de 19671. Na trama, na República fictícia de Eldorado, o personagem principal − o jornalista e poeta interpretado pelo ator Jardel Filho − quer mudar a situação de miséria e de injustiça que assola a República. O herói busca o apoio do maior empresário do país para deter o avanço de uma multinacional estrangeira sobre o capital nacional. Problemas sociais e corrupção arruinarão suas intenções... “Durante duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravilhado com umas das cenas finais de Terra em Transe. Refiro-me ao momento que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar, e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade mansa, translúcida, eterna: o povo é débil mental (...)”, concluiu Nelson Rodrigues, ao jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, de 16 de maio de 1967.

Cena de 'O Bandido da Luz Vermelha', de Rogério Sganzerla. Foto: Acervo Iconographia

Na década de 1960 as principais obras cinematográficas formam um multifacetado painel do buliçoso contexto político. Muitos desses não são explicitamente engajados, mas remetem a uma reflexão humanista sobre as mazelas do país. Cinco Vezes Favela, de Marcos Farias, Joaquim Pedro de Andrade, de Carlos Diegues, de Leon Hirzman e Miguel Borges (1961); Os Fuzis, de Ruy Guerra (1963); Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1963); Ganga Zumba, Rei de Palmares, de Cacá Diegues (1963); O Desafio, de Paulo César Saraceni (1965); Fome de Amor, de Nelson Pereira dos Santos (1967); Opinião Pública, de Arnaldo Jabor (1967); O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1968); Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. (1968); O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl (1968); Desesperato, de Sergio Bernardes Filho (1968); Jardim de Guerra, de Neville de Almeida (1968); Lance Maior, de Silvio Back (1968); Cara a Cara, de Júlio Bressane (1968); e, para fechar o ciclo deste simbólico conjunto de obras, dois marcos imperdíveis do Cinema Novo: O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, ambos de 1969.

Até então, o cinema nacional nunca havia voltado seu olhar de forma tão penetrante e crítica para a realidade do povo. É o momento da consagração do cinema de autor em todo o mundo; o novo cinema alemão, a Nouvelle Vague francesa, o cinema japonês, movimentos nacionais que beberam no neo-realismo italiano dos anos 1950. Assim, nos anos 1960, os conteúdos e contextos dos filmes brasileiros mais importantes foram políticos. A política estava na ordem do dia, no primeiro plano, à flor da pele. O Cinema Novo denunciava a condição do povo e falava em nome do povo, mas foi muito pouco ou nada visto pelo próprio povo...

As imagens e o cinema que ainda estavam impregnadas nas retinas e nos corações da massa eram as divertidas chanchadas da Vera Cruz e os ingênuos musicais da Atlântida dos anos 1950, Grande Otello, Mazzaropi e outros artistas populares. O povo ficou alheio à intensa produção intelectual do Cinema Novo, que fazia uma leitura sofisticada, mas elitista do ponto de vista da forma e narrativa de seus filmes. Já a classe média nunca gostou do cinema brasileiro, este artigo estranho, meio sujo e incômodo. Até hoje permanece profundo o preconceito contra o produto nacional. O patinho feio sempre percorreu a contramão das tendências da classe média urbana, que cresceu vibrando com os filmes de ação dos estúdios norte-americanos. São décadas ininterruptas de um sedutor condicionamento cultural aplicado pelo cinema hegemônico. O Cinema Brasileiro, ao espelhar a imagem de nós mesmos, induz mais à reflexão que ao entretenimento. Mas, em 1968, as questões de mercado eram ainda secundárias, e a produção cinematográfica estava antenada com a efervescência histórica.

O fechamento do regime e a violência da repressão marcam o fim dessa fase voluntarista do Cinema Novo. A  censura e o medo arrefecem a produção dos filmes incendiários. A verdadeira realidade brasileira desaparece da tela, e apenas retornaria com vigor no final da década de 1970, com a anistia. O regime militar cria, em 1969, a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima)2, que enquadra e coopta o cinema rebelde em um projeto comercial de ocupação de mercado. Hoje, os poucos remanescentes do Cinema Novo estão acomodados nas trincheiras conservadoras da produção intelectual e  cinematográfica contemporânea.

Nos anos 1970, nasce o Cinema Marginal, que vem se contrapor à segunda fase do Cinema Novo, mais cordial e menos contestatória. Glauber entra em conflito com seus pares, aninhados na Embrafilme, e isola-se num aflitivo auto-exílio por África, Cuba e Europa. Cabeças Cortadas (1970), O Leão de Sete Cabeças (1970), Câncer (1972); História do Brazyl (1974); As Armas do Povo (1974); Claro (1975); e, já de volta ao Brasil, no auge de sua piração, faz seu último filme-manifesto, A Idade da Terra (1980). O polêmico cineasta-escritor-pensador morre em 1981, aos 41 anos, amargurado e ressentido com o país e os amigos que o abandonaram.

Cartaz do filme 'Deus e Diabo na Terra do Sol'. Reprodução

A produção pós-1968 reflete a perplexidade e a fragmentação dos anos barra-pesada. Os temas passam a ser mais cifrados, as narrativas, mais metafóricas. Ainda em 1969, resultado de filmagens produzidas nos anos anteriores, há o lançamento de alguns títulos vinculados à realidade política − um hiato que só se retomará com a abertura e a redemocratização: de 1969, As Armas, de Astolfo Araújo, Os Herdeiros, de Cacá Diegues, e Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite; de 1970, Vozes do Medo, de Roberto Santos, Maurice Capovilla e Aloysio Raolino, Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra, e Pindorama, de Arnaldo Jabor; de 1971, Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade; de 1976, A Queda, de Ruy Guerra e Nelson Xavier, e À Flor da Pele, de Francisco Ramalho Jr.; de 1979, Memórias do Medo, de Alberto Graça; Paula, A História de uma Subversiva, de Francisco Ramalho Jr., O Torturador, de Antonio Calmon, e E Agora, José, de Ody Fraga.

O Cinema Brasileiro de 1968 esteve sintonizado com a luta e a resistência contra a ditadura, na vanguarda das idéias progressistas e da linguagem cinematográfica mundial. Viveu e sofreu as conseqüências do movimento pendular da história política recente do país, refletindo seus avanços e refluxos. Um cinema engajado com as idéias essenciais da construção da identidade nacional. Um cinema que marcou profundamente as novas gerações, que criou um olhar novo sobre o Brasil que perdura até hoje. No século 21, os filmes nacionais mais populares são aqueles que têm vínculo orgânico com a realidade social – Central do Brasil, de Walter Salles (1998); Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2002); Carandiru, de Hector Babenco (2002); Tropa de Elite, de José Padilha (2007), entre outros. Não poderia ser diferente. O artista anda onde o povo está.

Toni Venturi é cineasta, diretor, entre outros, de O Velho: a História de Luis Carlos Prestes (1996), e Cabra-Cega (2004)