Cultura

O teatro brasileiro dos anos 1960 produziu notáveis encenações que possibilitavam à sociedade refletir sobre suas próprias mazelas e virtudes

Foto: Acervo Iconographia

De uma maneira simples e redutora, admito, mas incontestável, pode-se afirmar que Bertolt Brecht juntou o marxismo ao teatro. Defendeu o teatro, e a arte como um todo, num quadro de responsabilidade e consciência social, a lutar contra a opressão e a injustiça. Entre duas guerras mundiais e acossado pela ascensão do nazismo na Alemanha, o grande dramaturgo e teórico alemão propôs novos caminhos para a arte dramática, todos eles de grande poder transformador em cena e fora dela.

Em seu artigo, escrito em 1930, intitulado “Teatro Recreativo ou Teatro Didático?” (Brecht, 1963), Brecht faz um de seus inúmeros questionamentos ao espectador burguês, que considera o bom teatro aquele em que ele, o espectador, chora com aquele que chora e ri com aquele que ri. Uma atitude que pode ser entendida como de empatia e recreação ao mesmo tempo. Ao contrário, especula Brecht, não seria o bom teatro aquele em que o espectador ri daquele que chora e chora daquele que ri? Atitude que traz em si o germe da contradição, mas que pode possibilitar também o despertar da consciência crítica, do aprendizado humano por meio das lutas sociais, uma das propostas do seu teatro épico.

Artistas de manifestam contra a censura e o arbítrio em São Paulo (1968). Foto: Acervo Iconographia

Faço essa ligeira consideração inicial a propósito do teatro que se praticou no Brasil em boa parte dos anos 1960, mais especificamente o modelo de teatro que procurou incorporar ao dia-a-dia de alguns grupos, conscientes ou não, algumas das teorias brechtianas. Uma atitude ou, melhor dizendo, uma estética que retirava da realidade do país a seiva para a criação de notáveis encenações e que devolvia à sociedade desse país a possibilidade de refletir sobre suas próprias mazelas e também sobre suas virtudes.

Prova dessa prática são, entre outras, as encenações de Os Pequenos Burgueses (1963), Roda Viva (1967) e O Rei da Vela (1967), pelo Teatro Oficina, e Tartufo (1964), Mandrágora (1962) e Arena Conta Zumbi (1965), pelo Teatro de Arena; Morte e Vida Severina (1965), pelo Tuca, ou Os Fuzis da Sra. Carrar (1968), pelo Tusp, ou ainda Opinião (1964) e Liberdade, Liberdade (1965), pelo Grupo Opinião, Terror e Misérias do III Reich (1966), pelo Grupo Decisão e a lista não se esgota aqui. Há toda uma literatura a respeito desse período nas obras de Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Iná Camargo Costa, Augusto Boal, Fernando Peixoto, Renata Pallottini e Anatol Rosenfeld, entre outros.

O teatrólogo Augusto Boal

e  (abaixo) cena da peça Os fuzis da Sra. Carrar (1968)

O teatro lírico, declamativo e aportuguesado do final do século 19 e início do século 20, a estética convencional burguesa exibida nos palcos de formato italiano nos anos 1940 e 1950 e as grandes companhias de estrelas foram substituídos pelo incipiente trabalho de criação coletiva no final dos anos 1950 e início dos 1960, quase um caminho natural trilhado pelo teatro brasileiro no século 20. Sobretudo após o final da Segunda Guerra Mundial, com os problemas advindos da reorganização do sistema capitalista, e nessa altura confrontados com a ascensão comunista na Europa e na Ásia, bem como a luta de emancipação de países do Terceiro Mundo e os conflitos sociais internos provocados nesses países, acabou-se por colocar nos palcos e nas arenas do Brasil uma nova maneira de encarar o teatro, uma nova maneira do “fazer teatral”.

Convencionou-se dizer que o “homem brasileiro subia ao palco, ombreando-se aos grandes heróis da dramaturgia clássica universal”: a classe média com Nelson Rodrigues, os operários urbanos com Gianfrancesco Guarnieri, o homem do interior com Jorge Andrade, o nordestino esperto com Ariano Suassuna, os marginais com Plínio Marcos. Conscientemente ou não, repito, um dos conceitos de Brecht permeava esse novo teatro, o da luta pelos oprimidos. E o golpe de Estado, em março de 1964, aprofundado com o AI-5, em dezembro de 1968, acabaria por unir atores, diretores, cenógrafos, dramaturgos, técnicos, artistas de modo geral que, saindo de suas diversas experiências estéticas, encontravam-se nas ruas, nos palcos, nas universidades, nos sindicatos para protestar contra o arbítrio e a censura. Em 1968, o teatro brasileiro, ou boa parte dele, era motivo de preocupação para os ditadores de plantão.

Ainda segundo Brecht, “o revolucionário lembra sempre aos oprimidos, em qualquer circunstância, a sua difícil situação, a fim de que não se acostume a ela, e os chama à luta” (Nieto, 1997). No teatro isso se dá por  intermédio de um “aprender prazeroso, um aprender feliz e combativo. Se não existe esse aprendizado divertido, então o teatro, por sua estrutura, seria incapaz de ensinar” (Idem, ibidem). A luta em muitos de nossos palcos se fazia com um didatismo inteligente, em que a qualidade e o apuro das encenações, o formato encontrado para a apresentação de cada uma das peças escolhidas, a interpretação adequada, permeavam uma atitude de insubordinação e contestação ao status quo e, no caso específico de ano de 1968, incitava à não aceitação das imposições de um governo autoritário.

Não será por acaso que a direita fascista de então, infiltrada nos órgãos de repressão do Estado e também em organizações paramilitares como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), preocupou-se em invadir teatros, seqüestrar atores e amedrontar a classe teatral com cartas e telefonemas anônimos. Disso, é famosa e emblemática a invasão do espetáculo Roda Viva, em São Paulo em 18 de julho de 1968, e o seqüestro de atores da mesma encenação em Porto Alegre. É também digno de menção o programa de debates Pinga Fogo da extinta TV Tupi, com a participação de Augusto Boal, em que o dramaturgo e teórico explicava para as câmeras, didaticamente, como um comentarista de futebol, o que se passava no próprio debate, o que significava tal opinião e por que um dos interventores do debate se posicionava de tal ou qual maneira.

Toda essa agitação, essa disposição para a luta, estava ligada, é claro, a um momento muito especial da história brasileira contemporânea, no qual alguns setores da sociedade procuravam marcar a sua posição contra o estado de exceção que vivia o país, alguns de viés nacionalista ou pacifista e outros até de caráter socializante. A ligação entre o teatro e as universidades e muitos dos sindicatos operários e camponeses era uma realidade. O momento exigia das pessoas consciência política e cidadania. Afinal, o homem de teatro e não só, era antes de tudo um cidadão, com seus direitos e deveres e, portanto, nada mais natural que fizesse da sua profissão um instrumento de participação e intervenção social. Uma memória que não se deve apagar. Uma memória a não se perder para os dias que correm...

Cláudio Abramo, no livro A Regra do Jogo, em crônica escrita em 1980 lembrava que “os brasileiros esquecem tão facilmente as coisas ruins como as boas... como um véu escuro, a alienação faz esquecer o episódio do Hotel Glória com (a prisão de) Callado, Flávio Rangel, Paulo Francis e outros; Mário Pedrosa obrigado a exilar-se aos 71 anos de idade, algo que nem Franco pensaria fazer com um inimigo; a resistência surda, que explodiu no assassinato de Vlado Herzog, em São Paulo; Paulo Emílio Salles Gomes, defendendo, solitário e único, a imagem do líder estudantil José Dirceu, caluniado por uma vigarista; Antonio Candido, Florestan Fernandes, Sergio Buarque de Holanda, Rocha Barros, Plínio Marcos (...); Mino Carta denunciando em artigos torturas e abusos. Não cito mais nomes, mas o Doi-Codi [Destacamentode Operações de Informações − Centro de Operações de Defesa Interna] os conhece... Cito-os pedindo a outros que completem a lista, com testemunhos, para que amanhã não se diga que os fatos foram diversos e que os personagens foram diferentes, como costuma acontecer neste país de Garambobos.” (Abramo, 1988)

Contudo, a ditadura se arrastaria por alguns anos, mais exatamente até 1985, apesar da anistia em 1979, da criação do Partido dos Trabalhadores em 1980 e de uma razoável liberdade de expressão e incipiente reorganização política. Apesar da grande campanha pelas diretas, em 1985, a eleição de Tancredo Neves ainda se deu por via indireta, o Congresso Nacional sob vigilância militar. São vinte anos de lavagem cerebral, de tentativa de destruição do pensamento coletivo, de “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, de injeções conservadoras de “moral e cívica” nos currículos escolares, de valorização do esforço individual em detrimento do pensamento solidário, de mercantilização das artes e do próprio cidadão. Tal quadro faria refluir a arte de intervenção social, com o crescimento e a expansão de uma dramaturgia de telenovelas e de um teatro não por acaso chamado de “teatro do besteirol”.

Em artigo que escrevi em 2001, eu chamava a atenção para o fato de que “como toda a arte é política, mesmo aquela que nega esse enunciado, era natural que tudo que cheirasse a socialismo, humanismo cristão ou socialista, solidariedade de classe, emancipação de direitos, coletivismo fosse combatido pelo pensamento repressivo que tomou conta do país. Pensamento este que já trazia a semente de um impiedoso individualismo” (Almada, 2001).

Ao assumir os primados da economia de mercado, o país ergueu a sua nova palavra de ordem:rumo ao capitalismo de Primeiro Mundo.Competitividade passou a ser o nome do jogo. O mais competente vence. Privatização da empresa pública e das riquezas nacionais. Programas de investimentos no setor das artes, de preferência o dinheiro público, por meio dos incentivos fiscais. E, aos poucos, a arte vai assumindo com maior nitidez o seu lado de troca mercadológica. O lucro move todas as atividades. Como o fazer artístico não exige a prática de um cirurgião no manejo do bisturi, o valor estético das obras de arte muda a sua natureza: a boa mercadoria é aquela que vende. E para vender faz-se uma boa publicidade com atores globais, subvertendo-se assim o significado de qualidade.

Mas a História, que não acabou, retoma na passagem do século 20, para o século 21 o espírito do teatro de grupo e antimercantilista. E São Paulo, na liderança desse movimento, repõe em cena com muitos de seus jovens grupos o espírito de 1968, revigorado com a traumática experiência de enfrentar os profetas do neoliberalismo. É a força do teatro com seus mais de 2.500 anos...

Bibliografia

Abramo, Cláudio. A Regra do Jogo. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 121-122

Almada, Izaias. “Venturas e Desventuras do Teatro Brasileiro”. Revista Comunicação & Educação, n. 21, ECA/USP, maio/agosto de 2001, p. 87-94.

Brecht, Bertolt. Écrits sur Le Théatre. Paris, Editions L’Arche, 1963, p. 110-119.

Nieto, Ramon. El Teatro, Historia y Vida. Madri, Acento Editorial, 1997, p. 59-61.

Leia também

Boal, Augusto; Guarnieri, Gianfrancesco. Arena Conta Tiradentes. São Paulo, Sagarana, 1967.

Ridenti, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro, Record, 2000.

Magaldi, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo, Global, 1996.

Campos, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes, São Paulo, Perspectiva, 1988.

Chiarini, Paolo. Bertolt Brecht. São Paulo, Civilização Brasileira, 1967.

Garcia, Silvana (org.). Odisséia do Teatro Brasileiro. São Paulo, Senac, 2002.

Mattos, David José Lessa. O Espetáculo da Cultura Paulistana, teatro e TV em São Paulo. São Paulo, Codex, 2002.

Revista Dyonisos, edição especial sobre o Teatro de Arena, 1978.

Rosenfeld, Anatol.Teatro Moderno. São Paulo, Perspectiva, 1985.

Izaías Almada é escritor, dramaturgo e roteirista. Autor, entre outros, dos livros Teatro de Arena: Uma Estética de Resistência (Boitempo) e Venezuela – Povo e Forças Armadas (Casa Amarela)