Economia

Um projeto de desenvolvimento deve mobilizar a sociedade para construir um Brasil com participação política

O país está diante de um momento histórico decisivo. O projeto neoliberal que governou o Brasil nos últimos 30 anos entrou em crise. Não entregou o que prometeu.

Os neoliberais propunham reformas conservadoras do Estado e da sociedade como condição para haver crescimento econômico. Erraram. O Brasil fez somente parte das reformas que sugeriram, mas cresceu o dobro do que previram. Valorizavam excessivamente os programas sociais focalizados na transferência de renda, contrapondo-os aos aumentos reais do salário mínimo propostos pelo governo Lula. Erraram novamente, a pobreza foi reduzida e as desigualdades tornaram-se menos abissais graças, principalmente, ao crescimento econômico e à valorização efetiva do salário mínimo. Propunham a desvinculação do salário mínimo dos benefícios pagos pela Previdência Social. Erraram mais uma vez, são os benefícios de um salário mínimo pagos pela Previdência que explicam de forma decisiva a melhoria da qualidade de vida de milhões de indivíduos, inclusive daquelas crianças dependentes dos idosos beneficiários.

Os neoliberais estão sem discurso, estão sem agenda. Não têm um projeto de país para apresentar à sociedade, tal como fizeram nos anos 1990, quando, investidos de autoridade intelectual e capital político, propunham e realizavam desregulamentações, programas sociais focalizados, redução de direitos constitucionais, aberturas financeiras, reformas conservadoras e privatizações. Agora, estão envolvidos apenas em problemas conjunturais. Perderam terreno. Isso ocorreu, em primeiro lugar, porque não passaram no teste da vida. A realidade negou o experimento liberal. Seus representantes já perderam as eleições em sete países da América do Sul: Brasil, Argentina, Venezuela, Uruguai, Equador, Bolívia e Paraguai. Em segundo lugar, porque o governou Lula se reorganizou em novas bases. Os políticos conservadores que trabalhavam a favor das idéias neoliberais foram afastados, ou melhor, não tiveram condições de permanecer no governo. Os técnicos que trabalhavam para esses políticos foram premiados. Muitos estão ocupando cargos no mais elevado escalão do sistema financeiro privado recebendo altíssimos salários. De lá, continuam a batalha, principalmente, defendendo um regime de juros elevados para a economia brasileira.

A direita liberal brasileira agoniza, mas continua atirando. Vota irresponsavelmente contra a CPMF, sabendo que estava votando contra a saúde de milhões de brasileiros. A oposição conservadora busca, ainda, com lentes de aumento udenista, atos de corrupção do governo em cada gabinete ou cozinha de prédios oficiais, mas essa agenda se mostra impotente. Sem rumo, ela demonstrou no Senado Federal sua simpatia pela ditadura militar que atrasou o Brasil por mais de 20 anos. Foi patética a cena de desmoralização pública da oposição durante a recente argüição da ministra Dilma Rousseff neste episódio no Senado Federal. Sobre as reformas que propunha, seus mais importantes articulistas agora utilizam um novo argumento: as reformas seriam necessárias para manter o crescimento que teria ocorrido por obra do acaso. Em outras palavras, já reconhecem que tais reformas não eram necessárias como condição de partida, agora tentam colocá-las no papel de condição de continuidade. Estão tendo o apoio de representantes das agências de rating para reproduzir essa novidade. Eles nos dão um rótulo de valor questionável investment grade (segundo eles, uma carrot) e nos ameaçam com a possibilidade de tropeço : sem as reformas conservadoras (o stick correspondente), o país não sairia do atraso.

Os neoliberais brasileiros foram coerentes. Atrofiaram seus neurônios da criação porque as soluções viriam de fora. Desenvolveram apenas seus neurônios da reprodução: diziam e repetiam aqui o que era formulado acima do Equador. Agora, sem input estão sem output: estão sem capacidade de criar para a realidade brasileira. Contudo, estão firmes e têm vencido o debate conjuntural em algumas áreas importantes. Têm conseguido manter um regime de elevadas taxas de juros. Não pode haver qualquer ilusão: esse regime é o freio que impedirá a continuidade do crescimento.

O momento é histórico e decisivo exatamente por essas características. Primeiro, o projeto neoliberal encontra- se esvaziado, mas ainda suspira com alguma força. Segundo, um projeto de desenvolvimento precisa ser formulado e ganhar corações e mentes da elite e da sociedade brasileiras. Terceiro, os conservadores, após o naufrágio de seu projeto estrutural, se agarraram todos (e são muitos) no “bote” conjuntural da luta contra a inflação e pela manutenção do regime de altos juros.

Um projeto de desenvolvimento é algo muito mais amplo que um projeto de crescimento econômico. Um projeto de desenvolvimento deve mobilizar a sociedade para construir um país com participação política permanente e decisória. O objetivo deve ser um país avançado tecnologicamente, com grandes empresas estatais e privadas; com empregos e moradia dignos para todos; com um sistema tributário justo e progressivo; deve ser um país ambientalmente sustentável e com um sistema de seguridade social sofisticado, de qualidade e de acesso universal – onde sistemas públicos e gratuitos de saúde e educação para diferentes níveis e necessidades sejam partes integrantes indispensáveis. Isso é desenvolvimento.

Embora crescimento não seja sinônimo de desenvolvimento, é forçoso reconhecer que sem crescimento econômico não haverá desenvolvimento. O financiamento do bem estar, da tranqüilidade e da segurança social é feito com a arrecadação de impostos e com o gasto adequado do orçamento público. A arrecadação depende de duas variáveis: da alíquota média de impostos e do tamanho da economia. Portanto, quanto maior o crescimento, maior será a arrecadação e maiores as possibilidades de gastos públicos serem realizados de forma adequada com o projeto de país que desejamos, uma nação desenvolvida. Sem crescimento, as possibilidades se reduzem quase a zero. Não há, então, como objetivar uma sociedade desenvolvida sem desmontar as travas do crescimento.

O Brasil tem, ainda, muitas travas ao crescimento e, em conseqüência, ao desenvolvimento. A mais importante de todas as travas é o conformismo da sociedade brasileira com a situação atual. É a perda da capacidade de se indignar de cada cidadão. Essa é a maior trava que temos: a perda da capacidade de ser rebelde, de sonhar com um país em que barreiras materiais à felicidade inexistam. É preciso recuperar a rebeldia. É preciso desconfiar também daqueles que dizem que manter o regime de altos juros (conhecido também como “metas de inflação”) é um regime que favoreceria os pobres porque impediria a volta da inflação.

A política de juros praticada diariamente é uma das mais fortes ligações entre ações econômicas realizadas no curto prazo com o país que podemos ter no futuro. Esta é uma questão fundamental. Os juros elevados contêm de fato a inflação. Entretanto, contêm também o desenvolvimento porque reduzem o ritmo de crescimento da economia, provocam desemprego, aumentam os gastos com o pagamento do serviço da dívida pública, comprimem os gastos governamentais nas rubricas sociais e estimulam uma cultura paralisante do país: é melhor investir financeiramente que investir na geração de renda e empregos.

A inflação atual não ocorre somente no Brasil. Na China, deve alcançar neste ano 8% e, na Índia, aproximadamente 6%. No Brasil, está prevista para ser um pouco mais elevada que 5%. A causa da inflação mundial é o aumento do preço do petróleo e dos alimentos. A elevação dos juros, em qualquer país em desenvolvimento, vai desaquecer a economia e reduzir o ritmo de geração de empregos. Pode diminuir a inflação porque serviços e produtos não-comercializáveis no mercado internacional vão ter seus preços contidos pela falta de demanda, ou seja, pelo desemprego. Em outras palavras, a manutenção do regime de altos juros no Brasil não é capaz de atacar as causas da inflação, que está no plano internacional. Mas poderá conter a inflação, causando uma distorção de preços relativos, isto é, tornando os preços de serviços e não-comercializáveis muito mais baixos que os preços dos alimentos e do combustível. Esse é o método de atacar os sintomas da doença, e não suas causas.

Um país em rota de desenvolvimento deve ter um regime de juros baixos. O método escolhido de combate à inflação não pode ser contraditório com o objetivo do desenvolvimento de ser uma sociedade de pleno emprego. A inflação não é uma somatização, é uma doença séria que de fato prejudica fundamentalmente os mais pobres. Exatamente por esse motivo, precisa ser cuidada de forma atenciosa e preventiva, sendo atacada nas suas causas. Se a inflação é de alimentos, quem deve se pronunciar é o Ministério da Agricultura, propondo o aumento da produtividade e da produção no setor, visando aumentar a oferta. Aliás, o que já foi anunciado pelo governo brasileiro. Se a inflação é de combustíveis, quem deve se pronunciar, no caso brasileiro, é a Petrobras, aceitando a pressão altista internacional e reduzindo o imposto incidente (a Contribuição de Intervenção do Domínio Econômico, a Cide, um imposto inteligente e flexível). Aliás, o que já foi feito. Mas, lá de seu “bote”, os neoliberais conseguem manter o regime de juros no Brasil com um formato não condizente com as necessidades de crescimento e desenvolvimento do país.

Resta-nos, por ora, refletir sobre as palavras do prêmio Nobel, Joseph Stiglitz, em seu bem recente artigo “The failure of inflation targeting”:

“Tanto os países em desenvolvimento, quanto os desenvolvidos, precisam abandonar as metas de inflação. O desarranjo causado pelos preços dos alimentos e de energia já é muito grande. O enfraquecimento econômico e a alta do desemprego provocados pelas metas de inflação não terão impacto significativo sobre esta. Isso apenas fará com que a tarefa de sobreviver em tais condições seja mais difícil.”

João Sicsú é diretor de Estudos Macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.