Cultura

Projetos encampados por pessoas comuns doam, emprestam livros ou favorecem trocas

Projetos encampados por pessoas comuns, patrocinados ou não pela ação governamental, doam, emprestam livros ou favorecem trocas, tentam suprir em diversas localidades do país a falta de bibliotecas

Biblioteca instalada em Macapá (AP). Foto: Acervo Vagalume

Um dos passos para a democratização do acesso à cultura é descobrir as nascentes dos livros. Não aquelas dispendiosas, que brotam das livrarias, mas as que surgem de iniciativas desbravadoras de doação, empréstimos e trocas. São ações abnegadas, de amor pela literatura e pelos leitores, que vão de programas governamentais a bibliotecas solidárias de todos os tipos, feiras e sites.

A Expedição Vaga Lume (www.expedicaovagalume.org.br), por exemplo, é uma ONG sediada em São Paulo que faz um trabalho único. Ela monta bibliotecas em comunidades distantes na Amazônia Legal. O que começou como um projeto cultural de um ano acabou se tornando trabalho de uma vida. A incansável Silvia Guimarães, uma das idealizadoras da Vaga Lume, conta que, na primeira expedição, “encontrou uma situação desafiadora e viu que era necessário continuar o projeto”. Nessa etapa, há sete anos, a Vaga Lume visitou vinte municípios, neles instalou bibliotecas infantis, sempre com livros novos, comprados e selecionados pela própria equipe, e ajudou a formar pessoas para gerir e monitorar esses equipamentos.

Hoje, a Vaga Lume já conta com 120 multiplicadores locais, sempre nos mesmos municípios. São pessoas que participam da gestão comunitária e formam mediadores de leitura, além de fazer a ponte com o poder público e outros parceiros locais. “Dessa maneira, as coisas ficam mais efetivas. É muito importante chegar de forma qualificada, estar perto das pessoas e formar vínculos, afinal a gente é movida à amizade”, diz Silvia.

Amizade mesmo. Ninguém na Vaga Lume é remunerado, são todos voluntários. A associação vive de patrocínios vinculados à Lei Rouanet e outros, além de um financiamento do BNDES que está para acabar. “Teremos de correr atrás. Um dos maiores empecilhos para o projeto é obter recursos para comprar os livros”, explica Silvia. São cerca de trezentos livros novos para cada comunidade. Mas ela está confiante: “Pouco a pouco a sociedade brasileira vem reconhecendo a importância da literatura como grande ferramenta de desenvolvimento pessoal e social”.

“Alimento para a alma”

Nisso é o que também acredita Luiz Amorim. Ele montou sua biblioteca, mas de um modo inusitado: dentro de um açougue. “No começo era estranho, as pessoas olhavam torto, mas logo perceberam que tem tudo a ver, os dois são alimentos, um para o corpo, outro para a alma”, explica, com sábia simplicidade. E emenda: “A arte pode ser democratizada em qualquer lugar”. Amorim montou sua biblioteca T-Bone (www.t-bone.org.br), hoje tornada Ponto de Cultura, há 15 anos, em Brasília. Dos novos projetos, que incluem saraus todo mês e dois grandes eventos artísticos por ano, em maio e setembro (neste ano ele vai contar com shows da Blitz e de Alceu Valença), Amorim se orgulha especialmente das bibliotecas populares nas paradas de ônibus. Já são 35, espalhadas pelos pontos da capital federal. E tudo é feito na base da confiança. Os livros, cerca de seiscentos, ficam depositados nas paradas. Os passageiros pegam emprestado e sempre devolvem, sem que haja ninguém fiscalizando. “Acredito que os livros contribuem para a cidadania, fazem seu papel por uma sociedade melhor”, diz Amorim, ele mesmo um leitor inveterado. A T-Bone tem patrocínio da Petrobras, entre outros.

Outro para quem não importa o lugar quando se trata de democratizar cultura e livros é Marcos Túlio Damascena. Sua biblioteca, em Sabará, Minas Gerais, fica em meio a pneus, numa borracharia. Por isso foi batizada Borrachalioteca. “No início, as pessoas me chamavam de Quixote e diziam: ‘isso não vai dar certo’. Porém, não desistimos diante dos obstáculos e somos hoje muito bem-vistos em vários segmentos da sociedade. A Borrachalioteca é mantida pelo entusiasmo, pelos pneus que consertamos e pelas poucas palestras que realizamos.” Com o objetivo de “fazer com que as pessoas possam sair um pouco da frente da televisão e se apoderar do belo”, Marcos Túlio fez crescer sua biblioteca solidária e hoje conta com uma filial no bairro Cabral, com voluntários da comunidade, e outra a surgir em breve, num Centro de Apoio Psicológico e Social (Caps), “que será aberta à comunidade em geral e tentará romper o preconceito que cerca as pessoas portadoras de transtorno mental”. Recentemente, a Borrachalioteca recebeu uma doação de 2 mil livros infantis e infanto-juvenis da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), contabilizando assim 10 mil exemplares. Amante da leitura, Marcos Túlio deu o nome Sartre ao filho de 6 anos. “Ia ser Nietszche, mas achamos muito complicado para o garoto.”

A história de Claudemir Cabral, de Paraisópolis, grande favela de São Paulo, é parecida, mas em maior escala. Começou quando ele tinha 15 anos e quinze livros. Hoje, outros quinze anos depois, a biblioteca que montou já tem mais de 12 mil livros e é referência em toda a região, inclusive para os moradores ricos do vizinho Morumbi. “Muita gente procura a Biblioteca Comunitária de Paraisópolis porque recebemos os lançamentos das editoras”, explica.

Já Euvaldo Cotinguiba, dono da Letras & Prosa em Vitória da Conquista, Bahia, tomou uma atitude inovadora: reservou em sua livraria uma estante para empréstimo a pessoas com baixo poder aquisitivo, a “Estante Solidária”. Começou com duzentos livros seus e depois recebeu doações de amigos. Não vê incompatibilidade em vender e emprestar livros ao mesmo tempo – pelo contrário, acredita que uma atividade estimula a outra. “Fiz isso porque a cidade ainda carece de mais bibliotecas. As que existem, das instituições de ensino, não são abertas ao público”, conta. E lembra do caso do catador de papel que, depois de pedir uma sugestão de leitura, pegou um livro policial da Estante Solidária e demorou muito tempo para voltar: “Desapareceu. Seis meses depois, ele chegou com o livro e, se desculpando, explicou que, depois de lê-lo, o tinha emprestado para toda a família, que é muito pobre”. A Estante Solidária é a mais visitada da livraria. Seu lema é: “Livro fechado não conta história”. Romances de Milan Kundera e Tolstoi estão entre os mais retirados.

Cruzamento de livros

Mas nem só de bibliotecas vivem as nascentes dos livros. As feiras de trocas são muito bacanas também. Em São Paulo, as Feiras de Trocas de Livros e Gibis acontecem todos os anos, de março a junho, a cada domingo em uma região da cidade. Chegam a ser trocados 10 mil livros por evento, sempre em bom estado. As feiras também aproximam os leitores, que trocam experiências.

No mundo virtual (e também real, em última instância), há o site Bookcrossing (www.bookcrossing.com). Funciona assim: os livros são deixados em pontos da cidade cadastrados no site. Quem encontrar um livro avisa ao site onde e quando o pegou. E, depois de lê-lo, avisa onde vai deixá-lo. Os livros da turma do Bookcrossing vêm todos com etiquetas, que dão o histórico de suas viagens. Há romances que já estiveram em três continentes. Em São Paulo, a zona de troca fica na creperia Central das Artes, em Perdizes. Lá, há uma estante com cerca de 35 livros. Quem alimenta a estante com cinco livros por semana é Helena Castello Branco. Foi depois de fazer pós-graduação na ECA-USP na área de gestão de projetos culturais que ela resolveu abraçar essa idéia. “Vi que o Brasil tem vários problemas de distribuição de cultura, que fica sempre concentrada na elite. Não dá para ser só comerciante, pensar no lucro, a gente tem de ir na contramão dessa coisa capitalista.” Por isso, seu plano é abrir mais zonas de trocas, se possível, em lugares em que as pessoas têm menos acesso a livros. Para tanto, ela já tem um estoque de mais de quinhentos volumes, que recebeu como doação de um sebo.

Helena conta que na Holanda há sessenta zonas de trocas. No Brasil, por enquanto, só duas – além da creperia paulistana, há uma no Rio, no Lunático Café. Mas, a proposta do Bookcrossing é também deixar livros aleatoriamente na rua, “num bar, num museu, num ônibus”. Recentemente, Helena teve o retorno de um Paulo Coelho que deixou num hotel. A pessoa escreveu no site que iria “levá-lo para passear na Itália”. Para facilitar a leitura do site, que é em inglês, Helena vem fazendo uma versão brasileira com amigos.

O mundo virtual também oferece livros gratuitos de outra forma: através da licença Creative Commons, que permite a utilização de livros para fins não-lucrativos. Assim é que, por exemplo, a própria Editora Fundação Perseu Abramo oferece para download, de graça, 47 livros em seu portal (https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/). A Conrad faz o mesmo com alguns de seus títulos – recentemente liberou o download de Máquina de Pinball, romance da gaúcha Clarah Averbuck. E há o Domínio Público (www.dominiopublico.gov.br), bela biblioteca digital que oferece centenas de clássicos, de Dante a Fernando Pessoa, para serem baixados com os custos apenas do papel e da tinta da impressora.

Livro aberto

O Ministério da Cultura também tem uma iniciativa interessante: é o programa Livro Aberto, que dá a possibilidade para que municípios carentes tenham sua própria biblioteca pública. A Fundação Biblioteca Nacional fornece um kit com 2 mil livros, móveis, computador, software de gestão, DVD e som. À prefeitura local fica a tarefa de fazer o pedido, ter um espaço para a biblioteca e montar uma equipe para a manutenção. De acordo com Jéferson Assunção, coordenador-geral de Livro e Leitura do MinC, “todos os municípios do país terão ao menos uma biblioteca até o fim de 2008”. Tomara.

Daniel Benevides é jornalista